O tédio mordente roía a alma de Santa. Tinha raiva de todos: do marido, de Sara, desse pedante Verger que se dava ares de gênio perdido na taba de zulus. “Ele deve estar pensando: Ces sales brésiliens, ces grotesques sauvages…” Pensou em sair. Aonde iria? Percebeu que sua vida era um charco de tédio do qual não a defendiam seus nervos desmantelados. Então pensou em Salomé. Dividiu seus sentimentos entre a preocupação irritada pelo silêncio da filha e a estranha prevenção, a quase repulsa da sua própria feminilidade estéril e inútil contra a alegria juvenil de que a sabia dotada. Nesse instante pareceu-lhe que o mundo havia morrido e ela, Santa, era um cadáver.
Essa matrona fria e rancorosa não encontra bálsamo para sua angústia. Os saraus literários a que se vê freqüentemente convidada, repletos dos modismos estéticos recém-chegados da França, dão-lhe nojo. Aqui, caberia um parêntese: apesar de ter sido publicada em 1940, a novela mostra tais reuniões, sempre regadas a vinho importado, de maneira ingênua, como se o período retratado não fosse justamente o do fim das vanguardas em todo o mundo civilizado. Assim, é com demasiada pompa que os vanguardistas apresentados por Menotti, durante as festas da alta sociedade, ficam a expor, como se fossem o supra-sumo da originalidade, idéias já preconcebidas e desgastadas.
De qualquer maneira, a imagem que fica não deixa de corresponder, guardando as devidas proporções, ao espírito de chacota que certamente comandava a recepção das novas concepções estéticas, que desvirtuava o real valor de movimentos de renovação, como o futurismo, o surrealismo, o cubismo, o dodecafonismo, assim que punham o pé neste pedaço do Novo Mundo. Apesar do pendor para os formatos tradicionais, tanto em poesia quanto em prosa, senso de humor não faltava a Menotti (talvez devido à convivência com Oswald), que, mesmo tendo sido uns dos pioneiros do modernismo no Brasil, não se cansava de ridicularizar certas facções mais ortodoxas do movimento que ajudara a colocar na rua. Otávio, durante uma reunião social, tenta convencer Jarbas, diretor artístico de uma emissora de rádio, a viabilizar seu mais novo e revolucionário projeto de vanguarda:
— Aqui está — suspirou, olhando para seus documentos. — Isto é o fruto de vários meses de meditação e observação. Corri vários bairros para estudar os vários tipos de ouvintes. Cheguei a conclusões imprevistas que reuni para uma conferência que pronunciarei no Círculo de Arte.
— Mas, vamos homem! Do que se trata?
— Disto. O primeiro programa constará de quinze minutos de silêncio absoluto.
Cotti não segurou a gargalhada. Otávio olhou-o furioso.
— O silêncio é o negativo do som. Destino-o, pois, aos ouvintes para que gravem nele as músicas recalcadas que trazem no subconsciente. É a liberação do potencial harmônico individual, uma sublimação, enfim, o surrealismo acústico. Novo! Absolutamente novo. (…) O segundo programa vai ser composto de gritos livres. Quinze negros de bairro dos mais broncos poderão urrar, gemer, ganir à vontade junto do microfone. Serão o desencadeamento musical do instinto e da combinação casual dos sons interjetivos. Isso é para se obter o que denomino a sinfonia animal, ou seja, a pura música primária, a mais representativa, a mais documental, a mais expressiva de todas as músicas. (…) No terceiro programa já entram instrumentos musicais conjugados com vozes humanas e ruídos naturais. O Cotti com o piano e o Eduardo com seu canto poderão tomar parte. O resto será obtido com latas de querosene, um sino, um galo, duas bombas dessas pequenas que os moleques soltam nas festas de São João. Será a combinação da música racional com ruídos artificiais e naturais. A integração do complexo sonoro. Uma experiência para a descoberta das novas combinações cromáticas de alto alcance para o enriquecimento das possibilidades orquestrais… Que tal?
A primeira parte encerra-se com a vitória do conservadorismo nada mais nada menos do que nas três frentes em que combateu. Na primeira frente, Marina, sujeitando-se aos desejos da mãe, casa-se contra a vontade com McGregor. Fora-lhe impossível transcender a condição de carne para abate, de animal de reprodução, destinada aos prazeres do homem escolhido pela família. Menotti, mais uma vez, não soube escapar do lugar-comum. Ao invés de recorrer a figuras como Clitemnestra, Medéia e Lady Macbeth, modelos mais compatíveis com a mulher de nosso século, preferiu lançar mão do “melodrama feminista, estridente, do macho opressor e da mulher vítima, vindo diretamente das fitas baratas de vilões a cofiar bigodes e donzelas aos gritos, amarradas no trilho do trem”. A perda da namorada leva Eduardo a uma tentativa baldada de suicídio, como se fosse possível a João Batista decepar a própria cabeça. No início da novela, Zuleika, melhor amiga de Marina, já a havia questionado — de forma maniqueísta, é claro; sem nenhum aprofundamento, com pouca consciência histórica —, a respeito do papel da mulher na sociedade que se instaurava. Zuleika é sexualmente agressiva, porém destituída de qualquer talento intelectual. Nas palavras que dirige a Marina, sem que ambas se dêem conta disso — o autor optou por mantê-las na inconsciência, guardando para Salomé as infinitas variações sobre o tema — é possível vislumbrar o desejo de voltar “às verdades pagãs”, como diria Camile Paglia em Vampes e vadias, ou seja, de procurar no modelo greco-latino, e em outros mais antigos ainda, regras de comportamento sexual mais flexíveis do que as do modelo judaico-cristão, estreitamente vinculadas com a reprodução.
— Você é boba, Marina. Não sabe viver. Precisamos tirar deste mundo o nosso prazer. Os tempos mudaram. A mulher também tem direito à liberdade.
Marina não respondeu.
— Você precisa libertar-se dessas caraminholas sentimentais. Precisa ser mais objetiva, mais realista. Por que só os homens podem ter sua garçonniére, gozar a vida? Nós também não somos criaturas humanas? Há muitas formas de realizarmos nosso prazer sem correr nenhum risco.
A frivolidade de Zuleika, cuja superficialidade migrara para compor certa faceta de Salomé, assemelha-se à da personagem mais famosa de Benjamin Costallat, Rosalina, menina-moça que já em 1924, no romance Mademoiselle Cinema, causava escândalo ao confessar às suas amigas:
“Cada toalete decotada, bem decotada, traz-me três flertes novos. Quando o decote é bem escandaloso, braços inteiramente nus, espáduas nuas e o busto é tão visível sob a seda como se estivesse inteiramente despido, aí chego a conseguir cinco ou seis flertes novos e imprevistos, sendo dessa meia dúzia quase sempre um homem casado austero e um nome nacional nas Letras, nas indústrias ou na política! […] O vestido de baile também tem suas vantagenzinhas…” E essas meninas de família do nosso século faziam os seus cálculos de conquista, a soma de novos admiradores adquiridos, o balanço de seus conquistados, como prostitutas entre si recapitulando, extenuadas, um dia de labor sexual.
Na segunda frente, exasperada com o excessivo liberalismo da filha no Velho Mundo, dona Santa consegue obrigar Salomé, mesmo sobre protestos, a retornar ao Brasil. Aqui, pela primeira vez, aflora a Salomé simbolista, de matizes wildeanos, porém mais contidos, cuidadosamente adaptados ao tom prosaico característico do estilo de Menotti.
Na terceira, padre Nazareno é afastado de sua paróquia, devido a intrigas e futricas de pés-rapados que, mesmo depois de terem recebido dele todo o tipo de ajuda, o detestam. Tão cristão quanto o próprio Cristo, por isso mesmo não deixa de acreditar, apesar dos reveses, na pureza dos miseráveis. No fatídico momento do afastamento, apesar de não chegar a clamar aos céus: “Pai, perdoa-os, pois não sabem o que fazem”, perpetra ato pior: atira no rosto de seu bispo, de maneira compungida, o mais populista dos discursos, antes de se encaminhar estoicamente para o novo endereço.
Finalizada a primeira partida, dá-se a mudança de posições no tabuleiro. Salomé, coronel Antunes e dona Santa seguem para a fazenda, a fim de se manterem distantes do ambiente corrosivo da metrópole; Eduardo, paralelamente, vai hospedar-se na casa de Totônio, capataz de coronel Antunes, onde espera encontrar no campo as condições paradisíacas de que necessita para se restabelecer; e Nazareno, por seu turno, é nomeado para a paróquia da vila de Saquarema, a poucos quilômetros da mesma fazenda. Herodes, Herodias, Salomé e João Batista, finalmente reunidos num único espaço: o campo, local de per si das verdades pagãs.
Campo versus cidade
A segunda parte, também dividida em seis capítulos, ocupa-se unicamente dos protagonistas e desenvolve-se tendo apenas dois panos de fundo: a vila e a fazenda. Para descrever a vidinha provinciana, condicionadora de homens sem brilho, nem bons nem maus, Menotti beneficiou-se largamente dos anos de juventude passados na fazenda da família, em Itapira, interior de São Paulo. Foi de lá que tirou o cenário humano que se espalha por sua obra, cenário de espetáculo circense — pedaço de lona toscamente decorado com árvores e casas humílimas —, composto de tipos naïves, caboclos de pouca expressão porém muito joviais, que, por contraste, dão brilho à Salomé, dona Santa e Eduardo. Uma vez na fazenda, cercados de mata por todos os lados, as personagens remanescentes entram em contato com as forças irreprimíveis da natureza. Não à toa padre Nazareno é escalado para ficar na vila, distante dos cipoais, do labirinto de troncos, dos rios e de tudo que possa contaminar-lhe a boa disposição judaico-cristã.
Menotti passa, então, a reelaborar o tradicional contraste retórico entre a vida urbana, turbulenta e sem aura, e a campestre, prenhe de misticismo e de epifanias. Na verdade, como estranhos em terra estranha, Eduardo, Salomé, dona Santa e coronel Antunes, ao se postarem distantes da capital, nem por isso passam a se integrar ao campo, pois não pertencem a ele, por serem gente demasiadamente encharcada de civilização. São visitantes, não aborígenes. São os suburbanos aos quais se refere Raymond Williams em O campo e a cidade:
A vida fervilhante, de lisonja e suborno, de sedução organizada, de barulho e tráfego, com ruas perigosas por causa dos ladrões, com casas frágeis e amontoadas, sempre ameaçadas de incêndio, é a cidade como algo autônomo, seguindo seu próprio caminho. Assim, refugiar-se desse inferno no campo ou na costa já é uma visão diferente do simples contraste entre a vida rural e a urbana. Trata-se, naturalmente, de uma visão de rentier. O campo fresco no qual o poeta se refugia não é o do agricultor, e sim o do morador desocupado. […] Idealiza-se não a economia rural, do passado ou do presente, mas sim uma casa de campo comprada, ou um “encantador refúgio na costa”, ou mesmo “uma árida ilha costeira”. Isso, portanto, não é um sonho rural, e sim suburbano. E se coloca em reação direta à concorrência interna da cidade: a ascensão do advogado, do comerciante, do general, do cáften e do proxeneta; o fedor do status e do lucro; o barulho e os perigos de viver numa aglomeração.
Nesse clima edênico, os sentimentos belicistas de dona Santa, com relação à filha, se agravam, evoluindo para um estado de morbidez típico dos anais da psicanálise. Santa passa a acompanhar com curiosidade e atenção clínicas o progresso da obsessão que a corrói. A situação insustentável vai sendo levada a seu modo, em banho-maria: Herodias fustiga Salomé aqui e ali, com rituais de posse de seu território e com afirmações do domínio sobre o corpo e a vontade da filha. De forma sub-reptícia torna-se demônio, íncubo, e devagar, como quem não quer nada, vai tomando posse do que julga ser seu por direito, vai assumindo o total e despótico controle do casamento e da liberdade dos que lhe estão próximos.
A trama adensa-se, envereda por um funil. Eduardo, obviamente sem o querer, fazendo jus a seu perfil de bode expiatório, desperta em dona Santa uma paixão secreta, irresistível. A mulher já não consegue conciliar o sono, já não tem mais nenhum sossego, vê-se atormentada pela lascívia, pelo desejo de possuir e ser possuída pelo homem jovem que ele é.
O mesmo se dá com Salomé em relação ao padrasto. Coronel Antunes passa a espreitá-la, a admirar-lhe o corpo de amazona, quase desnudo, que passeia pela fazenda, embrenha-se na mata e banha-se no rio. Ela, por seu turno, funde-se na paisagem bucólica como verdadeira camaleoa. Não sente falta da metrópole, da sucessão alucinada de estímulos, da pressa inútil de cérebros maníacos. Sente-se bem dentro da completa imobilidade das árvores e das cachoeiras. Gosta da horizontalidade do mato, em torno do qual as pessoas permanecem estáticas, aguardando que a vida passe por elas, poupando-lhes o esforço de ir ao encontro de sua inutilidade e de seu vazio. Aliás, “inutilidade” e “vazio”, termos caros aos existencialistas — Salomé foi publicada dois anos após A náusea, de Sartre —, perpassa boa parcela da novela, principalmente desta segunda parte. Padre Nazareno agarra-se ao crucifixo, mas por mais que se obrigue à fé não consegue ver nenhuma utilidade na existência; Eduardo, dona Santa e coronel Teodoro se movem como ratos de laboratório numa roda sansárica, tentando realizar desejos que, uma vez satisfeitos, darão lugar a cem outros. Somente Salomé, indo na contramão de seus avatares simbolistas, longe dos paraísos artificiais, realiza-se plenamente ao fundir-se com a natureza, desejo de todo o ser humano desde o dia em que os fundadores da raça foram expulsos do paraíso.