O nome de Heinrich Heine é conhecido por gerar polêmicas no ambiente da crítica literária. Da leitura negativa de Karl Kraus e de Benedetto Croce às variadas (re)leituras de Nietzsche, Mann, Brecht e Arendt, ele é hoje considerado o maior poeta alemão da transição entre o romantismo e o realismo.
Seus primeiros poemas de tom byroniano saem em 1822, mas já é possível identificar elementos novos pela forma como recupera as baladas populares e a renúncia, sempre com tons irônicos, por qualquer ilusão. Poucos anos depois é publicado o livro Quadros de viagem (1826-31), uma espécie de diário de viagem à la Sterne, com um amplo leque de temas fantásticos e morais, e que será muito importante para o seu reconhecimento. Quadros que trazem uma multiplicidade de temas, assim como é múltiplo seu autor, nessas páginas nos deparamos com sátiras, poemas, crônicas de costumes, reflexões mais filosóficas — enfim, um caldeirão de experimentações.
A experiência em Paris, iniciada em 1831, como jornalista e correspondente de algumas revistas alemãs, é fundamental para Heine. É nesse período que ele entra em contato com alemães que viviam na capital francesa, como Humboldt, Lassalle e Wagner, e também com Balzac, Hugo, Musset e Marx.
Autor de ABC da literatura, Ezra Pound será mais um dos poetas e intelectuais que no início do século 20 trarão Heine para suas reflexões, além de traduzi-lo e de dedicar-lhe um poema na coletânea Canzoni (1911). Heine lido e traduzido por Pound, que por sua vez é traduzido por Augusto de Campos, que assina a orelha desse volume dedicado ao poeta alemão. Heine, hein? Poeta dos contrários é a antologia organizada e traduzida por André Vallias, fruto de um grande desafio que se concretiza nesse volume de mais de quinhentas páginas.
O perfil de Heinrich Heine (nascido Harry, batizado Heinrich, falecido Henri) que é aos poucos costurado nessas páginas é o de um poeta múltiplo e sobretudo contemporâneo. Ao todo são cento e vinte poemas que perpassam vários momentos da estética do autor de Romanzero (1851), organizados de forma cronológica e, como afirma o organizador, “intercalados por textos — seus ou de contemporâneos — e alguns excertos de obras (…) Um memorial, do qual traduzi metade do ‘Livro primeiro’ e todo o ‘Livro segundo’, onde estão as ‘Cartas de Helgoland’ que Thomas Mann tanto apreciava”.
Fora das sombras
Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari compõem uma tríade no panorama cultural do século 20 no Brasil. Para além de todas as experimentações poéticas/criativas, essa tríade inova a própria poesia a partir de algumas traduções/“transcriações” paradigmáticas: Mallarmé, Rimbaud, Valéry. Tratando-se de Heine, vale lembrar o livro 31 poetas, 214 poemas: do Rigveda e Safo a Apollinaire, de Pignatari, em que Heine aparece ao lado de Rimbaud, Byron e Leopardi.
“Heine talvez continue a desafiar nossos parâmetros, provocando desconfiança e rejeição (…). Pertence a uma terceira categoria que o Ocidente relegou às sombras.” Sombras que interessam, e muito, ao “Leopardi antirromântico”. Na Itália, Heine será apreciado não só por Giacomo Leopardi, mas será muito traduzido pelos poetas Bernardino Zendrini e Giosuè Carducci. Umberto Saba é outro nome dentro da cultura italiana irá recuperar Heine — a posição estratégica de Trieste, nesse caso, não é necessariamente um mero acaso. Nos seus conhecidos aforismas Atalhos (Scorciatoie), Saba cita pelo menos três vezes o poeta alemão, uma delas ao mencionar três grandes de seus conterrâneos: Goethe, Heine e Nietzsche. Todavia, Saba vai além e “retoca” — palavra dele — uma tradução de Zendrini e ainda coloca Heine ao lado de Ugo Foscolo em Leitura de Heine, Foscolo e outros.
No Brasil, como aponta André Vallias na introdução — que traz uma cartografia detalhada da recepção de Heine —, seus poemas chegam via tradução da língua francesa — como muitas outras —, primeiramente por meio de Gonçalves Dias (há uma clara relação entre Dias e Heine se se pensa em O navio negreiro) e Francisco Adolfo de Varnhagen, e depois com Machado de Assis. Um caminho que seria seguido, mais tarde, por Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa, Raul Pompéia e Manuel Bandeira.
Ironia
Um dos aspectos que mais chamam a atenção é como Heine trabalha o “material romântico”, com pitadas irônicas e tentando sempre desconcertar o tom sentimentalista. Vale a pena lembrar aqui um dos poemas da série “Sonetos-afrescos”:
Me passa a máscara: vou desfilar
De plebe; a rica escória do salão,
Em paetês e plumas de pavão,
Não há de me tomar por um de lá!
Maus modos e o baixíssimo calão
Me passa, eu vou vestir-me de gentalha!
Renego cada sílaba que saia
Da boca de um janota de plantão.
Assim, eu vou pulando o carnaval
Em meio a reis, valetes e rainhas,
Cumprimentado apenas o arlequim.
E todos seguem me lascando o pau.
Mas só retiro a máscara do rosto,
Quando acabar a farsa de mau gosto.
Não é à toa que só o arlequim seja cumprimentado, mas para entender melhor as tensões postas é preciso adentrar nesse poeta dos contrários!