Influências familiares são, na maioria das vezes, bem-vindas. No caso de Paulo Prado, sua família, confirmando a regra, não representou o núcleo de opressão, neurose e perversidade que os discípulos de Freud e Foucault costumam, erroneamente, apregoar. Sob a influência de seu tio, Eduardo Prado — de quem analisei, neste Rascunho, o corajoso Fastos da ditadura militar no Brasil —, Paulo não só escreveu Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, mas também se tornou importante mecenas, responsável, em grande medida, pela realização da Semana de Arte Moderna. Suas relações, contudo, jamais foram restritas ao modernismo, espraiando-se num leque variado, do qual participaram Joaquim Nabuco, Eça de Queirós, Monteiro Lobato e, principalmente, Capistrano de Abreu, de quem se tornou discípulo.
Publicado em 1928, Retrato do Brasil pertence à tradição montaigniana, isto é, anseia examinar as questões da realidade filtrando-as numa visão pessoal, repleta de associações inesperadas e problematizadoras. Não se deve esperar, portanto, do trabalho de Paulo Prado, interpretações que se pretendam definitivas — mas, sim, intuições capazes de produzir no leitor o mesmo desejo que motivou o ensaísta: não aceitar passivamente sua realidade; ou, como dizia Ortega y Gasset ao comentar as características do ensaio, ser “uma pupila vigilante aberta sobre a vida”.
Leitor de Euclides da Cunha e de Antônio Vieira, Paulo não absorveu deles a forma. Ou seja, quer persuadir seus leitores, almeja inquietá-los, mas utiliza linguagem sóbria, elegante, destituída de afetação. Trata-se do “bom escritor” de Augusto Meyer: um “jejuador de palavras”. Seu estilo é contraposição higiênica ao linguajar labiríntico e falsamente erudito que parcela da nossa produção intelectual — inspirada em Derrida e Deleuze — apresenta hoje.
Curral de cabras
Dividido em quatro partes — A luxúria; A cobiça; A tristeza; O romantismo —, o livro impacta já no primeiro parágrafo: não se trata de enaltecer o sensualismo como raison d’être do povo brasileiro, generalização que tem servido para garantir algumas bolsas sanduíche no exterior e bom número de canções populares, mas de mostrar a lascívia no seu papel de elemento deteriorador da nossa organização social.
O leitor afoito está pronto, neste momento, a acusar Paulo Prado de “moralista”. É o julgamento frívolo de quem deveria, antes, ler o ensaio, pois o autor não está preocupado em fazer considerações morais cujos fundamentos são regras tradicionalistas ou preceitos religiosos. Não. Ele analisa a complexidade da formação histórica do país e mostra que o contato do português com o primitivismo das práticas sexuais indígenas estabeleceu um padrão de desregramento que transformou a colônia em “terra de todos os vícios e de todos os crimes”.
Qualquer sociedade empenhada na satisfação exorbitante de suas pulsões sexuais tem de pagar algum preço em termos de esgarçamento ou debilidade da sua organização social. No Brasil, a concubinagem tornou-se regra, como mostra esta citação, que Paulo Prado busca em Capistrano de Abreu, do jesuíta Antônio Ruiz de Montoya sobre os bandeirantes paulistas:
As mulheres […] de boa estampa, casadas, solteiras ou índias, o dono as encerrava consigo em um aposento, como quem passava as noites como um bode num curral de cabras.
Tal “superexcitação erótica”, contudo, não era “privilégio das camadas inferiores e médias” — Prado oferece exemplos à farta de clérigos, funcionários da Coroa e artistas —, mas de todos os colonizadores ibéricos, pois os espanhóis participantes da conquista da América, a começar por Hernán Cortez, também “viviam num regime de poligamia muçulmana”, no qual “sodomia, tribadismo e pedofilia” eram práticas comuns:
Para homens que vinham da Europa policiada, o ardor dos temperamentos, a amoralidade dos costumes, a ausência do pudor civilizado — e toda a contínua tumescência voluptuosa da natureza virgem — eram um convite à vida solta e infrene em que tudo era permitido.
De fato, essa “sociedade informe e tumultuária”, de espantosa libidinagem — os detalhes indecentes estão à disposição dos leitores no próprio ensaio —, se desenvolveria em meio à natureza — não a idealizada, mas a que “os sentidos imperfeitos do homem mal podem apanhar e fixar” na “desordem de galhos, folhagens, frutos e flores” que “o envolvem e submergem”.
Não é estranho afirmar, portanto, que, à visão falsamente paradisíaca dos primeiros viajantes, corresponde, dentre outros, o mito da supremacia da beleza de nossas mulheres, mentira que uma caminhada de poucos quarteirões em qualquer centro urbano derruba facilmente, ainda que reerguida pela mídia, todos os anos, à época do Carnaval.
Pertence à mesma fonte idealista — que vê no indígena apenas o exemplar bom selvagem — o anelo de Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia Pau-Brasil, por “bárbaros crédulos, pitorescos e meigos”, ou, no Manifesto antropófago, a repetida generalização pueril de que “a alegria é a prova dos nove”.
Consequência ou não da lascívia, até o mesmo o ideal jesuítico da ação — elogiado por Paulo Prado — degenerou entre nós, apesar de algumas irrepreensíveis exceções, num neopelagianismo que transformou os membros da Companhia de Jesus em repetitivos e demagógicos sociólogos marxistas.
Ideia fixa
À luxúria somou-se a lei do enriquecimento instantâneo. Quando Prado recupera a frase atribuída a Hernán Cortez — “Eu não vim aqui para cultivar a terra como um camponês, mas para buscar ouro” —, recordam-se imediatamente os insaciáveis impostos da coroa portuguesa e a tendência pertinaz, até hoje, de nossos políticos à corrupção: seus patrimônios crescem em escala geométrica tão logo são eleitos, sem que ninguém investigue esse estranho mérito, desencadeador de riqueza apenas quando o felizardo ocupa um posto de legislador ou governante. São herdeiros diretos do “aventureiro miserável, resolvido a tudo, o desperado, na expressão inglesa”, que povoou este país.
Desde a chegada da primeira caravela, o que excedeu na forma de sonhos impossíveis inexistiu quando se tratou de organizar a colônia:
Tinha faltado a Portugal a verdadeira compreensão histórica e econômica da sua missão metropolitana. A nação e o governo recebiam como uma esmola o ouro, as pedras preciosas e os produtos comerciáveis das colônias. Quiseram viver sem trabalhar.
E mesmo as famosas bandeiras — Prado não deixa de apontar, em relação aos bandeirantes, a “força de heroísmo anônimo e individualista, decisiva na integração do território” —, calculados lucros e perdas, acabaram numa “desproporção entre os resultados práticos obtidos e o esforço descomunal despendido”:
A obsessão foi contínua, espalhada por todas as classes, como uma loucura coletiva. Esse característico na formação da nacionalidade é quase único na história dos povos. Os agrupamentos étnicos da colônia — os mais variados, de Norte a Sul — não tiveram outro incentivo idealista senão esse de procurar tesouros nos socavões das montanhas, e nos cascalhos dos córregos e rios do interior.
É verdade, afirma Prado, que “outras terras pelo mundo sofreram também dessa vertigem do ouro”. Mas salienta: essa “febre se extinguia rapidamente, como um incêndio, para se transformar no industrialismo das minas e explorações comerciais”. Exatamente o oposto do que ocorreu no Brasil, em que os colonizadores e as primeiras gerações de nacionais mostraram-se prontos a abraçar o sonho da fortuna fácil:
Southey escreveu uma página admirável sobre o desvario dos buscadores de ouro. Viviam num contínuo sonho de esperança, vítimas de uma espécie de loucura, forma aguda e crônica da doença que é a paixão do jogo. Homens de reputada prudência, mesmo parcimoniosos, rapidamente transformavam a avareza em prodigalidade. Na obsessão da ideia fixa, tudo convergia para a sua realização; tudo lhes indicava, razoável ou fantasticamente, a proximidade do tesouro encoberto, o simples aspecto e tamanho de um morro, ou a qualidade da erva que o cobria. O dia seguinte podia ser a compensação de anos e anos de penosos e pacientes trabalhos.
A irresponsabilidade portuguesa contribuiu, sem dúvida, para aprofundar os problemas. Mas não se podia esperar muito de um país “já gafado do gérmen de decadência”, em que
à dissolução […] associavam-se a miséria e a fraqueza, “cobrindo-se com as fórmulas de uma religiosidade fervente, como a pobreza e a debilidade se encobriam sob as aparências do esplendor e sob a linguagem da onipotência”, disse magnificamente Alexandre Herculano.
Pessimismo
O início da Parte 3, dedicada à “Tristeza”, confronta as experiências que modelaram os Estados Unidos às que, no Brasil, seguiram as determinações de Portugal. As palavras de John Smith — “Aqui nada se obtém senão pelo trabalho” —, fundador do primeiro assentamento permanente na América do Norte, no estado da Virgínia, chocam o brasileiro acostumado a “chefes venais e peculatários”, a “subordinados” que primam “pela ignorância” e a um passado repleto de “colonos apáticos e submissos”.
A história do bandeirante Sebastião Pinheiro Raposo serve, a Paulo Prado, como exemplo do “tipo representativo e pitoresco” da desagregação moral a que a luxúria e a cobiça nos levaram:
Vindo de São Paulo, percorreu com a comitiva de camaradas e escravos índios e negros os sertões do Norte e Nordeste, deixando por toda a parte um rasto sanguinolento e uma lenda de riqueza. Acompanhava-o um bando de mucambas, com quem tinha inúmeros filhos. Uma vez, duas destas, exaustas pelo caminho montanhoso, caíram desfalecidas à beira da estrada. O sertanista mandou-as despenhar pelo precipício abaixo, pois “não queria deixá-las vivas para não servirem a outrem”.
O que mais restava a um povo empenhado apenas em satisfazer as próprias ambições — “sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem nenhuma preocupação política, intelectual ou artística”, diz Paulo Prado —, a não ser a melancolia?
O ensaísta não deixa de apontar a promiscuidade favorecida, inclusive, pelo “abandono desleixado e corrompido que é a praga da escravidão”. Mas o que fere duramente o cidadão que tenha um mínimo de consciência política é a dessemelhança destes comportamentos:
Washington, quando se referia à Virgínia dizia sempre: “a minha pátria”. Nunca se soube que Fernão Dias Paes dissesse da Capitania de São Vicente: “a minha terra”.
O pessimismo de Paulo Prado vibra em todas as páginas. Mas, hoje, passadas quase duas décadas de governos populistas prontos a comemorar a ignorância e tratar vícios como virtudes heroicas, uma boa dose de visão pessimista poderia garantir um mínimo de realismo. Aliás, a crítica do ensaísta ao papel desempenhado por nossos governantes é irretocável e atualíssima:
[…] Tudo se deve à iniciativa privada. Foi o particular que desbravou a mata, que ergueu as plantações, que estendeu pela terra virgem os trilhos dos caminhos de ferro, que fundou cidades, abriu fábricas, organizou companhias e importou o conforto da vida material. O poder público, pacientemente, esperou os frutos da riqueza semeada. E logo em seguida criou o imposto, como os governadores do século XVIII e a metrópole estúpida, na loucura do ouro, criaram os quintos, os dízimos, as dízimas, a capitação e a derrama.
Reverberações
Em Pensadores que inventaram o Brasil, Fernando Henrique Cardoso chama Paulo Prado de “fotógrafo amador”, preferindo enaltecer Macunaíma com um obscuro jogo de palavras: “Sem mentiras, ou melhor, mentindo-se abertamente e, portanto, santificando-se a mentira”. O personagem seria o representante perfeito do que Cardoso chama de “originalidade do blend brasileiro”.
De fato, Retrato do Brasil não se presta a comparações macunaímicas — e, muito menos, a tentativas de idealizar nossos defeitos. Em sua crueza, o livro obedece à tarefa que Ortega y Gasset definiu para o ensaio: “Colocar as matérias de toda ordem, que a vida, em sua perene ressaca, lança a nossos pés como restos desarranjados de um naufrágio, numa postura tal que o sol produza nelas inumeráveis reverberações”.
O brilho da verdade pode estar, muitas vezes, algo encoberto por generalizações perigosas ou por rasgos do racismo que ainda pontificava na ciência das primeiras décadas do século 20, mas a leitura de Retrato do Brasil continua indispensável, pois nele preponderam o trabalho de investigação honesta, a recusa de interpretações simplistas, a sobriedade de estilo e uma rara coragem — difícil de encontrar atualmente —, que o faz avançar na contramão do ideário modernista.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Darcy Azambuja e No galpão — contos gauchescos.