É uma tópica comum em discussões literárias recentes um apagamento da divisão antigamente clara entre ficção e não-ficção, categorias a princípio tão distintas e distantes que uma chega a ser nomeada como sendo o negativo da outra, coisa e não-coisa, a ficção recebendo essa estranha primazia nominal. Argumenta-se que toda ficção tem diversos aspectos da realidade como matéria-prima básica, como sua ambientação, personagens (ou apenas certos comportamentos) que, às vezes, são inspirados em pessoas reais, ou mesmo a função da verossimilhança no texto como um todo, tornando possível ou não ao leitor tomar o livro como aceitável; o lado complementar da argumentação, contudo, tem repercutido mais, dizendo que toda história com pretensões de veracidade passa por um processo cuidadoso de seleção e construção, partes que são deixadas de fora e outras recebendo ênfase, seja por detalhamento ou por organização do narrar da história, e toda essa manipulação comprometeria a transparência supostamente tida como ideal ou natural no gênero.
O tácito entendimento anterior que uma pessoa não haveria de expor seus podres de maneira impiedosa consigo própria, ou pelo menos de maneira que poderia se pretender não tendenciosa, se estendeu para a apreensão da não-ficção como um todo: argumenta-se que ninguém se lembra dos eventos de sua vida da forma como eles aparecem em uma linearidade textual, em ordenação de detalhamento que incluiria de imediato e de maneira fácil de acompanhar aspectos do clima, vestuário, localização, ou, para ser ainda mais explícito, não há quem se lembre com exatidão de cada palavra dos diálogos mais importantes de sua história pessoal, ainda que do texto é comum que conste cada fala, linha por linha, faltando ao final do livro o agradecimento ao taquígrafo que acompanhou os acontecimentos de sua vida. No processo de reconstituição, haveria um falseamento ou pelo menos um artifício que colocaria quem escreve no lugar mais parecido com o de um autor (com grande poder de decisão) do que um mero comunicador da realidade narrada.
Para acrescentar outras complicações, um dos filões literários mais quentes do momento é o da autoficção, em que o texto empreende por si mesmo o procedimento de apagar quaisquer divisórias, indo além da mera troca de nomes do roman à clef ou a adoção de um protagonista alter-ego-de-quem-escreve. As formas têm tanta variação quanto o número de títulos: seja o aproveitamento declaradamente distorcido dos eventos da vida real, com intuitos diferentes, ou o uso da técnica narrativa romanesca ininterrupta (sem as pausas reflexivas de maturidade, da época da escrita do texto), os resultados variam do enriquecimento das possibilidades da forma literária ao mero tomar emprestada da realidade alguma importância ou relevância automática para sua ficção, gênero textual há décadas tido como um pouco moribundo.
Quem se interessa por essas questões se vê diante de centenas de livros escritos nesse espaço cinzento, sentindo a natural compulsão de investigar mais por meio de obras que se especializam nisso, a fim de entender qual a situação contemporânea da forma romanesca. Um erro previsível na empreitada seria deixar de ler textos do outro lado da questão, do gênero que apenas eventualmente aspira a valores literários, a não-ficção de pretensões artísticas ou humanas maiores do que o matéria específica discutida em suas páginas.
F de falcão, de Helen Macdonald, vencedor de dois prêmios literários importantes, tem sido um dos maiores destaques recentes desse gênero de “romance de não-ficção”, em que a experiência de subjetividade da autora se coloca par a par com a matéria supostamente central ou objetiva do livro. É, inegavelmente, um livro de grande inteligência, sensibilidade e técnica de escrita, com várias passagens em que se percebe o saldo real do tempo de reflexão e de construção textual. No entanto, a experiência de leitura para este resenhista teve valor principalmente para trazer uma luz nova (ou antiga) para as discussões a respeito dessa nova ausência de separação entre a ficção e a não-ficção.
Luto e falcões
A premissa do livro é simples: em meio ao processo de luto pelo pai recém-falecido e uma pequena crise profissional, Helen decide adquirir um pássaro para treinar na arte da falcoaria. Em vez de uma espécime mais fotogênica e recomendável, acaba por escolher um açor, ave famosamente difícil de tratar. Seu interesse obsessivo por falcões é de longa data, assim como é extensa a sua leitura no assunto, numa erudição fluente que aparece com naturalidade pelo texto inteiro. Acompanhando o tumultuado processo de convívio e aprendizagem, a autora retrata parte da história de vida de T. H. White, autor de uma série muito popular de romances arturianos que chegaram a ter adaptação pela Disney e pela BBC, o interesse dele por falcões e sua conturbada história pessoal de homossexualidade reprimida.
O livro de Helen é muito recomendável a qualquer pessoa que ache que a figura do falcoeiro tenha algo de encantador, a ave gigante pousada no braço de alguém que se dispôs a conseguir fazer um animal semidomesticável obedecer aos seus comandos. Qualquer outro que não perca o fôlego diante da suposta majestade e potência da criatura não vai encontrar no resto do conteúdo do livro muito de interesse, e isto em um sentido muito literal: essa falta de interesse não se dá por qualquer incapacidade da autora de tratar de outros assuntos, e sim por sua aparente indisposição de diluir o assunto central do livro em outras reflexões, quase tudo sempre girando ao redor de falcões. Em uma equação de resumo simplória do livro, em que ele seria composto de algumas partes de falcoaria e outras de luto, a proporção desses elementos seria aproximadamente noventa e cinco da primeira categoria para cinco da segunda. Se o propósito dela ao adotar a ave era para deixar de pensar obsessivamente no fim da vida de seu pai, o texto demonstra o sucesso imenso da empreitada: sua subjetividade lutuosa aparece muito ocasionalmente, em momentos críticos, mas que não chegam a se sobrepor às centenas de páginas detalhando (com habilidade descritiva, vale ressalva) os procedimentos falcoeiros, que têm arco narrativo e dramaticidade, mas que não é capaz (ou pelo menos não foi capaz, no caso desse resenhista) de superar certa incomunicabilidade do fascínio hiperespecífico.
A experiência de leitura acaba se assemelhando a uma jogada de azar em que por acaso em um jantar se senta ao lado de uma pessoa apaixonada por carros, que fala sem parar de modelos, anos, chassis, válvulas, blablablá, sem nunca encontrar a brecha para mudar de assunto ou confessar que, de sua parte, mal se consegue distinguir um sedã de uma caminhonete. Com seu título em paródia de alfabetização, não cabe a qualquer leitor reclamar de propaganda falsa, apenas procurar outro caminho de tirar proveito da leitura, para além do prazer de ler um livro de prosa bem composta.
Caso se tratasse de um romance, com a abertura maior proporcionada pelo ficcional, seriam cabíveis uma série de críticas ao livro: certo aspecto inconvincente do processo substitutivo da personagem principal ao trocar as reflexões sobre mortalidade pela falcoaria, a imensa desproporção das partes do livro, sem que essa desproporção pareça trabalhada propositadamente, ainda que nas entrelinhas, ou alguma dramaticidade exacerbada em alguns trechos de fim de capítulo (como a agressividade da ave voltada para ela tendo possibilitado o desbloqueio criativo para escrever o discurso para o enterro do pai). No entanto, por se tratar de uma história real, e o livro é parte do processo de entendimento e superação pessoal dos acontecimentos narrados, as críticas passam a ser feitas com várias ressalvas, pois não estava disponível à autora a liberdade que um ficcionista teria para decidir a respeito do que haveria de ser narrado, assim como não cabe ao leitor reclamar em um tom de voz tão assegurado que o luto íntimo de determinada pessoa é em vários momentos um pouco tedioso.