Minha inesquecível professora de literatura, Gilda Korff Dieguez, disse em sala de aula: “o amor não existe”. E o debate teve início. Não concordei totalmente, mas naquela época já alimentava minhas desconfianças. Com o passar do tempo, fui me dar conta de que o amor existe, claro que existe, mas como aventura. E as aventuras não duram muito tempo.
Foi o que faltou ao personagem de Woody Allen em Manhattan e permitiu a partida da personagem vivida por Mariel Hemingway. Faltou coragem para a aventura. Existia na história outro componente bastante significativo: o fato de ele contar vinte e cinco anos a mais que ela. Entra em cena o tempo, mas o que vem a ser o tempo? Resíduo do medo ou da acomodação? Quem sabe? Creio que o tempo seja um buraco negro no pensamento.Esse buraco engoliu o espírito da aventura, exilou o amor.
Essas reflexões me assaltaram durante a leitura de A duas vozes, em que Eduardo Jardim promove um encontro fictício entre o ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz e a filósofa americana de origem judia e alemã Hannah Arendt. As teorias desses pensadores, fundamentais para a compreensão do século passado, são expostas em diálogos concebidos pelo autor. No mais das vezes, suas idéias coincidem, uma discordância aqui, outra ali servem apenas para aumentar a importância desse arriscado trabalho. Arriscado porque a realização de encontros fictícios entre seres reais acende vários pavios, todos muito curtos, onde o mais breve cochilo pode jogar tudo pelos ares.
Medida de segurança 1: conhecer profundamente biografia e obra dos envolvidos.
Medida de segurança 2: não permitir à ficção vôos além do real.
Complicado? Sem dúvida. Daí a quase inexistência de obras desse teor, afinal de contas quem quer correr riscos? O amor já não é motivador dos mais eficazes, o que dizer dos riscos intelectuais, geralmente escudados na mais tacanha vaidade.
Felizmente A duas vozes escapa à mesmice e corre o risco. Cabe lembrar que obra desse porte, por mais fidedigna e séria, é bastante vulnerável, como se o autor tivesse a obrigação de abarcar todos os aspectos da vida dos personagens. Naturalmente, surgirão aqueles que esperavam maior abordagem, ou ácidas especulações a respeito da relação Arendt/Heidegger, maior aprofundamento da questão nazista, ou a participação política de Paz, até onde a poesia o afastou ou o conduziu à realidade, sobretudo do México, sua participação no movimento surrealista, genuína ou oportunista.
A duas vozes não deixa de ser um “exercício de admiração” e não há nenhum demérito nisso. Muito pelo contrário. Embora a fala de Paz ao enaltecer e emprestar significados e atribuições à poesia, em alguns momentos, margear a pieguice, assim como a assepsia conferida por Arendt à política, são tropeços que não comprometem a caminhada. O autor conseguiu criar diálogos onde não se percebe muita ousadia por parte dos personagens; as discordâncias, breves, se dão no palco da diplomacia. Caso Arendt e Paz tivessem realmente se encontrado, teria sido nessa harmonia?
A ressalva que faço é a seguinte: já que estamos no terreno do imaginário, por que não apimentar um pouco mais essa conversa? Creio que enriqueceria a obra. Mas note bem, apressado e intrigante leitor, isso não significa apontar defeito, mas preferência pessoal, apenas isso, sugestão de leitor, fui claro?
Sem grandes sobressaltos
Importante alertar para o fato de que Octávio Paz na maioria de suas falas faz alusão à poesia, a sua de modo geral, à importância do amor, do sonho, da utopia; Hannah Arendt, por sua vez, se apresenta de forma mais racional e política. Eduardo Jardim, aqui um de seus maiores méritos, não permitiu maniqueísmos nos diálogos, tampouco tornou matérias exclusivas de um ou de outro. O leitor pode assim “assistir” a Arendt falando de amor e Paz num discurso politizado. No fim das contas, todos nós, intelectuais ou não, temos ao menos um objetivo comum, viver sem grandes sobressaltos.
Outro aspecto dos mais importantes de A duas vozes é o que diz respeito ao tempo, ao futuro para ser mais exato.
Permita-me retomar o Woody Allen do começo, onde em Manhattan o tempo inspira os desencontros amorosos, ora para a mulher que chega tarde e se apaixona por homem casado, ora chega cedo para a menina de dezessete anos que se apaixona pelo homem de quarenta e dois. Ao final perceberão que cedo e tarde não passam de meros disfarces da covardia. Da covardia que nos move.
Feito o desvio, voltemos à pista principal que nos permite avistar o tempo, o tempo apresentado em A duas vozes, mais precisamente a nossa obsessão pelo futuro que nos transforma em reféns da tecnologia, fazendo com que passemos ao largo da essência do existir.
O futuro não passa de um ponto de interrogação. No entanto, como fazemos e idealizamos coisas em seu nome! O cenário onde o homem representa seu triste papel transforma-se a cada momento, mesmo assim o precário ator repete exaustivamente sua atuação. O mais grave, pode crer inocente leitor, no mais das vezes, é aplaudido. Quando essa busca de futuro encontra o TER, ele é aplaudido de pé.
E daí multiplicam-se os covardes, aqueles que não arriscam amar. Entenda amar como algo muito além de uma relação homo ou heterossexual entre dois seres humanos, mas amor no sentido mais amplo, aquele capaz de inspirar transformações.
Com esse amor, tanto filósofo quanto artista concordam plenamente, mas concebê-lo e espalhá-lo, quem se habilita?
A duas vozes é um documento da crise, da crise que sobreviveu aos autoritarismos, às religiões e à tradição. Resumindo: a crise que a covardia humana inventou e a fuga débil em direção a um futuro igual a tantos outros, porque continuaremos os mesmos covardes.
Paciente leitor, leia esse belo trabalho do professor Eduardo Jardim, esse “exercício de admiração” , leia e pense, só o pensamento pode transformar o tempo.
De minha parte, confesso, passados mais de cinqüenta invernos, chegou a hora de combinar amor e aventura. Agora já não tem como durar muito tempo. Num desses dias, então, levarei minha versão do amor a minha querida professora Gilda.