São poucos os artistas antenados com as mais produtivas manifestações artístico-poéticas vanguardistas que ocorreram no Brasil nos últimos sessenta anos. Indubitavelmente, um deles é Arnaldo Antunes. Sua poesia não se restringe a seus livros. Ela também está presente nas suas canções, performances, artes gráficas e instalações. Espécie de rei Midas, Arnaldo Antunes é um multiartista que transforma em poesia tudo aquilo em que toca.
No seu mais recente livro, agora aqui ninguém precisa de si, ele apresenta poemas compostos nos últimos cinco anos, com exceção de um ou outro trabalho. Há desde aqueles feitos sob moldes tradicionais, com direito a estrofação e métrica, até os mais radicais, em que a palavra escrita sequer existe. Como vem sucedendo desde Ou E, As coisas, Nome, n.d.a. e outras obras anteriores, o carro-chefe dessa publicação concentra-se em poemas que fundem ou reelaboram palavras, elementos gráficos e visuais, e aí entram caligrafias, uso de fontes variadas, figuras, imagens, fotografias. Há também no volume algumas páginas contendo minitextos intitulados prosinhas.
Pelo menos dois poemas trazem versos compostos em metros tradicionais. A obediência ao rigor da versificação ocorre nos heptassílabos do poema você que me continua. Nos seus seis quartetos, pode ser observada total uniformidade métrica. É também o caso da redondilha maior que percorre de cabo a rabo pedra de pedra, poema em que há ecos de João Cabral de Melo Neto, seja no uso do metro popular, seja no emprego de algumas rimas toantes, seja na própria temática da pedra, da busca intensa de uma linguagem cartesiana, seca, desbastada de traços sentimentais:
o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
de entranha mais interna?
casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
repleta apenas de pedra?
Nesse poema de reminiscências cabralinas, o único verso que parece fugir à regra é o aparente hexassílabo “casca que continua”. Porém, aqui ocorre um caso de sinafia, isto é, para manter o isossilabismo do próximo verso, o poeta considerou como forte o som da última sílaba átona do verso anterior (“da entranha mais interna”).
Quem lê/vê alguns dos poemas de agora aqui ninguém precisa de si percebe de imediato que o grupo de Augusto, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e companhia ainda continua influenciando bastante a (re)criação poética de Arnaldo Antunes. De acordo com a receita concretista, sua poesia apresenta um tipo de escrita amiga da concisão, da reinvenção da palavra, da valorização dos espaços em branco da página, da tendência da palavra quase a se transformar em ideograma. Porém, o escritor não se deixa prender na camisa de força da poesia concreta. Ela a reinventa, busca fundi-la a outras vanguardas poéticas e a outras áreas artísticas.
Décio Pignatari, que junto a Augusto e Haroldo de Campos compôs o triunvirato da poesia concreta, escreveu em O que é comunicação poética que “A paranomásia possibilita o trocadilho e a poesia (junto com a metáfora)”. Essa alusão a essa figura de linguagem que busca expressividade entre palavras de semelhança fônica ou mórfica contém uma das lições fundamentais para compreender um pouco do fazer poético de Arnaldo Antunes dentro da vertente concreta. Vários poemas valem-se desse artifício. Entre eles, destaca-se cielo ciclo, cuja temática existencial e disposição geométrica e gráfica lembra um pouco ovonovelo (Augusto de Campos, 1955), que, por sua vez, retoma o poema figurativo o ovo (325 a.C.), de Símias de Rhodes.
Ninguém pode negar que Arnaldo Antunes seja de fato o poeta mais ligado a tudo que represente, no campo da poesia, reinvenção e experimentação.
Também se valem da paranomásia os poemas neste depois, átomo átimo e desamarrar. Neste último, tece-se um jogo de palavras próximo ao trocadilho e ao anagrama e suas metáforas revelam um barco que parte de algum porto e singra o mar bravio até perder o próprio rumo:
d e s a m a r r a r
o mar
d e r r a m a r
o mar
r u m a r
ao mar
u r r a r
ao mar
d e s a r r u m a r
Noutros poemas do livro, fica visível a relação do escritor com algumas manifestações poético-visuais de meados de 1960 que valorizam as imagens, sem extinguir de todo a palavra —, divulgadas principalmente por Décio Pignatari, Luiz Ângelo Pinto, Ronaldo Azeredo e Pedro Xisto. Poemas como recuerde, lunha e silêncio estão entre os mais bem elaborados e que conseguem oferecer uma ótima fruição ao leitor, visto que neles imagem e palavra efetuam um casamento bem interessante.
Impossível não mencionar a influência que o poema-processo tem na poesia de Arnaldo Antunes. Embora careça de um manifesto, o poema-processo certamente é a mais radical manifestação poética que se concebeu no Brasil. Por detrás dessa vanguarda surgida em 1967 está Wlademir Dias-Pino, um poeta que havia sido membro da ala carioca do concretismo, mas que partiu para experiências mais arrojadas. Sua proposta no poema-processo não se limitou a abolir o verso — carro-chefe do manifesto concretista. Dias-Pino foi mais além e extinguiu a própria palavra do poema, mantendo apenas os signos não verbais como fotos, desenhos, formas abstratas, gráficos, etc. Em suma, uma poesia visual que não traz nenhuma legenda (chave léxica) para explicar os signos empregados, todavia mantendo a ideia de movimento sequencial. Uma poesia muito próxima das artes plásticas e das histórias em quadrinhos.
Não é de hoje que Arnaldo Antunes tem produzido poemas-processo. Em Ou E, vírgula e paisagem são os mais instigantes; em Nome, os quatro quadros de soneto lembram a própria estrutura estrófica desse tipo de poema; noutros livros há outros. A propósito, é justamente um poema-processo o mais belo e enigmático desse novo livro de Arnaldo Antunes. Trata-se de horas, poema sem palavras que ocupa duas páginas. Sem chave léxica, doze fotos de relógios (cada um com um horário distinto) estabelecem entre si uma sequência com começo, meio e fim. Numa leitura da esquerda para a direita ou ao contrário, ou de cima para baixo ou vice-versa, alternam-se fotos de grandes relógios e relógios de pulso (“o pulso ainda pulsa?”). Se se optar pela leitura diagonal, a que parte da esquerda para a direita mostra relógios de parede; a outra apresenta relógios em pulsos de diferentes pessoas. Há apenas um único relógio digital em meio aos que apresentam mostrador com ponteiros. Cabe ao leitor interpretar qual a leitura da passagem do tempo que o poeta quer dar nesse poema.
A poesia de Arnaldo Antunes também está embebida de algumas manifestações poéticas feitas nos idos de 1970 e 1980. O que ele faz é dissolver qualidades de uma ou outra e inter-relacioná-las. Nalguns poemas que trazem sofisticado acabamento visual, é possível pensar no poema-embalagem de Edgard Braga. Outros apresentam a técnica de ajuntamento meio ao acaso de elementos diversos, técnica típica de alguns poemas-colagem feitos por Sebastião Nunes. Existem também poemas dialogando com o chamado poema-montagem de Villari Hermann e Philadelpho Menezes. Em agora aqui ninguém precisa de si, inscrevem-se nessas vertentes acima citadas poemas como moon do, womb tomb e abrilho ferrolho, entre outros.
Enfim, ninguém pode negar que Arnaldo Antunes seja de fato o poeta mais ligado a tudo que represente, no campo da poesia, reinvenção e experimentação. Sua poesia ultrapassa o conceito tradicional de texto escrito. Sua poesia é palavra e também não palavra, visto que esta se transmuta em figura, em caligrafia, em instalação, em performance, em canção, em tudo que faça o lúdico transbordar nos campos gráfico, sonoro e visual.