Há alguns livros que, pelo impacto que provocam no leitor, criam imagens realmente vivas em sua cabeça. Eventualmente, as imagens têm alguma semelhança com algo já visto ou vivido antes. Quando isso acontece, as imagens são ainda mais fortes, mais intensas, mais reais. Mesmo se falamos de ficção, dá-nos a impressão de que o livro fala de gente verdadeira e que pode estar ao nosso lado.
Ler O museu do peixe morto, último trabalho do escritor norte-americano Charles D’Ambrosio lançado no Brasil, me deu a impressão de estar vendo com vida os personagens retratados pelo pintor Edward Hopper (1882-1967), também norte-americano. Hopper não fez muito sucesso quando vivo, talvez porque sua representação dos Estados Unidos fosse exatamente contrária à imagem que o país queria vender: um lugar de gente feliz, de famílias enormes, de prosperidade material. Hopper retratava a solidão das pessoas nas grandes cidades, a impossibilidade de se conectar com qualquer outro ser humano, ainda que mergulhado em multidões, a profunda melancolia com a ausência de uma perspectiva de um futuro melhor. D’Ambrosio mostra, com sua literatura, que os Estados Unidos podem ter mudado materialmente, mas sua essência continua a mesma retratada por Hopper.
Os personagens de D’Ambrosio têm leves distúrbios de personalidade. Eles buscam desesperadamente alguma conexão com o mundo, acreditam piamente que estão fazendo o que é necessário para que isso aconteça, mas não conseguem enxergar que estão errados. Essa desconexão permeia todo o livro, e é dela que brota a força de O museu do peixe morto. Todos os protagonistas dos oito contos são de alguma maneira humanos um pouco desviados da normalidade. Esses desvios foram provocados por algum episódio em suas vidas que nos é permitido conhecer durante a leitura e, como são fatos corriqueiros, também ficamos impressionados com a possibilidade de esses desvios acontecerem conosco. Se acontecessem, será que reagiríamos da mesma maneira?
Aridez
Pegue o conto O esquema geral das coisas. Nele, um casal de viciados ou ex-viciados, não se tem certeza, perambulam pelo interior dos Estados Unidos tentando conseguir dinheiro para uma associação que cuida de bebês de drogadas. Se no início a dupla ainda tinha algum escrúpulo e repassava à associação algo do que arrecadava, durante o conto eles já estão esmolando o que podem usando a desculpa dos bebês para sobreviver. E sobreviver é a palavra correta. Não há perspectiva de melhora para eles, apenas a esmagadora realidade. E cada contato de Kirsten, a mulher da dupla, com os potenciais doadores é um mergulho nas profundezas da alma. Pessoas que vivem com dor pela perda ou ausência de algum ser amado, que têm feridas abertas pelos erros cometidos e que não conseguem se perdoar, e que no entanto não provocam em Kirsten o menor remorso. Quando este parece próximo de chegar, há uma barreira que impede Kirsten de ir em frente e sofrer o que é necessário.
Em Drummond & Filho, D’Ambrosio fala de um homem que foi abandonado pela mulher e vive com seu filho esquizofrênico de 25 anos de idade. No início do conto achamos que o filho é apenas um incapaz, um preguiçoso contumaz que se recusa a fazer qualquer coisa. À medida que conhecemos um pouco mais de Drummond, o pai, vemos que o homem carrega um peso enorme nas costas: a culpa pelo filho, a dor da separação da mulher que tenta ser encoberta por um sentimento de compaixão pela situação dela (“Ela tinha que fazer isso mesmo”) e a idéia de ter que mandar o filho para uma instituição especializada para poder se ver livre do fardo. D’Ambrosio, que tem um irmão esquizofrênico, sabe do que fala e transmite com maestria todo o peso que Drummond tem sobre os ombros.
Apesar dos temas áridos, D’Ambrosio não lança mão de virtuosismo para escrever. Sua linguagem é curta e precisa, ao estilo do realismo já inaugurado por Ernest Hemingway, e a tradução de Dóris Fleury ajuda ao manter o estilo do autor. Em uma comparação com A ponta, seu livro de estréia escrito onze anos antes deste, o autor está ainda mais preciso e cirúrgico. Há um controle absoluto do que se diz, talvez até excessivo. Isso porque todos os contos terminam com um certo mistério, com uma ponta aberta deixada para o leitor concluir depois. No entanto, os personagens ficam contidos pela virtuose de D’Ambrosio e não dão vazão completa à sua loucura, são vulcões prestes a explodir, mas que não explodem.
Os personagens esquisitos são a tônica. Tem o órfão que cresce em um orfanato pois o pai tornou-se incapaz após o acidente que matou a mãe. Tem o roteirista de Hollywood, rico e famoso, internado em uma clínica psiquiátrica, e que inicia um relacionamento com uma mulher que cria cicatrizes com o fogo em seu próprio corpo. Tem o homem que é casado com uma atriz e perdoa as traições dela sem nem saber por quê. Talvez o mais sensato de todos é o que rouba as cinzas do avô recém-falecido e inicia uma viagem na direção do mar para encontrar um lugar onde jogá-las. Esse lugar, segundo ele, será descoberto na base do feeling, pois seu avô não falou nada sobre a própria morte. Mas não podemos esquecer da trupe que faz parte do conto que dá nome ao livro, um grupo de desajustados que se reúne para gravar um filme pornô ilegal (lá nos EUA, isso significa não sindicalizado). Todos, de alguma maneira, têm algum desvio na personalidade, o que torna o encontro dos desajustados quase um convescote entre amigos. Mas sente-se o desconforto de todos na pele, a cada frase.
D’Ambrosio é muito bom ao retratar essa faceta da personalidade humana e em conquistar o leitor com sua prosa direta, sem firulas, mas com espaço para a divagação quando ela faz sentido. Em alguns momentos, podemos até querer que ele deixe seus personagens viverem um pouco mais, soltarem as rédeas e ver no que dá. Mas talvez o autor tenha as suas idéias para cada um deles e prefira que nós as tenhamos também. De todo modo, é um novo trabalho muito bom deste americano que vem se destacando no cenário literário de lá.