Há muitas maneiras de ficar desamparado neste mundo. As protagonistas de Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, estão desamparadas cada uma a sua maneira. O romance chegou às prateleiras quatro anos depois de O inventário das coisas ausentes, também pela Companhia das Letras. Na contracapa do novo livro, a pesquisadora, escritora e crítica Heloisa Buarque de Hollanda nos explica que “Com armas sonolentas” é um verso da poeta e freira mexicana Juana Inés de la Cruz, morta em 1695, artista fundamental para o feminismo e a literatura latino-americana. Essa inspiração faz da obra de Carola Saavedra um marco sobre mulheres profundas e sonhadoras, mas que ao mesmo tempo não se sentem à vontade na vida.
O livro intercala a história de três mulheres: Anna, Maike e uma terceira personagem, sem nome — é possível interpretar esse anonimato sob ao menos duas perspectivas conforme o desenrolar da narrativa, mas vale deixar o leitor livre para pensar sobre. Todas elas, de origens e perfis extremamente diferentes, se encontram na condição de “estrangeiras”, seja no sentido geográfico, social ou emocional.
Anna é uma atriz que se muda para a Alemanha, estimulada pelo relacionamento com um diretor e pela possibilidade de encontrar melhores oportunidades. Maike é uma jovem estudante vítima das próprias memórias. Ela se deixa levar pelo curso do destino até o Brasil, para viver descobertas, no fundo, sobre si mesma. A terceira personagem é uma mulher mineira que se muda para o Rio de Janeiro para trabalhar como doméstica, com uma vivência complexa e difícil de descrever, marcada por afetos e abandonos.
As variações na linguagem e estrutura textual contribuem para a formação das imagens, vozes e personalidades diversas das três mulheres. Isso fica mais cristalizado principalmente na história da terceira personagem, dona de um discurso rápido e simples, embora altamente reflexivo, relembrando sempre que vive num “quarto sem luz sem janela”. Considerando essa estrutura e a dramaticidade da história, pode-se dizer que esse é um dos pontos altos do livro.
As personagens são complexas, têm em si sentimentos contrastantes. As transformações pelas quais elas passam, por vontade própria ou empurradas pelas circunstâncias, ajudam a moldar personalidades extremamente profundas. No caso de Anna, por exemplo, a impressão é de que ela está vivendo um grande sonho — ao menos na visão de outras pessoas — mas que para ela é principalmente frustração.
Sempre lhe pareceu que havia uma dissonância entre o que desejava e o que realmente queria. Como se todo desejo viesse encoberto por uma espessa camada de autoengano, um inevitável mal-entendido. E satisfazer suas vontades ou vê-las satisfeitas nada mais era do que o prenúncio de uma queda, cada vez mais célere, cada vez mais íngreme. E assim, a cada sucesso, uma fagulha de infelicidade se imiscuía, lenta e imperceptível.
Maternidades
Com armas sonolentas surgiu de um interesse de Carola Saavedra em pesquisar romances brasileiros que retratassem relações entre mães e filhas. Com poucos exemplos encontrados, ela decide abraçar o tema em uma obra própria, e aborda o assunto com perspectivas pouco convencionais na ficção. A inquietação inicial da escritora, sobre esse tipo relação tão básica para a humanidade não estar presente na literatura brasileira, resultou num romance de formação. Ele revela as múltiplas possibilidades da maternidade e as conexões entre mulheres de diferentes ambientes e gerações.
Minha mãe só aparecia quando tinha certeza de que Lupe não estava, trazia quantidades enormes de comida, quase tudo comprado em caríssimas delicatessens, azeite de oliva que custava o salário de uma pessoa, trufas colhidas por porcos no Piemonte, especiarias orgânicas da Índia, chegava abrindo as janelas, limpando a pia da cozinha, passando os dedos pela parede do banheiro, quando foi a última vez que este apartamento passou por uma faxina?
Esclarecer aqui muitos detalhes desse segmento do enredo, sobre as relações entre mães e filhas, é tirar do leitor a intensidade da experiência toda vez que essas cenas aparecem. São temas espinhosos: a recusa da maternidade, a vergonha ou raiva da mãe, e muitas outras sutilezas perceptíveis em breves diálogos ou reflexões das personagens. O livro tenta questionar a naturalidade do desejo de ser mãe, apresentar algumas possibilidades de dúvida ou insatisfação que podem surgir dessa experiência. Assim como o sentimento das filhas pelas mães: mais confuso e cheio de teias do que costumamos compreender.
Surrealidade
Nas primeiras páginas, o livro transcorre com certa uniformidade, até que o desfecho de Anna pega o leitor de surpresa: é a primeira aparição de um elemento surreal, responsável por trazer mais dramaticidade para a obra. Carola Saavedra é especialmente habilidosa ao narrar coisas aparentemente sombrias com naturalidade, sem exageros, numa estrutura crua que nos ajuda a embarcar nos elementos externos. A partir desse desfecho, o livro só cresce. Ainda que o leitor esteja na expectativa de encontrar outras situações surreais, elas são colocadas na medida certa, e não perdem a capacidade de surpreender. Tais passagens nos levam a um ambiente semelhante a outra dimensão, uma mistura da imaginação das personagens com reflexos de grandes traumas pelos quais elas passaram. Há um pouco de surrealidade, mas também de espiritualidade nesses elementos.
Memória e ancestralidade
Para além das relações maternas, o livro promove uma discussão sobre conexões entre mulheres, sejam elas da mesma família ou não. Todas as personagens parecem viver uma espécie de exílio, buscando uma identidade para si, extremamente dependente das suas relações com outras mulheres para ajudar nessa construção.
Há uma segunda parte no romance em que ele aproxima as personagens e se torna ainda mais reflexivo. Fica muito evidente que Com armas sonolentas trata, em meio às trajetórias das três personagens, do valor à sabedoria das mais velhas, da troca de experiências entre mulheres. Se somarmos à idade de uma mulher a história das suas antepassadas, sua memória familiar, teremos séculos de sabedoria dentro das poucas décadas de vida. Essa é a complexidade captada pelo livro. As protagonistas realizaram uma travessia dentro da própria memória e querem pertencer a algum lugar, mas de certa maneira pertencem umas às outras e a sua própria história, que as acompanha independente de onde estejam.