Na contramão de Deus

Antologia de contos apresenta o universo de suspense e mistério de Edgar Allan Poe
Edgar Allan Poe por Theo Szczepanski
01/06/2012

O poeta e contista americano Edgar Allan Poe já estava bem morto quando seus reflexos fizeram surgir em Portugal a chamada Geração de 1870, com expoentes como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Os então jovens portugueses costumavam abrir as janelas em noites de tempestade e pileque para renegar ao Deus católico e judaico: “Se Deus existe, que um raio caia agora sobre mim”. Os raios, ou Deus, nunca se deram ao trabalho de trucidar os literatos, e por isso estes puderam construir um realismo moldado na negação dos preceitos religiosos, onde toda opressão de uma moral tão rígida quanto ridícula, que havia inclusive posto na cadeia o romancista Camilo Castelo Branco, era contestada com humor e excelente literatura.

Assim como Júlio Verne e Charles Baudelaire, os escritores portugueses eram filhos de um tempo no qual a literatura dialogava com a ciência na busca de um sentido maior para a vida — suas origens e suas conseqüências. Conduzidos pela força da narrativa e da poética de Poe, sobretudo, essa gente revisitava todas as crenças de seus antepassados. E se em Portugal o gesto derivou num anticatolicismo arraigado, em outros ranchos, como nos Estados Unidos e na Inglaterra, resultou num discurso pragmático, técnico, de contestação e oposição às determinantes regras do destino concentrado nas prosas de George Orwell e Aldous Huxley. Ou seja, o homem era o protagonista real da vida e sua inteligência era de fato o condutor do bem ou do mal.

Em outras palavras, foi Edgar Allan Poe, o poeta bêbado que morreu com pouco mais de 40 anos, quem de fato inaugurou toda literatura moderna. Uma literatura que, como mostram os textos reunidos em Contos de imaginação e mistério, busca nas teorias científicas todas as respostas negadas pelas religiões. A regra era negar o ambiente melífluo, de dores de amores, e descrever a vida abjeta própria dos homens, com suas mortes, ambições e perversões. Isso, no entanto, não faz dela uma literatura marcada pelas invenções mirabolantes, embora não deixe de divulgá-las — em um de seus contos clássicos, e que ficou de fora desta antologia, Poe descreve uma fantástica viagem de balão que vence intensas esferas espaciais —, desde que contribuam para trazer à tona uma nova definição da condição humana, principal ponto de partida da nova prosa.

Pondo o homem como centro do universo, sem no entanto construir uma arte egocêntrica, posto que este mesmo homem está sujeito às leis da ambição e da crueldade, Poe aparentemente se rebela contra a supremacia da natureza. Mas ele não pode, nem deve, ser lido com tanta facilidade. A natureza, com suas fúrias e potências, é privilegiada e está sempre a determinar a ação humana. Para o escritor, a própria deformação do espírito humano é fruto natural, ou seja, vem da natureza íntima que criou a complexidade de todas as criaturas.

O fim de tudo
Escrevendo para publicar em jornais e revistas, Poe nunca chegou a organizar um livro de contos. Mesmo assim, pelo inusitado de seu trabalho, já era reconhecido como precursor da literatura policial e de suspense quando, em 1919, a editora londrina George G. Harrap and Co. lançou uma primeira antologia de seus contos. Era uma edição luxuosa com ilustrações do irlandês Harry Clarke. E é exatamente esta seleção que foi agora editada pela Tordesilhas, com tradução de Cássio de Arantes Leite, inclusive com suas ilustrações originais.

As ilustrações de Harry Clarke aproximam-se com perfeita segurança do universo sonhado por Allan Poe. Ele trabalha com claros e escuros numa comunhão precisa com o texto. Aliás, chega ao requinte de traduzir as contradições do escritor como, por exemplo, no conto Morella, no qual um homem não consegue administrar sua paixão, afinal o objeto da devoção “era mulher, e o anseio a consumia a cada dia”, e se encanta diante da morte. O olhar quase indiferente do homem sobre o rosto sereno da mulher, a exuberância das flores, outras faces angustiadas e serenas, tudo leva à visão de um universo pacificado quando de fato o que sobressalta do texto, ao seu modo cândido, é o terror da inveja.

Como toda antologia, esta também se pauta pelas ausências, também sofre com a falta de textos fundamentais, como A carta roubada, mas traz contos definitivos, como O gato preto e Os assassinatos da Rue Morgue. Aliás, são estes dois textos, publicados respectivamente em 1843 e 1841, que abrem o caminho para a chamada literatura policial. Ambos partem de um incontrolável desajuste de seus personagens. A partir daí nasce o crime e sua solução vem do imponderável, da autoconfiança do assassino, da conspiração do acaso.

O escritor, no entanto, não era nenhum moralista de plantão para cair na vala comum daqueles que usam a literatura como trampolim para lições de, digamos, elevação da alma. Sua intenção era descarnar todos os pecados humanos. E aí, em contos como O barril de amontillado, trabalha com a possibilidade do crime perfeito. Neles, a crueldade, a inveja e a arrogância se irmanam para construir um ambiente de degradação intensa. E nisso sobrevive a maestria do escritor. Em nenhum momento ele facilita a vida do leitor. Entre mortes trágicas e decomposições degradantes vai descrevendo uma humanidade definitivamente perdida em seus instintos mais sombrios e torpes.

Há quase uma obsessão pela morte nos textos de Poe. Até mesmo seu poema mais conhecido, O corvo, está centrado no imponderável da morte, pois é exatamente diante da incontrolável saudade de Lenora que a ave sentencia: “Nunca mais”. E falecer, para o poeta, é o fim de tudo, não há nada para além. Mesmo em contos como O colóquio de Monos e Una, no qual os personagens mortos conversam, há duas mortes de fato, mas o diálogo se dá numa esfera filosófica, nunca numa ressurreição ou coisa parecida.

Além do mais, a morte precisa ser trágica. Mesmo aquelas que se mostram naturais carecem de fortes doses de horror. Um exemplo está em Os fatos do caso do sr. Valdemar. À beira da morte o homem se submete a um estranho experimento científico e durante sete longos meses, mesmo morto, se comunica com seus médicos. Suspenso o procedimento, decompõe-se em fração de segundos e à vista de todos, num espetáculo que hoje infesta os filmes de pior roteiro.

Tensão ao extremo
No caso de Poe, o desejo não está no choque, na cena horripilante. Seu objetivo é dizer que as certezas do cientificismo não são saídas absolutas. Ou seja, não há como trocar de ídolos ou deixar as crenças encasteladas nas igrejas para entronizar o pragmatismo científico. Tudo no universo é falho porque é da natureza humana conviver com a imperfeição. E isso não depende de elevações culturais. Tanto na já então sofisticada Londres quanto nos mais recônditos espaços de uma Grécia decadente, os personagens vivem de falências. É, em suma, o cosmopolitismo da míngua.

Em alguns momentos — e o conto O escaravelho de ouro é perfeito para se ter uma visão disso —, Allan Poe, em defesa de suas crenças, parece renegar até a própria história que conta. No texto citado, um homem, por mero acaso, descobre um tesouro, e diante da fortuna conta ao amigo que o auxiliou como chegou ao lugar exato onde estava enterrada a arca. É todo um jogo de decifrações que cria um quase anticlímax, mas que o autor trabalha como um elogio à superioridade do intelecto. E daí vão surgindo novos suspenses e novos motivos para prolongar o toque no nervo do leitor.

Esta capacidade de prolongar a tensão — levada ao extremo no conto O poço e o pêndulo —, além da descrição minuciosa de cada cena tem facilitado muito o trabalho de gerações de cineastas. Incontáveis vezes Poe invadiu com suas influências outros ambientes artísticos, e o cinema foi o principal deles, embora até na música escutemos reverências ao autor. Ao contrário de outros escritores, em cuja obra o que conta são os personagens estereotipados, chapados, em Poe é a complexidade da alma de suas criaturas que encanta.

Por outro lado, há o ritmo narrativo sempre tenso e dinâmico, mesmo quando se deixa levar por longas reflexões filosóficas, além da linguagem precisa a cada personagem, desde a perfeição dos nobres aos deslizes lingüísticos das classes mais baixas. E aí uma curiosidade: a maioria dos contos é narrada em primeira pessoa, quase não há a figura do narrador onisciente, tão em voga. Para além do que poderia ser uma limitação, o texto ganha ares de confissão, tornando-o bem mais verdadeiro, embora lide com escabrosas histórias.

Edgar Allan Poe foi genial em todos os aspectos de sua literatura, e isso basta para explicar sua permanência, sua condição de clássico.

Contos de imaginação e mistério
Edgar Allan Poe
Trad.: Cássio de Arantes Leite
Tordesilhas
424 págs
Edgar Allan Poe
Contista, poeta, editor e crítico literário, Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado pela crítica como pai da narrativa policial e um dos escritores mais significativos do século 19. Figura extremamente polêmica, tem as causas de sua morte desconhecidas até hoje, especulando-se sobre álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, problemas cardíacos, hidrofobia, suicídio e tuberculose, entre outros.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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