Na contracorrente

Lançamento do livro de estreia do guatemalteco Augusto Monterroso sinaliza o reconhecimento algo tardio desse gênio da economia literária
Ilustração: Augusto Monterroso por Fabio Miraglia
01/09/2022

Mestre da concisão num subcontinente entregue à eloquência desvairada, Augusto Monterroso tem um miniconto que costuma repercutir muito e é citado com frequência, chamado O dinossauro, e que justamente faz parte do primeiro livro que lançou, com o título maroto de Obras completas (e outros contos). Trata-se do terceiro título de Monterroso traduzido no Brasil, ele que nasceu em Honduras, mas foi criado na Guatemala (país de seu pai) e viveu boa parte da vida adulta no México ou, como diplomata, em La Paz, na Bolívia, ou em Santiago, no Chile. De volta ao México em 1956, passa a exercer ali atividades acadêmicas e a se dedicar à literatura. Antes, por aqui, foram publicados O resto é silêncio, pela Novo Século, em 2011, e existem duas edições de A ovelha negra e outras fábulas, uma pela Record, em 1983, outra pela Cosac Naify, de 2014 (essa, de beleza e elegância editoriais praticamente insuperáveis).

O miniconto dá margem a todo tipo de interpretação e é constituído por apenas sete palavras: “Quando despertou, o dinossauro ainda estava ali”. Me lembro de ter lido pela primeira vez numa citação feita num conto de Jorge Luis Borges, que mostrava admiração pelo colega, logo compartilhada. Que Borges seja mais conhecido, que Monterroso seja admirado por muita gente mas com repercussão ainda limitada é desses mistérios do universo, que parece gostar de enigmas e tem admiração sem fim por ironias que às vezes escapam à compreensão do comum dos mortais. A primeira narrativa de Obras completas, por exemplo, apresenta a figura de Mr. Percy Taylor, “caçador de cabeças na selva amazônica”. Tendo saído de Boston em 1937, ele descobre pela oferta de dois indígenas as tais cabeças de gente, mas reduzidas, miniaturizadas (difícil não pensar que se trata de autorreferência à própria produção literária de Monterroso). Decide enviá-las de presente a um tio, Mr. Rolston, que passa então a solicitar mais e mais cabeças, porque o fenômeno desperta um súbito interesse que não parece apenas cultural. As cabeças viram coqueluche e passam a ser adquiridas por toda gente, e não só entre os mais ricos, afinal “democracia é democracia, e, ninguém há de negar, em questão de semanas, puderam adquiri-las até mesmo professores primários”. A partir daí, uma escalada de acontecimentos perniciosos se estabelece e não é necessário contar mais para saber que a história não deve nem pode terminar bem.

O registro de Monterroso é quase sempre o das fábulas, mas estando os latino-americanos nessas terras em que tudo é possível, é claro que às vezes para as narrativas não resta outra saída que não seja exorbitar. Evidente que também pode trazer uma qualquer discussão a respeito da subalternidade cultural. Um velho organista na Guatemala encarregado de classificar papéis de música no conto Sinfonia acabada encontra-se diante do que reconhece como os dois movimentos finais da Sinfonia inacabada de Schubert. Claro que, por se tratar de músico periférico de país na mesma condição, ninguém lhe dá a menor pelota. Muda-se para Viena, no esforço por fazer reconhecerem a descoberta, mas o resultado é pior: numa cidade de especialistas, a desconfiança é ainda mais grave. Até que um casal de velhinhos judeus aceita ajudá-lo e tocam a música e se emocionam com a descoberta, mas instantes depois, mais calmos, convencem a si e ao organista que a descoberta em nada acrescenta à obra do compositor, motivo pelo qual ele de fato termina por aniquilar as partituras na viagem de volta à Guatemala e fazer uma breve e desencantada preleção a respeito do senso comum que encantaria Descartes (o filósofo disse que se trata da coisa mais bem distribuída pelo planeta), por ter sido lembrado, e o desencantaria, por ver as consequências perniciosas das ideias.

Os temas podem ser o conflito de classes sociais, como no conto Primeira-dama, em que o engajamento da mulher do presidente na campanha para erradicar a fome entre crianças em idade escolar no país (pode ser qualquer um latino-americano, tanto faz) mal e mal esconde a verdadeira ambição pessoal dela, que se relaciona com declamar poemas, num modelo de diletantismo descompassado que soa patético e grave. Ou podem ser o desajuste cultural, como ocorre no conto O eclipse, em que um frei chamado Bartolomé Arrazola acredita conseguir se livrar de ser sacrificado num altar por indígenas mediante o argumento de que é capaz de prever um eclipse, baseado em “sua cultura universal e em seu árduo conhecimento de Aristóteles”. Corte para o coração sangrando do frei, enquanto um indígena recita “as infinitas datas em que se produziriam eclipses solares e lunares, que os astrônomos da comunidade maia haviam previsto e anotado em seus códigos sem a valiosa ajuda de Aristóteles”. Ou seja, discrepâncias culturais podem ter resultados adversos, a depender da narrativa.

Para mostrar o exímio domínio técnico das nuances da literatura, Monterroso faz variar os pontos de vista das personagens de Diógenes também e deixa perceber que as motivações humanas, à medida que se alteram, mudam ainda o modo como as relações se estabelecem.

Há, no entanto, dois contos do livro que parecem se destacar do restante e talvez são dois dos modelos que permitem entender os motivos pelos quais Augusto Monterroso é considerado escritor de escritores. Em Leopoldo (seus trabalhos), um sujeito se prepara, estuda com afinco e lê de modo compulsivo e algo desesperado para tornar-se escritor e escrever uma obra, vamos dizer, primorosa, sem se dar conta de que o mesmo tempo que investe em se preparar com tanta cautela é o tempo que perde não escrevendo o que deveria. No conto que tem o mesmo título do livro, um mestre dobra o discípulo até convertê-lo, no pior sentido possível, a sua influência nefasta. É um tipo de alerta assustador, quando se sabe que o próprio Monterroso mantinha uma oficina de contos na Cidade do México em que eram aceitos apenas três alunos por ano e, professor rigoroso, mais inibiu a escrita do que a estimulou. Em um sentido terrível, o conto Obras completas parece a autocrítica atroz e no entanto mordaz que ele se permite fazer.

Invenções perpétuas
Num dos pontos altos de O resto é silêncio, ele produz um Decálogo do escritor, que na verdade consta de doze tópicos, segundo a personagem central do livro “com o objetivo de que cada um escolha os que mais lhe convenham, e possa rejeitar dois, a seu gosto”. Em que pese o tom extremamente jocoso dos conselhos, é possível encontrar no meio da zombaria conselhos que se possam usar na medida adequada, como o quarto: “O que possa dizer com cem palavras, diga-o com cem palavras; o que com uma, com uma. Não empregues nunca o meio-termo; assim, jamais escreva algo com cinquenta palavras”. O caminho do meio pode ser muito útil para a vida cotidiana do cidadão comum cheio de bom senso bem espalhado em torno de si, mas para a literatura é sinônimo de morte. E numa coletânea de aforismos ao fim do volume é possível encontrar este: “Todo trabalho literário deve ser corrigido e reduzido sempre. Nulla dies sine linea. Anula uma linha a cada dia”. A frase em latim, na verdade, se traduziria corretamente “nenhum dia sem uma linha”, embora essa travessura na tradução de Monterroso seja bastante sugestiva e talvez preferível.

Não à toa, o catalão Enrique Vila-Matas inclui, ao menos parcialmente, Monterroso na galeria de escritores da negação, escritores que não escrevem, e que movimentam os pequenos ensaios divertidos do livro Bartleby e companhia. A partir da personagem criada por Herman Melville, qual seja, a de um escrivão de Wall Street que a cada demanda do chefe responde com um provocador “acho melhor não”, Vila-Matas discorre sobre os problemas que os escritores normalmente enfrentam para continuar a própria atividade, tão cheia de altos e baixos, quase sempre mais baixos que altos. Afinal, esse Monterroso também seria um escritor do Não?, ele se pergunta, depois de resumir uma das fábulas de A ovelha negra que retrata, disfarçado de raposa, um acontecimento relativo à vida de Juan Rulfo, esse sim, um bartleby perfeito. E formula para si uma resposta: “Não. Monterroso escreve ensaios, vacas, fábulas e moscas. Escreve pouco, mas escreve”. A escritora e ensaísta Vilma Arêas adverte o leitor, na orelha do livro de fábulas, para que não se engane “com a aparente simplicidade deste bestiário. Ele é encharcado de veneno”. A moral das fábulas de Esopo ganham conotação diferente nesse livro, realmente repleto da imoralidade com que a vida contemporânea parece tão satisfeita em chafurdar. Ou seja, de uma forma literária que parecia fadada à extinção, ele encontra mecanismos para renová-la. Na história que dá nome ao livro, ele conta que num país distante existiu uma Ovelha negra cujo destino foi ser fuzilada. Passado um século, o rebanho arrependido ergue-lhe em homenagem uma estátua equestre. O conto se encerra: “Assim, sucessivamente, cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e vulgares pudessem se exercitar também na escultura”.

Num ensaio a respeito de Monterroso incluído em Efectos personales, o mexicano Juan Villoro diz que o livro de estreia do colega é uma lição de ironia: “Cada frase significa pelo menos duas coisas e cada texto rende uma homenagem irreverente à história da literatura”. Os textos de Monterroso, tais como os do peruano Julio Ramón Ribeyro contidos em Prosas apátridas, diz ainda Villoro, constituem “textos sem passaporte”. Alternam entre traduções, ensaio, nota necrológica, parábola, questionários e algo que não pode ser denominado senão invenção narrativa. Em Movimiento perpetuo, livro de 1972, Monterroso sugere que a arte combinatória é o mecanismo possível para falar do fluxo da vida: “A vida não é um ensaio, embora pensemos muitas coisas; não é um conto, embora inventemos muitas coisas; não é um poema, embora sonhemos muitas coisas. O ensaio do conto do poema da vida é um movimento perpétuo; isto é, um movimento perpétuo”. No entanto, a frase desse livro talvez a mais provocadora, que ao mesmo tempo faz rir e deprime, e portanto parece perfeita para vir ao fim de uma resenha que tem a pretensão de estimular leitores a procurarem a obra de Monterroso, é esta: “O verdadeiro humorista pretende fazer pensar, e às vezes até mesmo fazer rir”. Só acrescento mais uma coisa a sério: que outros livros dele possam chegar aos leitores brasileiros.

Obras completas (e outros contos)
Augusto Monterroso
Trad.: Lucas Lazzaretti
Mundaréu
112 págs.
Augusto Monterroso
Nascido em 1921 de mãe hondurenha e pai guatemalteco, Augusto Monterroso nasceu em Honduras e passou a infância e juventude na Guatemala. Em 1937, fundou a Associação de Escritores e Artistas Jovens da Guatemala. Passou os anos seguintes a publicar contos em revistas literárias, mas a militância contra a ditadura de Jorge Ubico levou-o a se exilar no México em 1944. Depois de nova temporada fora, como diplomata, retorna ao país e se dedica cada vez mais à literatura e entre os prêmios que recebeu contam-se o Aguila Azteca, pela contribuição à cultura mexicana, o Prêmio Nacional de Literatura Miguel Ángel Astúrias, da Guatemala, e o Príncipe de Astúrias das Letras. Também foi professor de literatura na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). O primeiro livro, de 1959, foi esse Obras completas (e outros contos). Seguiram-se A ovelha negra e outras fábulas, traduzido por Millôr Fernandes, de 1969, e Movimiento perpetuo, de 1972. Em 1978, saiu O resto é silêncio. Tem ainda outros títulos, entre os quais a coletânea de ensaios La vaca, de 1996. Seu último livro foi Literatura y vida, de 2001. O escritor morreu em 2003, na Cidade do México, e é conhecido pela precisão milimétrica e a concisão extrema que empregou na escrita da obra.
Paulo Paniago

É jornalista, escritor e professor. Venceu prêmio Cidade de Belo Horizonte com  Quando termina. Publicou também os ensaios de  Outra viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira e o romance Com meus dentes de cão.

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