My generation

Em "O ano do macaco" e "Devoção", Patti Smith volta a recorrer às referências culturais que a marcaram para construir textos autobiográficos
Patti Smith, autora de “O ano do macaco”
30/04/2020

Using ideas as my maps
“We’ll meet on edges, soon,” said I
Proud ‘neath heated brow.
Ah, but I was so much older then,
I’m younger than that now.
Bob Dylan — My back pages

“Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus.” O verso que abre Horses (1975), disco de estreia de Patti Smith — figura icônica do rock e da literatura —, parece desenlear todo o pathos que a artista — qualquer outra denominação é puramente reducionista — construirá em suas letras, poemas e narrativas longas.

Quase quatro décadas depois de se afirmar como um dos nomes imprescindíveis do rock americano, Patti Smith se revelou uma tecelã da memória por meio de uma literatura pungente e bastante confessional. Os livros Só garotos, libelo que resgata sua amizade com o fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946-1989), e Linha M, em que relembra seu casamento com o guitarrista Fred Sonic Smith (1949-1994), dão voz à linha tênue — e elegante — entre o luto e um resgate pessoal.

Sem fugir dessa essência, seus dois livros mais recentes publicados no Brasil, O ano do macaco e Devoção, mantêm a verve escrutinadora, que revira o passado atrás de memórias, cartas e do entendimento da própria história. Ambas as obras são narrativas que divergem — mas também derivam — do mesmo eu, que partem de uma força centrífuga para olhar o mundo. São textos que formam — em conjunto com os discos que produziu ao longo de sua carreira, principalmente, Banga (2012) — uma espécie de evangelho, um tao em contraponto ao mecanicismo e ao pragmatismo que têm dominado o cotidiano do homem médio. 

Detetive selvagem
O ano do macaco é uma road trip onírica, em que elementos reais e surreais se sobrepõem ao desejo de compreender os mecanismos que colocaram Donald Trump na presidência dos Estados Unidos e que tornam impossível atrasar o relógio que está prestes a levar o produtor Sandy Pearlman (1943-2016) e o escritor Sam Shepard (1943-2017), ambos amigos da autora há muitos anos.

Diante desses impasses praticamente intransponíveis, Patti investe em uma reflexão registrada em polaroides aparentemente banais, mas que acabam por revelar a profundidade de seus questionamentos. Essas imagens, por si só, contam uma segunda história, um relato de autoexílio e perplexidade, que colocam em evidência uma enorme conexão com tudo aquilo que, à primeira vista, parece invisível. O mergulho que faz, voluntariamente, ao inferno — a tal temporada de Rimbaud é também uma ação de liberdade e de reconstrução a partir de ruínas — que produz, antes e acima de tudo, uma sensação perturbadora e reconfortante de ruptura.

Parte dessa ruptura, por sinal, vem da sua fixação por Roberto Bolaño e a admiração por 2666 (2004), a dilacerante obra-prima do escritor chileno. Patti Smith faz do livro um amuleto, um objeto capaz de colocá-la em contato com o outro, mas também de oferecer abrigo diante do desconhecido. “Às vezes eu acho que eu perguntaria: ‘Roberto, você pode me contar o que acontece depois?’. Quando releio as obras dele, nunca quero terminá-las. Os finais implicam em milhares de histórias, eu sempre penso nisso”, disse a escritora em entrevista ao El País.

Nessa busca pelo selvagem, a artista é seu próprio detetive a interpretar os sinais que lhe caem no colo — como o misterioso Ernest, os objetos que escondem um significado quase místico e o calor de um café barato — e que ajudam a dar corpo a essa jornada. 

Amuleto
E é justamente durante uma visita à casa de Bolaño que Patti Smith — como a Alice de Lewis Carroll — se encanta com o inusitado: a coleção de jogos de tabuleiro que o autor de Estrela distante mantinha. Enquanto tentava encontrar a fotografia que testemunhava a seu favor — e que havia prometido ao Ernest, seu Chapeleiro Maluco —, se dá conta de um vazio que não havia percebido, mas que naquele momento — e congelado em um instantâneo preto e branco — parecia lhe corroer:

Olhei a foto da garotinha sorridente, a filha de Roberto Bolaño. Ela não havia brincado com os jogos do pai, tinha os seus próprios jogos. Imaginei várias dessas meninas, girando em círculos, cantando em línguas diferentes que de alguma forma pareciam a mesma. De repente eu me sentia cansada. Fiquei onde estava e me encostei contra a cama, tentando desembaraçar o meu cabelo muito cheio de nós.

Aquela menina sozinha, à beira do século e à procura do pai, era também a própria Patti Smith, não apenas Alexandra Bolaño. A fotografia — um reflexo desbotado preso a um pedaço de papel — era o prognóstico de que a solidão e a ausência estão sempre a caminho. “Little sister, the sky is falling/ I don’t mind, I don’t mind/ Little sister, the fates are calling on you”, já havia cantado em Kimberly. Realmente, o destino está sempre a chamar. De uma forma ou de outra.

Todas as vezes em que parece se afastar do real, mergulhando fundo em um oceano abstrato, Smith encontra uma face da realidade, escondida sob a poeira das obrigações e convenções. “Eu vivo muito na minha imaginação. Esse é um livro escrito em tempo real misturado com imaginação, e é assim como eu conduzo o mundo”, disse em entrevista à revista Billboard. “É assim que eu navego por todas as coisas difíceis que temos que navegar. Perdemos pessoas que amamos, mas temos que ser receptivas [ao fato de que] elas estão ao nosso lado. De alguma maneira, elas falam com a gente.”

Viver não basta
“Caminhar é desenhar”, disse certa vez Enrique Vila-Matas em uma conversa com Paul Auster. Na literatura de Patti Smith, andar é escrever. Uma simbiose perfeita entre o flâneur e o voyeur, duas espécimes que migraram e que, aos poucos, têm deixado o ambiente urbano para se concentrar em um sistema binário e passivo. É na contramão da égide do novo milênio que se mantém firme a convicção de que o humano é gênese do que dá corpo à sua literatura. “De onde vem as ideias para uma história?”, pergunta logo de cara. E sobra a retórica de que “a inspiração é a incógnita” da equação.

Se em O ano do macaco suas andanças pelos Estados Unidos colocam luz à uma reflexão única e delirante, em Devoção é na Paris de Patrick Modiano e na casa de campo de Albert Camus, em Lourmarin, comprada com o dinheiro do Prêmio Nobel, que a artista se debruça sobre o processo de escrita. E nesse caminho, entre a capital e o interior, nasce o conto Devoção, uma historieta romântica à maneira de Jane Austen ou Louisa May Alcott, cujo centro é a vida de uma adolescente abandonada pela tia e corrompida pelas relações frágeis que constrói.

A impressão que fica é que, como para Thoreau, é preciso estar em movimento e escrever para “dar voz ao futuro, revisitar a infância” porque, como afirma, “não podemos somente viver”. A resistência nasce do deslocamento, do permitir-se se deixar levar e da construção de ideias a partir de mapas afetivos. Da escolha do Café de Flore para tomar café da manhã à visita do túmulo de Simone Weil, Devoção representa uma jornada por memórias que não são as suas, mas que recebe — como no conto de Borges em que o sujeito recebe a dádiva de acesso à mente de Shakespeare — do contato metafísico como seus heróis.

Acordo mais cedo que o normal, chego ao Flore bem na hora em que a cafeteria está abrindo, peço uma baguete com galeia de figo e café preto. O pão ainda estava quente. A caminho do trem verifico uma vez mais o conteúdo da minha bolsa. Caderno, Simone, roupa de baixo, meias, escova de dentes, uma camisa dobrada, câmera, minha caneta e óculos escuros. Tudo de que preciso.  

Com O ano do macaco e Devoção, duas leituras fundamentais para os tempos líquidos, Patti Smith sedimenta seu evangelho punk, uma bússola orientada pela perda e pela dor, mas cuja lição é viver como se sempre voltasse ao silêncio do seu quarto.

O ano do macaco
Patti Smith
Trad.: Camila von Holdefer
Companhia das Letras
168 págs.
Devoção
Patti Smith
Trad.: Caetano W. Galindo
Companhia das Letras
144 págs.
Patti Smith
Nasceu em 1946 em Chicago, Estados Unidos. Antes de completar 21 anos, mudou-se para Nova York, onde conheceu Robert Mapplethorpe, seu companheiro e amigo de muitos anos. Patti ganhou reconhecimento nos anos 1970 por sua fusão revolucionária de poesia com rock, e seu disco Horses, tido como precursor do punk, é considerado um dos melhores álbuns de todos os tempos. Ela gravou uma série de discos e publicou livros de poesia como Babel e Auguries of innocence.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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