Paul Auster é Paul Auster. Paul Auster é mesmo assim. Ah, mas isso é típico do Paul Auster. Estas expressões aparecem com freqüência nas análises dos romances deste escritor com obras marcadas por enigmas, esquisitices e inverossimilhanças (creio que eu já deva ter usado uma expressão dessas em algum momento).
Outra análise comum é que se odeia ou se ama Paul Auster. O próprio autor disse, em entrevista recente ao jornal Folha de S. Paulo, que não lê as resenhas de seus romances porque elas são sempre de amor ou de ódio, nunca “intermediárias”. Invisível, o 15.º romance de Paul Auster, merece uma resenha “intermediária”.
Ficássemos no lado do amor, Invisível seria facilmente apontado como o melhor livro de Paul Auster. O romance conta a história de Adam Walker, desde 1967, quando ele era estudante de letras na Universidade de Columbia e aspirante a poeta. O livro passa por quatro narrativas, com situações em Nova York, Paris e uma ilha no Caribe, terminando em 2007.
Nos anos 60, Walker conhece um casal de estrangeiros: o suíço Rudolf Born, professor em Columbia, e sua mulher, amante ou namorada, a sensual francesa Margot. Os dois se aproximam de Walker e transformam a vida do rapaz. Born oferece-lhe dinheiro para montar uma revista literária. Margot oferece-lhe o corpo, com o consentimento de Born. Tudo leva a crer que o romance terá como epicentro essa relação a três. Mas um crime inesperado numa tentativa de assalto a Born e Walker muda tudo.
A partir daí, o livro assume aquelas características que os críticos de Auster odeiam: o enigmatismo exagerado, a linearidade virada ao avesso, a profusão de narradores. Na verdade, a primeira narrativa era um livro dentro do livro. Nenhuma novidade para quem está acostumado com Paul Auster.
É aqui que precisamos entrar com a tal análise intermediária, não apenas porque Auster pediu, mas porque o livro realmente merece. Na segunda parte do romance, sabemos que a primeira parte estava sendo contada por Adam Walker já com 60 anos, em um esboço inicial do livro autobiográfico que pretende escrever.
Surge em cena um antigo amigo de Walker, Jim, que se tornou o escritor bem-sucedido James Freeman. Adam Walker pede que Jim analise o esboço do livro e fica de lhe enviar a segunda parte, caso a primeira seja aprovada.
Aparentemente, este seria mais um enigma comum de Paul Auster. Acontece que a continuidade de Invisível passa a depender de James Freeman, agora narrador. Ele troca cartas e telefonemas com o sexagenário Adam Walker, que revela estar doente. Neste momento, o leitor (o verdadeiro, não-ficcional) também está fazendo o seu julgamento. O leitor também é um James Freeman, avaliando se o livro de Adam Walker deve prosseguir. Adam e Jim marcam um encontro. Jim pede para ler a segunda parte do romance. O leitor agradece, a análise intermediária continua.
Entre irmãos
Na segunda parte de Invisível, e também do livro dentro dele, acontece um incesto. Neste relato, Paul Auster (ou Adam Walker) se supera.
Antes de partir para Paris, em busca de Born, de Margot e de si mesmo, Adam Walker passa dois meses morando com sua irmã, retomando com intensidade uma experiência sexual que tiveram, uma única vez, quando adolescentes.
É nesta fase do livro que Paul Auster mostra porque é um escritor de primeira grandeza, ao tratar com maestria um assunto tão delicado. Incluir um incesto entre irmãos num romance já exige alta dose de coragem. Paul Auster foi além: descreveu a relação de modo extremamente sensual, mas com palavras, frases e ações tão perfeitas que é difícil condenar a ousadia do casal. Paul Auster conseguiu fazer um incesto entre irmãos parecer realmente apenas um encontro inevitável e belo entre duas pessoas apaixonadas.
O mais incrível é que esta cena de Invisível, que deveria ser perturbadora ou gerar polêmica, tem passado ao largo de praticamente todas as notícias e resenhas sobre o livro. Naquela mesma entrevista para a Folha de S. Paulo, Auster afirma que a relação deve ter sido pouco abordada nos Estados Unidos porque os americanos a acharam tão difícil que preferiram ignorá-la. Diz ainda que leu parte deste trecho do livro em uma universidade e a reação foi de silêncio entre os estudantes. Não tenho dúvidas que o silêncio é um sinal de aprovação, não necessariamente à relação em si, mas ao modo irretocável como foi escrita.
Detratores
As duas primeiras partes de Invisível já garantem a qualidade do livro. Tudo que vem a seguir passa a ter relevância menor, ainda que o romance trate também de questões como Guerra Fria, Guerra do Vietnã, juventude, velhice e amor. Em Paris, Walker novamente se envolve com Margot e Born, agora noivo de outra mulher, cuja filha, Cécile, se interessa por Born. Aliás, é Cécile quem acaba sendo a narradora final de Invisível, por meio de seu diário.
Para quem ainda sente falta da resenha do ódio, Invisível acaba deixando algumas dúvidas na cabeça do leitor, até mesmo sobre a veracidade do incesto entre os irmãos. Prato cheio para os detratores de Paul Auster.
Vale ainda destacar que este livro traz uma enorme coincidência entre os trabalhos recentes de Auster e de Philip Roth. Estes autores têm tratado da decadência do corpo e da mente pela idade avançada. Roth, em livros como O animal agonizante, Homem comum e Fantasma sai de cena. Auster, em Viagens no scriptorium e Homem na escuridão.
Em Indignação, Roth deu uma guinada no argumento de suas últimas obras, relatando a vida do jovem Marcus Messner na descoberta do sexo e do amor e nas suas inquietações com a Guerra da Coréia. Essa guinada também é perceptível em Paul Auster, com Invisível.
Há uma grande similaridade entre Marcus Messner e Adam Walker, não que isso indique qualquer sinal de plágio. Mas é interessante que dois dos principais escritores americanos contemporâneos tratem do mesmo assunto, com grandes obras, cada um totalmente dentro do seu estilo. Para quem gosta de comparações, até os títulos de Indignação e Invisível são parecidos: uma única palavra, começando com a letra i, a mesma de intermediária.