Múltiplas passagens

Em "Noite do oráculo", Paul Auster constrói labirintos de linguagem cujos caminhos sempre se entrecruzam
Paul Auster: citações, afinal, são marcas da literatura de Auster
01/07/2004

“Pensamentos são reais. Palavras são reais. Tudo que é humano é real, e às vezes sabemos coisas antes que aconteçam, mesmo sem ter consciência disso. Vivemos no presente, mas o futuro está dentro de nós a todo momento. Talvez isso seja escrever. Não registrar eventos do passado, mas fazer as coisas acontecerem no futuro.”

O autor das afirmações acima é o escritor John Trause, cuja renomada obra foi abordada com presteza pelo biógrafo americano James Gillespie, autor do hoje célebre O labirinto dos sonhos: uma biografia de John Trause, publicado inicialmente em 1994, 12 anos após sua morte. Trause deixou um livro póstumo, O estranho destino de Gerald Fuchs, cujo texto o autor abandonou sem as últimas revisões (morreu vítima de uma embolia pulmonar, fruto de uma trombose que o atacou em seus últimos dias de vida).

Se, como diz o escritor, palavras são reais e escrever é fazer as coisas acontecerem no futuro, John Trause é, de fato, um ser que habita (habitou? habitará?) o mundo real e, portanto, dono de renomada obra abordada com presteza por célebres biógrafos. Uma busca por seu nome na internet revela significativas 266 ocorrências. O número é quase tão relevante quanto os resultados, pesquisados a partir do nome Michael Schoenhals, autor do importante estudo A revolução cultural da China, em que se descreve o turbulento período político do gigante asiático.

No entanto, qual a diferença entre os autores? Excluídas diferenças de estilo, podemos dizer que um realmente existe, enquanto o outro não passa de ficção, de um personagem criado apenas para fazer com que alguém creia em sua história. Quem, então, é real e quem é mera invenção? Para o escritor americano Paul Auster, autor de Noite do oráculo (tradução: José Rubens Siqueira), Trause e Schoenhals são igualmente reais, muito embora um viva apenas nas páginas de seu livro mais recente e outro habite, em carne e osso, ambientes como a Universidade de Estocolmo, na Suécia.

A citação da fala de Trause que abre este texto pode ser considerada a síntese de Noite do oráculo. O que faz um escritor? Revisita episódios do passado ou, de alguma forma, prevê, com suas escrituras, acontecimentos futuros? A indagação não é original. A dúvida é tipicamente borgeana, embora o cânone argentino não seja literalmente citado em Noite do oráculo, ao contrário de um bom número de autores igualmente reais, como o professor Schoenhals. Mas citações, afinal, são marcas da literatura de Auster, e ele não abandona uma das principais características de sua obra em seu novo romance, evidentemente mais vigoroso (ainda que mais curto) do que seu último, O livro das ilusões.

O que Auster propõe em seu livro mais recente é um novo um labirinto cuja entrada e saída se confundem e cujos caminhos se entrecruzam a todo momento. Há quem chame o estilo de “jogo de espelhos”. Há quem fale em simples metalinguagem. Há, ainda, quem sugira uma “transliteratura”, espécie de gênero em que o autor oferta diversas possibilidades de leitura para um mesmo texto. Pouco importa o rótulo. A fórmula faz sucesso e vem arregimentando fãs ardorosos em todo o mundo especialmente a partir do bem-sucedido A trilogia de Nova York, que traz uma estrutura narrativa em contos que se assemelha bastante à de seus romances.

Noite do oráculo conta a história de Sidney Orr, escritor que sobreviveu a um violento trauma ocorrido após uma queda nas escadarias de uma estação de metrô. Recuperando-se de sua temporada no hospital, Orr encontra na loja de um comerciante chinês um caderno azul, de fabricação portuguesa, com o qual retoma sua atividade literária fervorosamente. Ao escrever, Orr recupera a sina do personagem Flitcraft, de O falcão maltês, de Dashiell Hammett. Flitcraft é um homem comum que, um belo dia, escapa da morte quando a viga de um prédio em construção despenca do décimo andar e não o atinge por questão de centímetros. A partir do episódio, decide que não pode continuar vivendo da mesma forma que vivia antes e, sem avisar ninguém ou tomar qualquer providência, decide mudar de cidade e iniciar uma nova vida.

Na narrativa de Orr seu Flitcraft chama-se Nick Bowen, um editor de livros que, pouco antes de sofrer um acidente parecido com o do personagem de Hammett, recebe os originais de um livro inédito da renomada escritora Sylvia Maxwell, já falecida. O nome do livro: Noite do oráculo. Quando é Bowen quem foge de sua vida, o manuscrito torna-se a única coisa na qual se agarra. O Noite do oráculo de Maxwell, por sua vez, conta a história de Lemuel Flagg, um tenente britânico, que, ao escapar da morte (novamente) em um combate da Primeira Guerra Mundial, passa a ter visões perturbadoras do futuro.

A história criada por Auster é como aquelas embalagens de presente em que uma caixa contém outra caixa, que contém outra caixa, que contém outra caixa, que por sua vez contém outra e assim por diante. Como elemento extra, tudo o que Orr escreve no mágico caderno azul acaba se tornando real, de uma forma ou de outra. E, novamente, o autor recorre a uma passagem (qual ele afirma ser verídica) que dá conta de um escritor francês que, após escrever um poema épico cujo tema era a morte por afogamento de uma criança, perde sua filha menor nas águas agitadas do Canal da Mancha — e, desde então, decide nunca mais escrever coisa alguma sob pena de sofrer do poder profético da palavra.

Paul Auster afirma que Noite do oráculo não passa de uma história de amor, a de Sidney Orr por sua mulher, Grace. Não deixa de ser verdade, apesar da declaração ser carregada de exagerada modéstia, uma vez que o próprio autor afirma ter demorado dez anos para concluir a obra. Todas as ações do protagonista, incluindo a obra literária sobre a qual se debruça, têm como objetivo efetivo a manutenção do relacionamento com sua esposa. Ainda assim, Noite do oráculo presenteia os leitores com mais do que a mera construção de um caso amoroso. Por exemplo, o exercício de adaptação para o cinema de A máquina do tempo, de HG Wells. Auster, que já se aventurou na sétima arte roteirizando os interessantes Cortina de fumaça e Sem fôlego e dirigindo o enigmático Os mistérios de Lulu, critica o clássico da ficção científica e propõe um novo argumento para a obra, em que um viajante do passado e uma viajante do futuro se encontram em 1963 e decidem impedir o assassinato de John Kennedy.

Noite do oráculo também reforça certas obsessões de Auster, como o fetiche por cadernos. O objeto está presente no conto Cidade de vidro, de A trilogia de Nova York, como o instrumento de trabalho do protagonista, assim como nomeia um de seus livros (O caderno vermelho), não publicado no Brasil, que reúne uma coleção de entrevistas e ensaios em que ele discorre sobre “a necessidade de se quebrar a fronteira entre viver e escrever” e sobre o uso de gêneros específicos para “penetrar em questões de memória e identidade” — simplesmente os dois maiores pilares de sua obra. Além disso, apesar do Flitcraft de Hammett ter sido citado nominalmente apenas em Noite do oráculo, seu mesmo “problema” aparece em Leviatã e O livro das ilusões.

Os argumentos de discussão a respeito de Noite do oráculo, enfim, podem satisfazer ao mesmo tempo críticos e admiradores ferrenhos. Para os primeiros, tudo não passa de uma repetição sem qualquer originalidade. Para os últimos, cada nova oportunidade de ler Auster significa o encontro com o domínio da exploração máxima da linguagem, com deliciosas tramas policiais e com inquietações filosóficas dignas de um existencialista contemporâneo. E nessa toada, que pode oferecer horas agradabilíssimas de leitura como também exige um mínimo de instrumentação do leitor, Auster vai trilhando seu caminho como um dos grandes nomes vivos da literatura mundial.

Noite do oráculo
Paul Auster
Companhia das Letras
232 págs.
Ricardo Sabbag
Rascunho