Escrever o erotismo é ir na contramão do princípio do desempenho e da depressão. Para o filósofo coreano Byung-Chul Han, em Agonia de Eros, os tempos contemporâneos trazem uma outra lógica de coerção. O verbo “dever” cede lugar ao “poder” e o apelo à produtividade, à inovação e à iniciativa são ainda mais efetivos que as ordens hierárquicas. Somos hoje nossos próprios algozes, sobrecarregados com o que podemos fazer, o que podemos consumir, o que podemos ser e o que podemos criar. Vivemos numa sociedade cada vez mais narcisista e já não percebemos o outro em sua alteridade. O sujeito contemporâneo, como Narciso, “vagueia aleatoriamente nas sombras de si mesmo até que se afoga em si mesmo”.
Acontece que Eros não pode ser abarcado pelo regime do eu, não sobrevive no inferno do igual. A experiência erótica acontece quando nos deparamos com a exterioridade do outro, a utopia do completamente outro. Não posso amar ou desejar o outro desprovido de sua alteridade, posso apenas consumi-lo. E assim o desempenho rouba o erotismo de nossas vidas, porque a sexualidade também está refém da lógica do desempenho, nossos corpos operam como mercadorias ou objetos de satisfação, coisas com as quais é impossível estabelecer relações de desejo reais.
Com essas digressões, pretendo tão somente reforçar o quanto é imprescindível que a literatura tenha seu lugar de exercer o erotismo numa linguagem que extrapole limites e se renda aos excessos, que se oponha ao caráter de utilidade do trabalho, que seja contrária à produtividade de uma literatura a serviço de qualquer instituição ou ideologia. E se há certo “perigo” na literatura erótica, é porque, como diria Audre Lorde, o erotismo nos deixa menos dispostas a aceitar a impotência, a resignação, o desespero, o autoapagamento, a depressão e a autonegação. O erotismo de Lorde é a força de um conhecimento genuíno do poder de compartilhamento do gozo, seja ele físico, emocional, psíquico ou intelectual, uma ponte entre as pessoas (e para ela, em especial) entre mulheres negras e lésbicas que utilizam o erótico como antídoto à raiva, contra o racismo, o machismo e a homofobia. Porque a primeira coisa a pontuar, na verdade, é que não há apenas um erotismo, conclama-se aqui às infinitas possibilidades de corpos atravessados por Eros. Este é o valor de O corpo desvelado, antologia organizada por Eliane Robert Moraes, a coragem de propor um recorte de muitas décadas de erotismos tão diversos que seria possível evocar desde os gregos até o cyber-corpo ou o manifesto contrassexual de Paul Preciado, para esboçar minimamente alguma reflexão do que esses contos nos trazem e o que nos escapa à compreensão, o que sempre falta dizer sobre o erotismo.
Talvez por isso mesmo, O corpo desvelado desvia de um critério cronológico. A pesquisadora do erotismo propõe que a seleção de 71 contos seja distribuída em nove tópicas eróticas: A coisa em si, Dos escritos picantes, Das iniciações, Das visitas ao paraíso, Das incertezas do desejo, Do que não tem limites, De madrugadas e demais penumbras, De espelhos e revelações e Do espírito da coisa. Em cada seção, apresentam-se ficções eróticas dessemelhantes e únicas em suas linguagens e perspectivas, como não poderia deixar de ser quando reunidos na mesma tópica erótica encontram-se nomes como Sérgio Sant’Anna e Amara Moira, Rubem Fonseca e Ricardo Lísias, Mário de Andrade e Caio Fernando Abreu, Ana Miranda e Hilda Hilst, Silviano Santiago e Natália Borges Polesso, Nelson Rodrigues e Olga Savary, Raduan Nassar e Márcia Denser, Gastão Cruls e Esmeralda Ribeiro, Ferreira Gullar e Lygia Fagundes Telles.
Fronteiras se desestabilizam
Com certeza, toda coletânea que reúna textos produzidos em um século inteiro, por autores de diferentes gerações, dos mais diversos lugares de um país multifacetado — ainda que tenha uma proposta temática —, pressupõe a difícil missão de congregar a profusão de ritmos, imagens e linguagens inerentes ao conjunto. Mas quando se trata de erotismo, alguma coisa muito singular habita em cada texto e as fronteiras se desestabilizam. Sobre o significante “coisa”, “dispositivo de transporte da etérea matéria erótica”, a organizadora da seleção teve a sutileza de abrir e fechar o livro com contos que convocam a expressão literal. A primeira seção é intitulada A coisa em si e a última O espírito da coisa. Não menos sutil e acertada é a escolha do primeiro e último contos, de Sérgio Sant’Anna.
Cavalgando (ela), homem (mulher), igual mulher (homem) dos afrescos de Pompeia, entretanto sou também mulher (homem) do meu tempo: posso estar lado a lado, por baixo dele (dela) ou sobre ele (ela), como agora, aqui. Cravando minhas unhas em seu peito, sou frágil e poderosa(o), como ele (ela), quase um(a) menino(a). Seu sexo tenho entre minhas pernas de modo que sou eu a reger este dueto…
(trecho do conto Dueto, de Sérgio Sant’Anna)
Eliane ressalta, no texto de prefácio, intitulado A coisa fora de si “que sempre resta algo de oblíquo, de inapreensível e de secreto que faz desses contos o exato oposto daquilo que se costuma atribuir à pornografia de mercado, obcecada pela ilusão de uma exposição absoluta”.
No livro Eros, doce-amargo, Anne Carson discorre sobre o caráter ambíguo de Eros, doce e amargo, o ódio e o desejo que se interseccionam e formam o núcleo incognoscível, “a fronteira da carne e do eu que existe entre você e eu […] É o limite que separa minha língua do sabor pela qual ela anseia, que me ensina o que é um limite”.
Prazer e dor, ausência, falta, triangulações, vergonha, safadeza, perversão, tesão, caça, lascívia, fetiches, obscenidade, constrangimento, animalidade, indecência, transgressão, dispêndio, canibalismo, libertinagem, violência, liberdade, morte, tudo isso e outras coisas “e mais e mais” podem ser lidas nas páginas desses contos. Ainda, segundo Carson, no erotismo, o buraco, o que falta, o desejo insaciável por um objeto é o desejo por uma parte necessária de si mesmo. “Duas faltas se tornam uma.” No conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade, essas faltas complementam-se na dança sensual e dolorida de afastamento e proximidade, há uma angústia palpável, o proibido na triangulação do erotismo, o interdito compassando um cansaço puro e impuro, de amizade e desejo.
Frederico Paciência recuou, derrubando a cadeira. O barulho facilitou nosso fragor interno, ele avançou, me abraçou com ansiedade, me beijou com amargura, me beijou na cara em cheio dolorosamente. Mas logo nos assustou a sensação de condenados que explodiu, nos separamos conscientes. Nos olhamos olho no olho e saiu o riso que nos acalmou. Estávamos verdadeiros e bastantes ativos na verdade escolhida. Estávamos nos amando de amigo outra vez; estávamos nos desejando, exaltantes no ardor, mas decididos, fortíssimos, sadios.
(trecho do conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade)
Prevalece uma fusão nada pacífica, uma tensão que se estabelece na fronteira porosa entre um(a) e outro(a). A nostalgia da totalidade paira em cada desejo não cumprido. Ou como bem resume o personagem do conto Arte nova, de Evando Nascimento, “viver, em síntese, seria atingir o cerne das coisas com as ferramentas de quem justamente não somos”. Cada conto revela suas estratégias de manter o espaço do desejo aberto e elétrico. O que falta, o abismo, a vertigem é o que parecem buscar esses autores em seus enredos eróticos. É o que talvez sinta a personagem de Márcia Denser no conto O vampiro da alameda Casabranca ao se entregar para o poeta “guru de fachada” e “charlatão cósmico”, ou o que procura A dama do lotação, de Nelson Rodrigues, ou o que ainda resta na mulher sonâmbula à beira da demência de Raduan Nassar em Hoje de madrugada.
Erotismo e linguagem
Um ponto em comum entre muitos contos é a evidente ligação do erotismo com a linguagem. E mesmo que não totalmente evidenciada, é nítida a relação da escrita com os desígnios de Eros, na linguagem que se elabora ambivalente e persuasiva, em todos os contos. Quem escreve, por certo, também busca “a coisa”. A literatura faz o caminho obsessivo e incessante do desejo. Intestino grosso, de Rubem Fonseca, descreve o uso da linguagem, ou “o uso de palavras proibidas”, como uma espécie de gozo e de contestação antirrepressiva. Já Ricardo Lísias, no conto Filosofia da solidão, chega a afirmar que a técnica literária tem muitas ligações com o sexo, sendo a mesma coisa repetida obsessivamente, muitas vezes, com mínimas variações.
E quanto a variações sobre o mesmo tema, vale realçar que Hilda Hilst, a senhora obscena por excelência, aparece em quatro seções do livro, com seu humor ácido, nos pequenos textos numerados Novos antropofágicos I, III, IV e VI. Ler Hilda Hilst, sobretudo sua ficção, é um retorno à sua sempre renovada investigação, perquirição e desejo pela língua. O texto dedicado à sua obra, intitulado Da medida estilhaçada, escrito por Eliane Robert Moraes para a publicação Cadernos de literatura brasileira, do Instituto Moreira Salles, traz com lucidez e perspicácia uma análise do trabalho com a língua n’O caderno rosa de Lori Lamby. Eliane evoca a “moral da história” da novela erótica de H. H.: “escrever significa correr o risco de explorar uma língua misteriosa que, com cavidades e reentrâncias secretas, impõe uma cadeia sem fim de ciladas para o autor.” O caderno rosa de Lori Lamby não é um conto e não faz parte da coletânea O corpo desvelado, mas tem lugar cativo na literatura erótica brasileira e, “disfarçado de pornografia, é uma fina reflexão sobre o ato de escrever como possibilidade de jogar com os limites da linguagem”.
Incontornável também, se falamos de Hilda Hilst, é Georges Bataille, escritor representativo das pesquisas, livros e ensaios de Eliane. Para desviarmos um pouco de seu livro mais comentado, O erotismo, que começa com a célebre frase: “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”, cito aqui um breve fragmento do ensaio As lágrimas de Eros, publicado em 1961. Para Bataille, “o fato de sermos humanos e vivermos sob a sombria perspectiva da morte é o que nos coloca diante da violência exasperada e desesperada do erotismo”. Bataille é categórico na sua ideia do vínculo do erotismo com a morte, desde as pinturas na caverna de Lascaux até o culto essencialmente trágico de Dionísio. E não por acaso, alguns contos da seleção de O corpo desvelado atravessam essa fronteira entre eros e tânatos, desvelam corpos sujeitos à aventura avassaladora de dispêndio e destruição. Desde Morte de mim, de Cíntia Moscovich na evocação da petit mort: “Veio o tempo de meu falecimento, e os lábios frios tocaram os meus quando já me estava indo. Beijou-me na hora de minha pequena morte”, passando pela perturbadora narrativa de Régis Mikail, Cosa mentale, até a degradante e sacrílega epifania de José Silvério Trevisan em Latin lovers:
E sentiram ambos que a vida ia se acabando, a única que eles tinham, mas não pareciam preocupados. Conseguiram ainda chupar o pau um do outro. Até que o guarda voltou e, por ordem de seu superior, puxou os dois para fora da viatura. O sangue escorria pelo chão. O guarda apanhou gasolina e jogou em cima dos dois e botou fogo nos dois. E salvou-se de um grande escândalo, com alívio. Quando sentiu o cheiro de carne queimada, seu pau endureceu e ele correu pra trás de uma parede e tocou uma punheta e gozou tanto que não queria mais parar. E então saiu correndo para a sala do seu superior e lhe disse sem sequer fazer continência:
— Quero dar o cu, excelência.
Também não é por acaso que, logo na primeira seção do livro, um conto de Fernando Paixão intitulado Ânus solar seja uma referência explícita ao texto surrealista de Bataille, com o mesmo título, publicado em 1931, no qual escritor francês declara que nada há de tão ofuscante que se possa comparar ao ânus, a não ser o Sol. Não se trata apenas de uma coincidência de título, o texto de Paixão é uma epifania, uma homenagem ao “fosso fabuloso”, muito em consonância com o estilo de escrita arrebatada e lúbrica do “velho batalha” que podemos encontrar também em seu texto de estreia com a novela erótica A história do olho (escrito ainda sob o pseudônimo Lord Auch), cuja apresentação, na edição brasileira da Cosac Naify, é de Eliane. Mas como diria Fernado Paixão, “essa já é outra história”.
Manifesto contrassexual
Outros erotismos do livro parecem prenunciar o manifesto contrassexual de Paul Preciado. É o caso do conto inédito de Amara Moira Quer trocar?, em que as fronteiras entre os gêneros homem, mulher, trans se misturam e se confundem, num jogo desejante de trocas. A narrativa reafirma o pensamento de Preciado de uma reivindicação do desejo não mais fabricado pelo campo social, que circunscreve nossas sexualidades em operações naturalizadas de repetição e recitação dos códigos (masculino e feminino). O conto de Amara Moira demonstra como se manifesta a literatura em oposição ao sistema heterocêntrico e apresenta o desejo “modificado com o uso das ferramentas da metáfora e da imaginação, da poesia e da experiência somática”. Veronica Stigger, no conto A chuva anuncia:
Um monte de caralhos de todos os tamanhos e formas caindo do céu. […] Caralhos brancos. Caralhos rosas. Caralhos pretos. Caralhos retos, apontando para frente. Caralhos mais que eretos, apontando para cima. Caralhos tortos, apontando para o lado. Dois caralhos em um só, tipo os que se veem em filme pornô de aberração. Caralhos circuncidados. Caralhos carnudos. Caralho a quatro. Todos duros e, como se diz, prontos para o combate. Um paraíso.
O humor do instigante texto de Stigger revela um subtexto que apaga a figura masculina, são apenas caralhos risíveis, que tanto divertem como acabam por assustar as mulheres, perdendo sua serventia de entretenimento no sétimo dia. A chuva aponta para a desestabilização da ideia falocêntrica forjada pela bioescritura do sistema sexo/gênero.
A cinta-caralha, da narrativa iniciática Contramão, de Reinaldo Moraes, é quase a protagonista da relação sexual entre as duas mulheres — que dominam a cena — e o macho iniciado. É interessante perceber o desconforto do personagem “enrabado”, Kabeto, e a destreza e liberdade com que as duas personagens femininas Audra e Mina manejam o dispositivo e sua vida sexual.
Preferia um de carne, Kabeto? Muita gente gosta. Muita! Audra reforçou: Eu gosto, a Mina gosta. O Pisano, a Melissa, a Sulamita, todo mundo gosta. O seu amigo japa, que é coreano, gosta. Mina carca: Só o nosso véio machão hétero reprimido decrépito aqui é que se dá o direito de não gostar, sem nem ter experimentado pra ver como é que é.
Para Preciado, “o dildo faz parte de uma economia da multiplicidade, da conexão, da partilha, da transferência e do uso”. É um dispositivo essencial na composição de um manifesto contrassexual, na medida em que não está inscrito no corpo como identidade ou completude orgânica. Assim como o ânus, que também ocupa o centro transitório de um trabalho de desconstrução da heteronormatividade. No manifesto, o escritor feminista transgênero institui o ânus como o centro erógeno universal de excitação e de prazer, porque não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos e tampouco está destinado à reprodução ou baseado numa relação romântica.
O manifesto propõe uma reescrita dos corpos sexuais e dos erotismos, rompendo com as narrativas modernas do colonialismo heterocapitalista, como o darwinismo, o marxismo e a psicanálise, questionando o binarismo biológico e a reprodução como centro da economia política, e reabilitando o “fetiche” como tecnologia cultural e possibilidade de uso por qualquer corpo sexual.
Em que grau de liberdade e experimentação de afeto estarão as sexualidades na próxima seleção de contos eróticos de Eliane Robert Moraes? Considerando o que temos sentido na pele, com a velocidade das transformações do mundo contemporâneo, há muito por vir. As sexualidades, os corpos atravessados pelo erotismo, as maneiras de lidar com o desejo se transformam como as línguas e os sistemas de comunicação. E o monolinguismo sexual há muito não dá conta dessas transformações.
A título de informação, ainda neste mês de junho, a pesquisadora de literatura erótica lança a edição revista e ampliada da coletânea O corpo descoberto – Contos eróticos brasileiros (1852–1922), que antecede O corpo desvelado, e prepara a segunda edição, também revista e ampliada, da Antologia da poesia erótica brasileira, para 2025. E ainda neste ano, tem programada a publicação de uma coletânea de ensaios com a temática da literatura erótica brasileira. A pesquisa da “coisa erótica” na literatura é desdobrável e infinita, e assim como as línguas e seus movimentos, escapa a um saber concluído e estabelecido, porque afinal, “pouco se sabe do corpo erótico. E esse pouco, na literatura, é legião.”