Muito está fora da ordem

Ana Paula Maia apresenta infernos possíveis na Terra em duas novelas reunidas em “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”
Ana Paula Maia por Osvalter
01/07/2009

Sem lixeiros, sem limpadores de fossa, sem balconistas, sem trocadores e motoristas de ônibus, sem porteiros, sem faxineiros, sem uma série de seres invisíveis, a roda do mundo não fluiria. Esses sujeitos, mas tidos como objetos sociais, passam despercebidos, anônimos, no máximo entram para estatísticas, apesar de, ora direis, ouvir estrelas, serem humanos. Possivelmente nenhum desses seres que não aparecem, os lixeiros, limpadores de fossa, balconista, trocadores e motoristas de ônibus, porteiros e faxineiros vão ler, por exemplo, esta resenha. Nem mesmo um livro, recém-publicado, que diz respeito, e muito, ao que eles representam e/ou podem representar.

Ana Paula Maia reuniu duas novelas, textos longos, mas nem tanto, porém, intensos, em uma única edição. O título é Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, com o texto homônimo e também com O trabalho sujo dos outros. As duas experiências ficcionais se completam, podem ser lidas na seqüência, uma é continuidade da outra. O texto é um tanto cru. Não apresenta (intencionalmente) firulas nem exibicionismo de estética. A opção da autora é pela simplicidade. Em ambas as novelas, há personagens em cena, e muitos diálogos. São situações que acontecem em territórios periféricos, que é o que cabe aos seres invisíveis nesse latifúndio.

Amor, por exemplo, não tem espaço nesses enredos de Ana Paula Maia. A luta pela sobrevivência sim tem vez. No primeiro enredo, o que empresta o título ao livro, os personagens desossam porcos, apostam em cães que lutam entre si até a morte, e no pouco tempo livre disponível, os personagens trocam poucas palavras, e um mínimo de afeto. Consomem muito pouco. Comida, principalmente. As rações são mínimas. Eles também, os personagens, matam. Simplesmente, quando é necessário, matam. E jogam os cadáveres para os porcos. Não fica nenhum rastro. Outra maneira de dar fim, total, a um corpo humano é oferecê-lo como comida aos cães.

Irmão não respeita, e trapaceia, irmão em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Um personagem empresta um rim, ou fígado, para a irmã. Depois percebe que precisa do órgão novamente. Não hesitará em rasgar o corpo da irmã em busca do que precisa. Pega um outro órgão por engano. Mas isso acontece. Um poodle ou outro cãozinho irá tirar o corpo da irmã de cena. Para sempre.

Edgar Wilson, Gerson, Pedro e Marinéia são alguns dos seres que se relacionam e chocam nessa novela. Eles assistem a filmes do Braddock. Escutam CD do Sérgio Reis. Bebem cervejas baratas. E elaboram algumas reflexões, a partir da própria experiência: “O problema dos porcos é que eles acham que são gente, como eu e você. Eles te olham e acham que você é um deles ou vice-versa”.

Os personagens, da primeira novela desse livro de Ana Paula Maia, são comparados, dentro da problematização literária, a porcos e cães. A voz da autora é firme, alta e muita certeira. Eis o que ela elabora, pela voz da narradora (que no fundo é ela mesma):

Cão de rinha é um cão que não teve escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs. Que carrega algumas cicatrizes pelos braços, pescoço e peito. São tantos riscos e suturas na pele que não se lembra onde conseguiu a metade. Porém a marca da violência e resistência à morte de outros animais nunca tiraram o brilho de seus olhos quando contempla um céu limpo. Dia ou noite, ele passa boa parte do seu tempo olhando para cima. Quem sabe espera que alguma coisa aconteça no céu ou com o céu… talvez queira retalhar algumas nuvens com seu facão.

Apesar de ter sido criado feito cão de rinha, aprendeu que isso é melhor do que ser um porco.

A animalização dos humanos também ganha espaço na segunda novela, O trabalho sujo dos outros. Erasmo Wagner é um lixeiro. “Sua vida não é um lixo. Sua vida é muito lixo. Seu olfato está impregnado com o aroma do podre. Seu cheiro é azedo, suas unhas imundas e sua barba crespa e falhada é suja. Ninguém gosta muito de Erasmo Wagner.” Ele trabalha, com ou sem chuva, atrás da caçamba de um caminhão, que pára, o personagem desce, pega o lixo, joga no triturador de lixo, o caminhão volta a seguir e assim é a trajetória dele. Até que acontece uma greve, cuja finalidade é reivindicar melhores condições de vida durante o trabalho, um salário mais digno e essas benfeitorias que todos sabem necessárias, mas que nunca se tornam realidade porque os donos do mundo jamais permitem que a turma do andar de baixo venha a ter uma vida menos ordinária. Texto panfletário? Que nada. A autora apenas joga as cenas, não toma partido. Se houve algum tom de revolta (se é que isso houve?), trata-se de algum efeito que o texto teve, e ainda tem, no resenhista. Nada mais que isso.

Tem lixo demais no mundo, todos sabemos. Em algum momento da narrativa, fala-se, pela voz de um dos personagens, que uma sociedade pode ser analisada pelo lixo que produz. Cada humano, isso também se sugere, é medido pelo lixo que produz diariamente. E as condições de trabalho a que muitos humanos são submetidos é um lixo. Mire o caso do personagem Alandelon, da novela O trabalho sujo dos outros: “Alandelon quebra asfaltos há seis anos. Seu corpo está talhado e rígido, assim como seu cérebro sempre foi: embrutecido. Ele é irmão caçula de Erasmo Wagner”. Dentes podres, corpos sujos. Há mais. O personagem Edivardes desentope latrinas, pias, ralos, tanques, esgotos, canos de prédios e conduítes. “Chafurda mais na imundice que porcos. E na imundice produzida pelos outros é que consegue sobreviver dignamente de seu trabalho.”

Um grito? Um protesto? Uma careta? Uma expressão “banana pra vocês”? Antes, Ana Paula Maia recria nuances do que pode ser péssimo na realidade e, artista que é, não oferece soluções, apenas aponta com o dedo, artisticamente, para o que todos sabem, conhecem, mas parecem não querer ver.

Ela não faz denúncia, não é dessas bossas.

Ela faz é obra de arte.

Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos
Ana Paula Maia
Record
160 págs.
Ana Paula Maia
Nasceu em 1977. Formou-se em publicidade. Já fez roteiros. Antes, porém, exatamente aos 15 anos, montou uma banda de punk rock e tocou bateria. Estudou piano clássico. É autora do roteiro do curta O entregador de pizza, filmado em 2001. É também co-autora do monólogo O rei dos escombros (2002). O habitante das falhas subterrâneas (2003) é seu romance de estréia, pela 7Letras. Outro romance seu, A guerra dos bastardos, saiu com a chancela da Língua Geral em 2007. O conto Nós, os excêntricos idiotas, foi incluído na antologia (organizada por Luiz Ruffato) 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, da editora Record. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos foi publicado originalmente em 2006 na internet: (tratava-se de uma experiência pioneira) — foi o primeiro folhetim pulp da internet brasileira. Ela mantém o blog http://killing-travis.blogspot.com. Criou outro blog, apenas para este livro recente: http://www.entrerinhasdecachorroseporcosabatidos.blogspot.com.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho