Em trânsito, de Alberto Martins, é um desses títulos que insistem em fazer poesia em tempos hostis à poética em particular e à literatura em geral. No limite, cabe, para muitos, a pergunta: a que se presta a poesia na contemporaneidade? Afinal de contas, num período em que a realidade, para o bem e para o mal, sobrepõe a ficção, nada mais contraconsenso do que escrever poesia. Mais irresponsável ainda é, como faz o autor, lidar com poemas que versam sobre a urbanidade. Eis um avesso: o lugar-comum seria o poeta buscar a poesia numa realidade fora da tensão da vida na cidade. Com o sossego no horizonte e a bela paisagem como pano de fundo, não há motivo para que a inspiração, esse dom divino tão louvado pelos sequiosos do romantismo, não apareça. Todavia, tal sentimento dá lugar a um autor que enfrenta esse outro sonho feliz de cidade, que é São Paulo, em versos, dando um novo sentido aos lugares e às sensações que permeiam a maior metrópole do Brasil.
Diante de um cenário pouco afeito a ser abordado por suas belezas naturais, Alberto Martins não cria uma cidade nova em seus textos. Antes, busca no detalhe, tal qual um observador descompromissado, ou mesmo um dândi sem enfado; ele percebe os elementos que fazem da metrópole esse monstro que ri. Os leitores, no entanto, precisam ficar atentos: embora São Paulo seja o objeto da poiésis de Martins, não se trata de um livro direcionado para o povo paulista ou para o paulistano. Essencialmente, trata-se de uma poética que se estabelece na cidade, não negando seus vícios, mas, por outro lado, não desafiando suas virtudes e suas belezas discretas. Aqui, cabe mencionar a maneira como o autor empresta a forma ao conteúdo do que deseja expressar, como no poema Maio — de tarde. “Como homens-sanduíche/ que carregam no corpo/ anúncios de compra & venda/ oportunidades & ouro”. Ora, aqui os homens são devorados ou decifrados? Enquanto o leitor busca uma resposta, o poeta revela outra contradição intrínseca da vida em sociedade na cidade, como se lê em Flagrante na praça da República: “que há por trás/ de cada foto/ grama na cidade? (…) A memória é um filme/ alguém está dublando/ a realidade”.
Emprestando à sonoridade dos versos um sentido literário e polissêmico, Alberto Martins dialoga com a tradição poética, sem necessariamente permanecer preso às estruturas formais tradicionalistas. Em outras palavras, Martins não é um poeta conservador, embora seu texto conte com os elementos centrais da poesia (que são o ritmo, a rima e a métrica). Não existe fundamento exclusivista nesses preceitos, outrora tão bem explicados e analisados pelo poeta concreto Décio Pignatari em O que é comunicação poética? Em verdade, a poesia de Alberto Martins se destaca exatamente por buscar voz própria, sem se preocupar excessivamente com citações, argumentos de autoridade e demais salamaleques muitas vezes desnecessários. Esse viés não impede o autor de fazer alusão a nomes como Robert Capa (Uma foto de Robert Capa); e César Vallejo (O exilado César Vallejo), para citar dois exemplos.
Cronista
Ainda em relação à questão poética, Em trânsito se notabiliza por aproximar o poeta de elementos quase banais da realidade cotidiana. É por isso que, tal como um cronista, Alberto Martins extravasa o corriqueiro, atribuindo novos sentidos ao que os transeuntes, por aí, não se dão conta. É notável nesse aspecto a divisão elaborada pelo autor, a saber: “A caminho para o trabalho”, “Inscrições” e “Em Trânsito”. A propósito, é interessante observar que “Inscrições” esteja no meio do livro. É mesmo um entreato, um intermezzo que funciona como um lugar aonde se chega antes de retomar o caminho. Assim, os versos de Martins se inscrevem na lógica da poética urbana por ter como esteio a relação que o leitor tem com a cidade, conforme se observa já na apresentação do livro: “este livro é para o leitor (…) anônimo, pedestre/ modesto passageiro de seu tempo/ que por uma questão de espaço/ chega sempre atrasado/ aos últimos lançamentos”.
Existe, ademais, outro tópico que permeia a poesia de Alberto Martins. Quase uma idéia recorrente, o autor articula, em alguns dos poemas, a metáfora de cavar: “agora/ vou cavar um buraco/ abrir um túnel/ ou coisa que o valha/ esvaziar os bolsos/ me desfazer dos mapas”, diz em o trânsfuga. Já em pequena morte caseira, a idéia já estava presente: “conforme cavo/ a terra vai mudando de cor: negra, marrom, quase amarela”. E o mesmo conceito aparece no texto Vira lata da Madrugada, onde, a certa altura, consta: “do lado/ de fora/ da noite/ (…) o cão/ está lá/ e late/ late/ como quem cava/ um buraco”. A remissão a essa metáfora dialoga com os versos de Drummond, quando o autor mineiro escreve: “Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape”. Enquanto em Drummond era o inseto que desejava fugir, nos textos de Martins pode ser o leitor a usar os versos como válvula de escape.
Há espaço, ainda, para a observação de questões candentes da vida na metrópole, como o fluxo de carros nas avenidas marginais (que, numa cidade como São Paulo, tornam-se centrais). E o autor, entre o indignado e o resignado, questiona: “de repente as coisas avançam/ de repente/ as coisas emperram (…) a quem interessa/ o tráfego nas marginais?” O curioso nesse poema é o fato de o enjambement dos versos obedecer ao ritmo do tráfego intermitente das vias de acesso da metrópole. Ora segue, ora interrompe, num movimento que chega a ser condicionado.
De certa maneira, é contra esse andar sem refletir que o texto de Alberto Martins pode funcionar. A poesia singela e aparentemente descompromissada do autor instaura um olhar delicado em um território hostil, que é a cidade. Os números, dizem os especialistas, não mentem, e as metrópoles estão cada vez mais caras, cada vez mais cheias e cada vez mais violentas. De sua parte, os urbanistas e os geógrafos apontam uma contradição fundamental: mesmo quem está livre deseja viver encerrado, seja no condomínio, seja em seu automóvel, espécie de bunker da pós-modernidade. Diante desse cenário, Alberto Martins aparece para responder à pergunta da vida prática: a poesia se presta a ver um mundo, nas palavras do poeta, engarrafado.