A música ocupa diversos personagens de Leopoldo Lugones, escritor argentino que, entre poemas e panfletos, publicou dois clássicos do conto latino-americano, traduzidos, num único volume, pela Globo. Alguns desses personagens, típicos homens fin de siècle atualizadíssimos no conhecimento científico da época, inventavam máquinas para comprovar algumas propriedades do som sugeridas pelas descobertas científicas, como a força mecânica de um som muito alto, capaz de deslocar e destruir objetos pesados, ou a correspondência entre sons e cores, dada pela equivalência da amplitude das ondas que os constituem.
Em narrativas quase sempre compostas em abismo, com o narrador de primeira pessoa recontando histórias relatadas por misteriosos amigos, ciência e arte se misturam num ponto-chave: o momento em que o desejo de saber não encontra suporte em teorias já elaboradas. Uma máquina que produza as cores da música — como se lê em A metamúsica — é, ao mesmo tempo, um projeto estético, afim à estética simbolista de cruzar as percepções corporais (cor, som) em busca de um alargamento místico da experiência humana, e um projeto científico, fundamentado na idéia de que a onda sonora interfere na onda eletromagnética através do éter, substância que preenche o espaço entre cada molécula do ar que conduz o som.
Mergulhados nessa ficção científica, os personagens começam a pisar em terreno perigoso, faustos farejando o limite das próprias vidas. O clima de mistério se instala, as narrativas de Poe e Stevenson começam a ecoar com força, o piano que transforma música em cor é “inteiramente parecido a um féretro” e o perigo da pesquisa se elabora em pergunta: “Você continua achando, então, que a música não expressa nada?”. Explorar, artística ou cientificamente, o território das formas sem significado intrínseco (que, antes da pintura abstrata, era exclusividade da música) era lidar com um nada angustiante, um materialismo perigoso que podia guardar forças ocultas, estranhas.
Era também construir uma alegoria da escrita literária, que mais e mais, ao longo da modernidade, consiste numa tomada de consciência dos próprios meios de que dispõe o escritor: a língua, escrita ou em voz alta. Um piano que produza som e imagem é o instrumento de escritor, já que a palavra escrita se imprime na página e, ao mesmo tempo, produz uma imagem sonora no leitor. Quanto ao alvo, o fim do conto A metamúsica, de Lugones, se encarrega de representar: Juan, o inventor do incrível piano, ao tocá-lo para o narrador, é vítima de um inesperado curto-circuito em seu projeto artístico-científico:
Uma chama deslumbrante brotou do centro da tela. Juan, com o cabelo arrepiado, pôs-se de pé, assustador. Seus olhos acabavam de se evaporar como duas gotas de água sob aquele feixe de dardos flamíferos, e ele, insensível à dor, radiante de loucura, exclamava estendendo-me os braços:
— A oitava do Sol, amigo, a oitava do Sol.
Neste trecho final do conto, descobrimos que a língua já guardava, em suas correspondências internas, a força que realiza e estoura o piano de Juan: o trocadilho entre a nota musical sol e o astro Sol, uma só palavra que reúne som e luz. Assim como o título do livro, As forças estranhas, carrega na palavra “força” o campo semântico da ciência (vetores de força que representam o movimento dos corpos) e o campo semântico da mística, na qual forças ocultas se manifestam e interferem inexplicavelmente no mundo físico. É do encontro dessas forças e de sua relação com a morte que surgem as narrativas de Lugones.
Palco do real, a língua é a matéria-prima da sua ficção, num jogo duplo de modernização da literatura (pois ela se inventa pelas palavras, não pela imitação) e representação da história por outros caminhos. Afinal, como atos falhos, os trocadilhos podem acabar revelando algumas omissões históricas.
Exemplo disso é a orientalização do imaginário ficcional do escritor, que se mostra plenamente no conto O punhal, dos Contos fatais (1926). Esta narrativa mescla as duas vertentes de contos que lemos em As forças estranhas (1906): de um lado, os contos históricos, que reconstituem narrativas bíblicas, da era cristã ou gregas, mesclando história e acontecimentos fantásticos; de outro, os contos que se passam contemporaneamente a Lugones, todos atravessados fortemente pelos limites do discurso científico e por inexplicáveis acontecimentos que a exploração desses limites suscitam.
Em O punhal, o velho narrador, chamado Lugones, recebe a inesperada visita de um homem mais jovem, que demonstra um invulgar conhecimento das cruzadas cristãs e das misteriosas Ordens de cavalheiros que então surgem. Ficamos sabendo de diversos ritos secretos, de iniciações nos mistérios, até que o visitante reflete, curiosamente:
— Saber a história equivale a vivê-la; já que o tempo é uma ilusão de nossa personalidade passageira, como a fuga da paisagem diante de um veículo em movimento.
A história das cruzadas cristãs pelo Oriente Médio começa a se confundir com outra “cruzada”, a dos espanhóis pela América. Tal parece ser um dos sentidos da fala seguinte:
— O que nos diferenciou entre as irmandades secretas, com a única exceção dos sikhs hindus, constituindo ao mesmo tempo nossa força e nossa fraqueza, foi que impusemos como condição para iniciar, a pureza do sangue.
Ora, o punhal que é apresentado ao narrador, de feitura árabe, teria sido usado em “muitas iniciações de templários que a mesma ordem conservou secretas”. Depois da partida do visitante misterioso, cuja presença não havia sido notada nem mesmo pela criada de Lugones, tempos depois, enquanto um músico tocava-lhe ao piano uma sonata de Beethoven, ouve-se o barulho de um objeto de metal caído no chão. Ao arrastar o piano, Lugones encontra o punhal, manchado de sangue, que guarda, até narrar este conto.
A constituição da literatura de língua espanhola ocorre em contato com o mundo árabe. Lembre-se que, no começo de Dom Quixote, o narrador encontra, numa feira popular, um manuscrito árabe, no qual está contida a narrativa do cavaleiro da triste figura. Assim, o moderno gênero romanesco começa, em 1605, através do imaginário dos manuscritos árabes, orientais. A América Latina também se constitui através do imaginário orientalista da Europa, como alguns fatos da língua o mostram: afinal, os índios não moram na Índia, e foram assim batizados por se imaginar que, ao chegar na América Central, chegava-se, na verdade, na costa oriental do continente asiático. Daí o grande interesse de Lugones pelo imaginário oriental e por tudo de fantástico que ele carregou.
Quase tudo que se afirma de Lugones pode, em alguma medida, se estender à obra de Jorge Luis Borges. A exploração de narrativas fantásticas, o jogo de uma grande erudição histórica ou científica, a presença do imaginário oriental e seus mil e um jogos de representação são alguns dos traços de confluência entre os dois escritores. A própria estratégia de representar um narrador duplo do escritor, com o mesmo nome, está presente no estilo tardio dos dois. Borges inventou seus precursores, e Lugones, na literatura argentina, é um dos principais.
Tanto em Borges quanto em Lugones, as narrativas representam, à revelia, as posições do intelectual na sociedade. Em A chuva de fogo: Evocação de um desencarnado de Gomorra, um fato insólito ocorre: começa a chover fragmentos de metal incandescente, de acordo com uma profecia bíblica (mas também de acordo com um possível acidente industrial contemporâneo). O narrador, um rico celibatário que dedica a vida solitária aos estudos, diante do êxodo da população, considera:
Caía do firmamento o terrível cobre — mas o firmamento permanecia impassível no seu azul. Conquistava-me pouco a pouco uma estranha angústia; mas, coisa rara, até então não havia pensado em fugir. Esta idéia se misturou com desagradáveis interrogações. Fugir! E minha mesa; meus livros; meus pássaros; meus peixes, que acabavam precisamente de estrear um viveiro; meus jardins já enobrecidos de antiguidade; meus cinqüenta anos de placidez, na fortuna do presente, no descuido de amanhã?…
O enraizamento do narrador nessa nobre antiguidade conquistada pelo prazer do ócio e da contemplação, apostando na proteção que esta casa inteligente pode lhe oferecer, é uma “força estranha” que acaba por levá-lo à morte. Esta força, nobre, parece resistir ao destino do homem, que, em mais de um conto, aparece como o macaco: a reversão do darwinismo se impõe como um destino de bestialização do homem, que igualmente aparece em O informe de Brodie, de Borges.
A força estranha que resiste ao destino da bestialização está sempre associada a uma perigosa curiosidade intelectual. Em todas as narrativas de Lugones, o acontecimento fantástico irrompe no momento em que o personagem, sempre culto e inventivo, resolve ele mesmo dar um passo à frente no conhecimento humano: “Então, quis desenvolver idênticos poderes. Sempre fui audaz, e logo não estava em situação de apreciar as conseqüências. Pus, então, mãos à obra”.
Esta fala, que poderia ter sido dita pela maioria dos personagens de Lugones, põe em jogo o problema da transferência do conhecimento. A entrada da primeira pessoa nas experimentações científicas desta ficção é sempre fatal aos personagens. As forças estranhas levam a Contos fatais. Já que os experimentos não costumam alcançar o sucesso esperado, a narrativa dos experimentos se torna a última possibilidade de redenção do homem, as narrativas guardam uma ciência perdida, ambiguamente perdida: fracassada e esquecida. Assim, o ocultismo e a mística recalcados historicamente se encontram com a ciência e a técnica, hipervalorizadas pela modernidade.
O saber da literatura se confunde com o dos personagens do conto O psychon, que inventam uma máquina para isolar uma unidade material de pensamento. Ao conseguirem e aplicarem em si dada quantidade de pensamento, uma tremenda confusão se instala, “pois o pensamento puro que havíamos absorvido era seguramente o elixir da loucura”.