Musa antagônica

Biografia de Cláudio Manuel da Costa permite reforçar imagem do poeta uno por seus dualismos
Laura de Mello e Souza, autora de “Cláudio Manuel da Costa”
01/07/2011

A Ronaldes de Melo e Souza

Apesar de todo o esforço dos melhores críticos, no sentido de inviabilizar concepções esquemáticas que interpretam o literário a reboque de polarizações, ainda é muito forte um expediente interpretativo metonímico, cativo em manuais (mas não apenas neles), a tomar uma parte do fenômeno para rotular o todo. Indo mais fundo no raso, essa perspectiva acredita determinar a face da arte que de uma época a partir de eventos sociais, e, numa cadeia lógica, vê o período azul como antípoda do tempo amarelo, cabendo, a cada um, o implacável estigma do atraso e do avanço.

Este não é um caso especificamente literário: a vida humana é conduzida pelo pulso e pelas rédeas da segregação racionalista de uma cultura que desde os seus primórdios civilizatórios estabelece padrões para logo em seguida instituir diferenças. Dado que o padrão é formulado em nome do bem, da correção e da verdade, aquilo que se lhe destoa é tachado de torto, feio, inválido e falso, devendo ser, por isso, corrigido ou eliminado. Dentre miríades de exemplos, foi o que se deu entre portugueses e índios, é o que se dá entre americanos e islâmicos e, tomando o abrandamento do cotidiano (fugindo aqui dos “clássicos” exemplos envolvendo gênero, sexualidade, etnia, religião e gerações), é o que se dá entre surfistas que surfam em pé e os que surfam deitados — os quais, bem no espaço do esporte, da saúde e da liberdade, rejeitam-se mutuamente, demarcando na praia espaços sem intercruzamento.

Voltemos às letras. Costuma-se apresentar o curso histórico da literatura (aqui falo da brasileira) dentro de um sistema de oposição contínua de estéticas avizinhadas no tempo. Assim, a primeira cisão estilística de nossa história ocorre quando os ilustrados árcades setecentistas negam a avalanche barroca do século 17. Os textos de ambas as correntes comprovam alguma validade em tal constatação, mas eles também deixam nítida sua fraqueza, que é justamente o ímpeto generalizante a pretender engolir tudo em nome da compreensão racional.

A arte é mais adulta e menina quando desmerece, aguerrida ou bocejante, as paredes das etiquetações, e por isso identificamos como vigoroso artista aquele que efetiva o amálgama de não e sim, do reto e do sinuoso, do concreto e do transcendente. É por isso, então, que se identifica Cláudio Manuel da Costa como grande poeta, pois, estando entre os apelos barrocos e a contenção neoclássica, ele optou pela poesia — a poesia emanada por ambas as escolas. O poeta, que desde a publicação original das suas Obras, em 1768, padece de extinção editorial exclusiva e completa de seus escritos, reaparece de forma notável em Cláudio Manuel da Costa, brilhante biografia escrita pela historiadora Laura de Mello e Souza.

Muitos retratos e nenhum
De uma biografia espera-se um retrato completo do biografado, e que, na carona dele, seja traçado um painel amplo de seu universo, englobando pessoas, sociedade e eventos históricos. Porém, muitas circunstâncias marcantes da existência do poeta mineiro impediram sua biógrafa de construir um testemunho definitivo, pois os registros e as informações referentes a Cláudio são bastante escassas e desencontradas, conforme se indica logo de início:

Não: quem se casou com Bárbara foi Alvarenga [Peixoto], quem refez a vida na África foi Gonzaga. Cláudio nunca mereceu uma biografia, nem um esboço biográfico mais alentado, como os que Rodrigues Lapa traçou para introduzir as obras desses dois poetas. Sua vida permaneceu na penumbra, sem certezas possíveis acerca do ambiente onde recebeu as primeiras letras, dos lugares por onde andou, das conspirações que urdiu ou ignorou, da maneira como veio a morrer.

De imediato, surge-nos o questionamento: como e por que, diante desses empecilhos, fazer um registro biográfico? Não seria vã a tarefa? A leitura da obra responde que não. Cláudio Manuel da Costa foi, em vida e obra, formado e deformado por uma série de contradições, e aquilo que poderia ser uma falta do livro, termina por se tornar um acréscimo. Diante das lacunas que sabidamente deixaria sem preenchimento, Laura de Mello e Souza fundiu em suas páginas a pesquisa rigorosa que se exige de uma empreitada historiográfica e o emprego de recursos literários a tornar o registro mais denso e mais de acordo com o pesquisado, cumprindo a obrigação e transcendendo a convenção. Quando seria mais cômodo (e naturalmente aceitável) que a investigação pusesse termo às suas tentativas de prosseguimento, especialmente no tocante à irrespondível questão acerca da morte do poeta (se ele se suicidou ou se foi suicidado, tendo sido um convicto ou acidental inconfidente), eis que surge uma narração introspectiva, obumbrada por perguntas semelhantes a estertores e espasmos, calcada num discurso dramático, a escavar o que documento algum pode emitir: os pântanos atolados da lama angustiada do homem:

A vida imitava, mais uma vez, a arte. Qualquer empenho racional e estetizante do poeta ruía ante o desgoverno das ações humanas e o peso inexplicável do acaso. Sem a lírica, só restava o martírio (…). Como sobreviver ao que fizera, passar o resto dos dias às voltas com a lembrança daqueles dias terríveis? (…) As respostas infamantes tinham-lhe escorregado da boca para atropelar as perguntas, ultrapassá-las, assaltado que fora por uma loquacidade frenética.

A vida pela arte
É dessa forma, portanto, como se houvesse uma contaminação entre estudiosa e estudado, que a biógrafa constrói o mais interessante retrato de Cláudio Manuel da Costa — o retrato literário. O preciso subtítulo — “o letrado dividido” — evidencia o fio condutor de toda a pesquisa, norteada pela identificação dos fatores da vida do autor de Vila Rica que lhe moldaram uma musa antagônica e complementar. Não se pense com isso que o livro apresenta uma interpretação da obra do autor movida por determinismo biográfico, pinçando no poema o que aconteceu no percurso do poeta. Não, o que vê em Cláudio Manuel da Costa (em ambos os sentidos) é a aguda percepção de todos os movimentos e cenários contrapostos que desaguaram, caudalosos ou pingados, numa poesia nascida dos solos acidentados do mundo.

Nascido em 5 de junho de 1729, entre Mariana e Vila Rica, em Minas Gerais, Cláudio apresenta em sua gênese a marca dos contrários, visto ser filho de um português comum e de uma paulista com provável distinção social. As nuvens que cobrem os dados gerais do poeta parecem mais uma vez obnubilar o céu do conhecimento, pois alguns indícios permitem apenas supor que o encontro do europeu com a brasileira gerou uma família nova e humilde (o pai, João Gonçalves da Costa, foi um camponês atraído pela opulência do ouro mineiro), ou intuir que, pela ascendência de Teresa Ribeiro de Alvarenga, Cláudio pertenceu a uma linhagem tradicional, remontando às origens do Brasil.

Entretanto, Laura demonstra que as nuvens, unidas, propiciam outro tipo de visibilidade: “Contraditórias e mistificadoras como são, as diferentes genealogias permitem viajar nos séculos e identificar entre os antepassados de Cláudio os dois grandes pais fundadores da paulistanidade: o cacique Tibiriçá e João Ramalho”. Minuciosa, a autora toma até o nome do poeta para indicar sua dualidade: “Cláudio” é nome romano, raro no período do reino português; já “Manuel” representava um chamamento tão comum a ponto de sobrenadar, até hoje, nas piadas que se contam sobre lusitanos. As partes antípodas coadunam-se, harmoniosas, no plexo da unidade: “Cláudio Manuel, só ele: metade romano, refinado, antiqüíssimo; metade português, ordinário, banal”.

Com o passar dos anos, as antíteses se acentuaram: inserido num ambiente civilizado pela bárbara colonização portuguesa (só em Minas, em 1742, havia 80 mil homens livres e mais de 185 mil escravos), Cláudio foi estudar com os jesuítas do Rio de Janeiro, de onde embarcou, em 1749, para Coimbra, a fim de estudar Cânones. Retornando após cinco anos, Cláudio reinstalou-se em Vila Rica, cidade a um só tempo metrópole da colônia e província do Reino, arquitetada pelo português e colorida pelas culturas negra e índia, onde a Arcádia chegava pelos ares e o barroco estava entranhado como bruta raiz. As disparidades regionais por certo causaram-lhe forte sensação de ser um estranho na própria terra — “Onde estou? Este sítio desconheço:/ Quem fez tão diferente aquele prado?/ Tudo outra natureza tem tomado;/ E em contemplá-lo tímido esmoreço” —, mas isso não o levou a compactuar com as ideologias que amputam a arte da vida: “Destes penhascos fez a natureza/ O berço, em que nasci: oh quem cuidara/ Que entre penhas tão duras se criara/ Uma alma terna, um peito sem dureza!”.

Cláudio teve brilhante carreira de advogado, constituindo riqueza e notabilidade social. No entanto, era ressentido, pois seu talento literário foi ignorado pelo preconceito português com os autores coloniais (afinal, o provincianismo não é um fenômeno exclusivo das províncias), o que o dilacerava entre o gosto pela terra pátria e o desejo de desgarrar-se dela. Já idoso, mesmo sem provas que atestassem sua participação direta (e de outros árcades) na Inconfidência, Cláudio foi preso e condenado — ou conduzido — à morte em 4 de julho de 1789, num dos episódios mais controversos de nossa historiografia (a versão oficial aponta suicídio por enforcamento).

O que ele fez ou disse, se delatou seus correligionários ou não (numa passagem pouco clara, a autora aponta a delação, mas diz, sem maiores explicações, que o contexto da prisão e do interrogatório revela vestígios de dignidade e grandeza), se ele foi contrário à Coroa ou queria apenas resolver questões particulares, não se sabe, visto que muitos documentos foram extintos ou manipulados (veja-se a atualidade da prática hoje, quando há um cínico esforço para manter em sigilo as atrocidades de bandidos fardados que governaram o país mais recentemente). O que se sabe é que Cláudio Manuel da Costa, homem da sensibilidade, foi enxotado da ordem colonial com os coices atrozes da morte.

Mas visceralmente afeito aos paradoxos, o poeta subverte as diretrizes da lógica, inclusive as de causa e efeito que se traduzem em golpe e contragolpe. E dali, de Vila Rica, do fundo dos esgotos do ouro, ele ofereceu para este mundo aleijado pelas verdades o canto enlouquecido de afetividade:

Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros
Onde um tempo os gabões deixei grosseiro
Pelo traje da Corte rico, e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da Cidade o lisonjeiro encanto;

Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.
Amém.

Cláudio Manuel da Costa
Laura de Mello e Souza
Companhia das Letras
272 págs.
Laura de Mello e Souza
Nasceu em São Paulo (SP), em 1953. É professora de História da USP e publicou, dentre outros, Desclassificados do ouro (1983), Inferno atlântico (1993) e O sol e a sombra (2006).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho