Vanessa parecia ser o problema. A menina que cresceu tornando-se “acanhada, silenciosamente distante e difícil de abraçar”. A moça que fugiu do colégio interno depois do divórcio dos pais. Que foi para os Estados Unidos fazer seu doutorado porque se sentia sufocada em Cambridge, e chegou a pensar em abandonar os estudos para abrir um restaurante. Para Vanessa, segundo Josh, seu namorado, “a felicidade não chega facilmente”. Pois, disse a própria: “Vejo os ossos da vida, a estrutura de tudo, esse é o meu problema”. Ela está em busca do pleno florescimento humano que parece nunca vir.
Depois de uma decepção com Josh, Vanessa cai da escada de casa e quebra um braço. Alan, seu pai, e Helen, sua irmã, vão visitá-la em Saratoga Springs, no estado de Nova York, onde Vanessa dá aulas de filosofia em uma modesta faculdade. À primeira vista, apenas Vanessa está desencaixada, sentindo-se fora de lugar no mundo, sem encontrar resposta para a pergunta: “Qual é o sentido e qual é o desígnio da minha vida?”.
Helen, irmã dois anos mais nova, parece seu oposto. Impetuosa, sempre foi vista pelos pais como “exuberante, sexuada, brincalhona, desobediente”, sem falar em esperta, bem-humorada e despachada. A felicidade parece ser fácil para ela, uma executiva da Sony, profissão sob medida para quem sempre buscou a salvação no rock desde os 12 anos de idade. Mantém com a irmã uma relação que mescla amor, companheirismo e competitividade.
Alan Querry, pai das duas, é um homem que nasceu no início da Segunda Guerra Mundial, viveu uma infância pobre na reconstrução da Inglaterra. É empresário do setor imobiliário, um homem muito bem-sucedido mas cuja empresa se expandira além da conta e estava em um momento difícil. Fora criado no “código bronco” do pai e como um homem do norte do país, valoriza a “força” mental e física acima da beleza ou da inteligência. Ainda se lembrava da época da comida racionada e de como sentira fome. É um homem prático, que não entende as dificuldades existenciais da filha mais velha.
Este livro envolvente e delicado, está montado sobre este triângulo de personagens. O autor consegue alcançar o que propõe em seu belo volume de ensaios Como funciona a ficção: “Outro tipo de romance, em que o bem e o mal lutam dentro do mesmo personagem, em que há uma inquietude do eu”.
Um misto de céu e inferno
Aos poucos vai se esvanecendo a ideia de uma Vanessa disfuncional em oposição ao pai e à irmã, realizados e destemidos diante da vida. Como o próprio Wood propõe no seu livro teórico: “O que importa é a sutileza”, é “explorar a relatividade na caracterização”. Ou seja, a arte de criar personagens multidimensionais.
Embora possamos nos identificar com um ou outro personagem, todos eles têm suas contradições, fraquezas e pontos fortes, sendo que os últimos, muitas vezes, podem ser vistos exatamente como seu maior problema. Enfim, os personagens de Upstate são nuançados, complexos. Uma complexidade que é apresentada com toda a clareza e tenta fazer jus ao que é estar vivo.
Como Alan, Vanessa e Helen são ingleses nos Estados Unidos, Wood explora esse tema da inadequação, da estranheza, sobretudo por parte do pai que, além de mais velho, está vindo ao país pela primeira vez. Ao desembarcar no aeroporto, fica chocado com as pessoas vociferando, berrando. Manhattan parece-lhe “um misto de céu e inferno”.
Essa sensação de inadequação está presente em todo o romance. Talvez seja o tema central. Ninguém, na verdade, está perfeitamente encaixado em sua vida. Vanessa lida com sua tendência à depressão, mas Helen, apesar de toda vitalidade e elegância, vive a contradição de trabalhar para uma indústria que é a própria antítese do que é o rock’n’roll para ela: “Tal como ela o entendia, quer destruir as estúpidas comodidades do mundo”. Quanto a Alan, que baseara toda a sua vida no desejo e nas ações voltadas para a ascensão social, estava à beira da falência, com dificuldades até para pagar a conta de sua mãe na casa de repouso. Era casado com uma chinesa mais jovem, dedicada ao zen budismo, coisa que ele não conseguia compreender assim como os computadores e os celulares, a tirania das telas. Era como se estivesse vivendo em um mundo irreconhecível. Por exemplo: não se conformava com o declínio da Inglaterra enquanto potência, “a nação que ao longo de séculos tinha construído uma história e uma literatura próprias, um cabedal prodigioso de inovações científicas e industriais”.
Todos os mundos se modificam, se extinguem, não somente o de Alan (o mundo do pós-guerra), mas o de Helen também (das mídias físicas como o CD para o streaming). Vanessa fugiu para a filosofia, uma espécie de refúgio intelectual fora do tempo e espaço, mas só consegue ter alegria ao encontrar sua âncora de carne e osso: o belo Josh. O qual, aliás, é um iconoclasta que trabalha no ramo da tecnologia, algo que nos aprisiona de forma ainda mais absoluta.
Todos estão desencaixados e, de alguma forma, desequilibrados e infelizes.
“A arte é a coisa mais próxima da vida”
A frase de George Eliot é uma das preferidas de Wood, tendo sido citada por ele em ao menos dois dos seus livros de ensaios. Eliot afirma que o papel do artista é “o desenvolvimento da nossa empatia”, para “ampliar nosso contato com os semelhantes”.
Upstate, sem nenhum alarde, desconstrói a visão simplista e as oposições mecânicas entre os personagens, ao mesmo tempo aprofundando as diferenças e as características de cada um. O autor usa com maestria o estilo indireto livre, no qual o narrador em terceira pessoa nos traz a visão particular, a maneira de pensar e sentir de cada um. Demonstra arte no uso de metáforas para ir ao âmago dos seus personagens. Alan, sem entender como Vanessa poderia pensar em suicídio, cria uma imagem banal e prática como ele: “Pensava que absurdo seria ela largar a vida de lado, como um problema de palavras cruzadas não resolvido”.
Mas não se pense que Wood se dedica a condenar ou absolver seus personagens. Quando perguntado em uma entrevista qual o traço da sua escrita menos compreendido pelos críticos, García Márquez não titubeou. Disse que eles não haviam percebido a enorme compaixão que ele sentia por cada um dos seus personagens. Esta acusação não pode ser feita ao crítico e romancista James Wood.
Embora o estilo do autor seja marcado pela leveza, ler Upstate é experimentar o peso da vida, algo que cada um tem que aprender a carregar. Mesmo Alan, admite: “Não flutuo como um bote sem fazer esforço. Mantenho-me à tona como qualquer ser humano. Para isso tenho de trabalhar o tempo todo, senão afundo”.
Inadequação de Vanessa? Não, inadequação de todos… Estranhamento diante dos Estados Unidos? Estranhamento diante do mundo.