A questão ressurgiu no anúncio das novas categorias de premiação do Jabuti: para 2020 também a literatura de entretenimento será contemplada no certame. Tudo bem, mas o que seria essa modalidade literária? Seus adeptos defendem uma escrita que fale a todos, sem distinções intelectuais, o que parece impossível, algo como contemplar gregos e troianos. Alguns escritores do gênero dizem escrever para o porteiro do prédio onde moram. Afirmam que trabalham para uma população, digamos, menos afeita às condicionantes culturais? Preconceito à parte, vale lembrar que ler é um exercício de compreensão e interpretação. Enfim, seria mais meritório lutar por uma educação popular e qualificada. Bom, a discussão, como sempre, termina derivando por outros caminhos.
A verdade é que é possível conciliar entretenimento com qualidade literária. Graham Greene, infelizmente um tanto esquecido, deu exemplos disso. Um excelente contador de história que sabia lapidar as frases, como o nosso Erico Verissimo. Sim, sabemos da existência de escritores de enredo, como Jorge Amado, e dos estetas, os que têm uma escrita capaz de encantar mesmo quando falam de miudezas, mínguas, como Graciliano Ramos, e ainda os que combinam as duas pontas do barbante: Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, a lista é extensa.
O novo romance de Javier Marías aqui publicado, Berta Isla, revela não um esteta — sua linguagem é correta, leve, agradável, mas não recebe toques de genialidades, não desperta o alumbramento do leitor. Por outro lado, o desenvolvimento do enredo é perfeito, nos envolve, nos leva a transitar por mais de quinhentas páginas sem cansaço ou enfado.
Esse enredo conta de um casal, Berta Isla e Tom Nevinson, que se casa em Madrid, ainda muito jovem, em 1974. Ele, filho de pai inglês e mãe espanhola, tem uma imensa capacidade de imitar qualquer sotaque, graças à fluência em vários idiomas, e quando termina seus estudos em Londres é recrutado pelo serviço secreto britânico. Para a mulher, ele se torna um esforçado diplomata que frequentemente precisa viajar para cuidar de sua segunda pátria, já que é espanhol de nascimento. No entanto, envolvido na trama do assassinato de uma namorada em Londres, Tom não conseguiu se esquivar da convocação para o M16 feita por um antigo professor.
O que parecia estar apascentado, com Berta acreditando nas viagens diplomáticas do marido, sofre a reviravolta natural desse tipo de narrativa. Numa apavorante tarde, onde acredita que um casal de espiões frios queimaria seu filho no berço, a protagonista descobre o horror em que vive. E logo em seguida o marido some para somente reaparecer, envelhecido e melancólico, anos depois.
O que acontece nesse meio-tempo é a brilhante construção de um quase anti-herói, na verdade um anti007. Aquele agente charmoso, cercado por lindas mulheres e com licença para matar está longe do universo de Tom Nevinson. A angústia de viver uma mentira eterna o devasta e oprime. E ao descobrir como os fatos que lhes foram impostos moveram os cordéis de seus dias, mesmo contra sua própria vontade, despe todo o glamour e sentido de sua existência.
Entretenimento e reflexão
Ponteando toda a trama, Javier Marías conta a evolução histórica e cultural da Espanha e da Inglaterra a partir da revolução dos costumes das décadas de 1960 e 70. A iniciação sexual de Berta e de Tom passa por este caminho. Ambos perdem a virgindade em momentos fortuitos, mas plausíveis para seu tempo, que depois se tornam menores, insignificantes. Ao contrário da condicionante histórica que permeia todo o romance.
Os países onde circulam os protagonistas revivem pequenos momentos de uma nova guerra fria. A Espanha luta por reconstruir a democracia, estabelecer novas liberdades, inclusive de costumes, se livrando do terror franquista, aliás, é na resistência à ditadura que Berta acaba encontrando seu amadurecimento político e sentimental. A Inglaterra, por seu lado, vive a ascensão do conservadorismo de Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, que resiste à greve dos mineiros, às pressões soviéticas, à Guerra das Malvinas, ou Falkland, dependendo do prisma. Aliás, pelo menos oficialmente, Tom teria desaparecido nessa guerra, até voltar à vida, depois de uma clandestina existência de anos como professor primário em uma vila inglesa.
Javier, enfim, trabalha com dois universos que marcaram politicamente as últimas décadas do século passado, a eterna queda de braço entre liberais e conservadores. E aí voltamos àquele ponto onde o entretenimento dá o braço à reflexão. Os personagens que controlam as vidas de Berta e Tom são caricatos. Leem T. S. Eliot, citam o poeta, vestem capas de erudição, mas comportam-se como conquistadores de filme B mexicano. E resumem o liberalismo às camas e aos beijos. Ou seja, ao mesmo tempo em que trabalha um enredo consistente, envolvente, Javier busca analisar o ambiente onde transitam seus personagens. E aí enxergamos um mundo dilacerado pela hipocrisia, a fraude, um mundo inútil que mói vidas e sentimentos na defesa de uma ideologia caduca e vazia.
Enfim, todo o andamento do livro nos encaminha para perdas e desilusões. O trabalho de espião nada acrescenta a Tom, além da segurança de um bom salário. A longa espera de Berta também não lhe traz ganhos, além da desconfiança com que passa a olhar o mundo a sua volta. No entanto, não estamos diante de um escritor óbvio. Apesar de buscar divertir seu leitor, Javier Marías quer deixar marcas, pontos para reflexões, e nos surpreende com um final onde prevalece a dúvida da esperança. Um escritor que usa a experiência para instigar o leitor, e não apenas diverti-lo.
Infelizmente, nossa literatura de entretenimento (existe?) se perde na descrição vazia de cotidianos muitas vezes medíocres. Talvez fosse mais útil se refletisse sobre o instigante mundo de conflitos que marca a formação da gente brasileira.