Esta não é uma daquelas resenhas em que basta estalar os dedos, sentar na frente do computador e começar a escrever com base nos estudos literários e nas observações retiradas da leitura. Há que colocar um disco de Caetano, repetindo, como um mantra, Sampa — “E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho/ Nada do que não era antes quando não somos mutantes”… Há que folhear livros de arte, e relembrar nomes de pintores que fizeram assemblages e ready-mades… Há que tentar lembrar das montagens teatrais que incorporavam sangue, excrementos e sêmen… E há que ter em mente que, ao analisar o livro de Veronica Stigger, estaremos revelando tanto sobre nós mesmos quanto sobre a obra da autora gaúcha. Porque Gran cabaret demenzial é um livro provocante que, imitando um de seus personagens, o Minhocão, ataca todos aqueles que dele ousem se aproximar.
O livro se oferece, em primeiro lugar, como um objeto estético. Ilustrado por Eduardo Verderame, tem um projeto gráfico digno da proposta de criação de uma festa demente em que os episódios se sucedam com surpresa e ludicidade. Mas, se os aspectos visuais do livro são variados, os temas de Veronica, no entanto, são restritos. São música de realejo, ou refrões de rap e repetem-se: o corpo e a cidade; o corpo da cidade; a cidade do corpo. Examinemos, por exemplo, o conto Cubículo, que cria um corpo moradia, já que a cidade — no texto metonimicamente representada pelo apartamento — vai-se tornando cada vez mais inabitável. O casal e seus livros (sua cultura?) se transformam em parasitas e, quando até mesmo esta alternativa se revela inviável, resta-lhes o recurso de se transformarem em metaparasitas, e irem habitar o interior de um verme onde acabam visitados pelo próprio hospedeiro inicial. Lógica? Não devemos procurá-la nos textos de Gran cabaret demenzial, pois, como o nome indica, estamos sob o signo da demência. Neste mundo-cabaret, a lógica é geradora de falta de sentido e de consenso. No conto disfarçado de conferência acadêmica , Argumentum cronologicum, a organização do mundo pela decupagem do tempo, se vê invalidada por uma tentativa de cumprir essa convenção à risca. O caráter artificial dos fusos horários é colocado em evidência, e reforça a arbitrariedade que reside em se adotar algum tipo de convenção em detrimento de outro. No conto em questão, a discussão a respeito da lógica do tempo se associa ainda a outros dois questionamentos: a academia e a religião, já que o uso da paródia da linguagem acadêmica e a tentativa de atribuir à religião local a motivação para o desentendimento se transformam em tropos literários a germinar.
Se o mundo de Veronica Stigger não se organiza segundo a lógica da vida real, é porque segue as possibilidades da representação gráfica. Sua inspiração é plástica e se enraíza nos quadrinhos, nos desenhos animados e na arte moderna. Seus personagens, que alguns críticos chamam de monstruosos, por falta de outra definição, possuem a mesma capacidade de recuperação das figuras “sofredoras” dos desenhos animados: as adversidades podem mutilá-los, mas as suas partes, milagrosamente, permanecem vivas enquanto eles seguem, incansavelmente, sua trajetória em busca da total aniquilação. Com violência gráfica, Domitila, por exemplo, personagem do primeiro dos dezenove textos que compõem o livro, arrebenta um olho, desfigura seu rosto, perde dedos e braço direito, tem suas duas pernas esmagadas e vai para casa, após tomar um sorvete, para mutilar seus mamilos, na esperança de que em breve eles caiam. A narrativa consiste nisso: com um distanciamento quase que científico o passeio de domingo desta mulher — cujo nome remete a um dos símbolos femininos formadores de nosso país (Domitila, a marquesa de Santos, amante de D. Pedro I) — é descrito, sem pretender explicar as estranhas atitudes que se sucedem, sem questionamento de nenhuma forma, nem sequer da própria impossibilidade de se continuar vivendo da maneira retratada. O namorado, uma espécie de Virgílio que guia Domitila por sua jornada infernal, não se surpreende com as bizarrices e a mutilação de sua companheira, nem sequer tenta explicar a jornada, como o faria o poeta latino. O pensamento, as conclusões, são todas jogadas para cima dos leitores, como se fôssemos o público de uma exposição de arte. As histórias são o que são, e tal como um quadro, embora possam manter alguma semelhança com exemplos do mundo real, não passam de representações virtuais. Mesmo que remetam à vida real, é preciso entendê-las como coisas totalmente distintas e não tentar abrir a lata de sopa, nem fumar o cachimbo, por mais que elas se ofereçam numa maliciosa semelhança.
Dessacralização
Fazendo uso do humor e do deboche, a autora procura dessacralizar todos os assuntos abordados. Desde a figura papal, tragada por uma privada neurótica, (aparentada, com certeza, com o Urinol de Duchamps já que Picasso, certa feita, havia pintado flores em sua tampa), passando pela perplexidade das pessoas que vivem num mundo onde os sinais são cada vez mais difíceis de decodificar, como é o caso do indeciso turista de Na escada rolante, até a solução simplista para o preconceito contra as possíveis “modelos e manequins” chamadas de Olívias Palito que se vingam dos seres considerados “normais” sentando-se sobre eles e enfiando suas cabeçorras na “angusta via”, tudo é apresentado sob uma forma grosseira de humor. Mas esta faceta humorística não é a única que dá uma certa uniformidade às histórias. Existe, nos textos, uma contundente fixação anal, que implica em aspectos sadomasoquistas e numa angustiada reflexão sobre o desejo de controle de um mundo habitado por objetos e seres que são rebeldes e perigosos. O mundo de Veronica se assemelha a um brinquedo partido, a um bichinho de estimação que se volta contra seus donos e os ataca. Em O minhocão, por exemplo, a desmesurada minhoca encontrada pelo netinho e adotada como bichinho de estimação, vai se tornando uma déspota intratável, com o péssimo hábito de enfiar-se no cu das pessoas que ousem contrariá-la. A família (modernamente cheia de agregados como ex-maridos e cunhados e namoradas de ex-maridos, todos numa convivência promíscua) tem seus hábitos modificados e sofre até encontrar um outro impossível animal que a livre do flagelo. A história tem a simplicidade das narrativas mitológicas, artifício aparentemente buscado pela autora. Numa entrevista ao site weblivros, a respeito de sua primeira obra, ela diz que procura uma linguagem básica como a das lendas e mitos porque: “este tipo de linguagem básica, associada à brevidade, contribui para intensificar a estranheza”. Estranheza, repetição e simplicidade são as chaves destes textos em que o corpo se transforma numa espécie de máquina ou víscera, produzindo, incessantemente, o mesmo produto. Na crônica de 8 de julho, publicada em O Globo, Luis Fernando Verissimo observa que: “Até o século dezenove fazer cocô podia ser um ato social, até reis se reuniam com seus ministros sentados em ‘tronos’ eufemísticos. Há quem diga que se deve a transformação da evacuação num hábito solitário, propício à leitura e à reflexão filosófica, o nascimento do pensamento moderno na obra de gente como Hegel, Marx, Nietzsche e etc. A privada também é uma grande niveladora, o pensamento pode ser diferente, mas na posição e em tudo o mais somos iguais aos grandes pensadores”. Veronica está sentada entre aqueles que buscam pensar a nossa modernidade, ou pós-modernidade. Ela e seus personagens constroem mitos modernos, retirando modelos da pop-art, dos quadrinhos, dos desenhos animados e do universo virtual. Os mitos e ritos contados por ela são novos princípios intelectivos, são uma forma alternativa de conhecimento que busca fundar uma outra realidade, “uma realidade alternativa àquela que chamamos de real” (Stigger, em: Arte moderna: do mito ao rito).
Na cidade “supra real” de seus contos, cujo corpo se revela em seus letreiros (Destinos e Metrô), vivem as personagens conformadas com sua irrealidade. Seus corpos se coisificam (o velho que se transforma em árvore de natal, em O velho), sofrem os preconceitos mais revoltantes (Festa de casamento) e são alvo de mutações e de invasões (Olívia Palito, Cubículo e Marta e o minhocão). Mas o alvo destes novos mitos urbanos somos nós, os leitores. E não é por acaso que alguns reagem às agressões do seu vocabulário cru e direto com ojeriza. É que as provocações são certeiras, miram nos defeitos de nossa realidade e nos devolvem uma imagem fraturada, partida e destroçada.
Quando, em 1915, Malevitch, o pintor que impressiona Veronica Stigger, apresentou suas 39 telas na exposição intitulada 0,10, ele sacudiu o mundo artístico com suas abstrações e seus novos códigos para a arte. Esperemos, então, que os 39 autores de Bogotá (serão 39 autores de menos de 39 anos reunidos na capital colombiana em agosto) venham a causar o mesmo impacto na literatura.