O tempo que Tudo se ilumina levou para ser lançado no Brasil foi suficiente para o autor, Jonathan Safran Foer, ser alçado pela imprensa americana à categoria de gênio das letras com apenas 24 anos de idade; ganhar tradução em duas dúzias de países; vender os direitos de adaptação da obra para o ator Liev Schreiber; tornar-se milionário com apenas uma obra lançada; ver o filme, Uma vida iluminada, estrelado por Elijah Wood (o Frodo, de O senhor dos anéis), chegar aos cinemas dos EUA e do Brasil; lançar seu segundo livro, Extremely loud and incredibly close (extremamente alto e incrivelmente perto); ser criticado pela mesma imprensa americana por ter abordado o indigesto tema do 11 de Setembro com humor; e, por fim, ser rebaixado à categoria de escritor-nem-tão-gênio-assim aos 27.
Não é de surpreender que o país onde a juventude é a religião da maioria — vide as mulheres e homens que fazem barbaridades para escapar da ação do tempo e da gravidade — tenha ficado de quatro por um autor com idade suficiente para ser, no máximo, um ídolo do rock. Somente nos Estados Unidos, terra do culto a personalidades, os escritores conseguem desfrutar da condição de celebridades tanto quanto qualquer Tom Cruise. Dan Brown fala para quem quiser ouvir que sua vida virou um inferno com o sucesso de O código Da Vinci. Tão rápido quanto escolhe um novo Moisés, a mídia dá jeito de se livrar dele em seguida. Ou de substituí-lo, o que é mais provável.
Porém, nada disso muda o fato de Tudo se ilumina ser um livro memorável, capaz de fazer rir e chorar — mais rir do que chorar. O maior problema de um bom livro, indicado por muitos e criticado por poucos, acaba sendo a expectativa do leitor. As editoras americanas têm o costume de publicar, antes da folha de rosto, os elogios feitos à obra por alguns dos principais jornais e revistas do país. No caso de Tudo se ilumina — na versão original, Everything is illuminated —, são 24 excertos que vão dos adjetivos de efeito (“admirável”) a longos parágrafos sobre as qualidades “exuberantes”, “inventivas” e “brilhantes” do romance. Safran Foer é bom. Dá até para dizer que ele é muito bom (sorte de principiante?). Mas, como tudo na vida, é possível deslindar o lado ruim da história e pinçar alguns defeitos.
O maior deles talvez esteja exatamente no humor. O autor é judeu e vive em Nova York — no Brooklyn, bairro de Paul Auster, para ser exato. A cidade pode ser considerada o centro do mundo ou coisa que o valha, mas algumas referências são tão locais que existe o chamado “humor judeu nova-iorquino”, cujo expoente deve ser o cineasta Woody Allen. As piadas de Safran Foer não chegam a ser cifradas, mas certas coisas, que foram “alucinadamente engraçadas” para alguns leitores metropolitanos — como a escritora Joyce Carol Oates —, podem ser só curiosas para alguém que vive no interior do Texas. Imagine se o leitor for um brasileiro que não é assinante da revista The New Yorker.
A história retrata a saga do jovem de 24 anos chamado Jonathan Safran Foer em viagem à Ucrânia, onde pretende conhecer a mulher que teria salvo a vida de seu avô durante a Segunda Guerra Mundial. Ele prepara um livro sobre o assunto e precisa encontrar o vilarejo de Trachimbrod, onde teriam vivido seus antepassados. Como guia, conta com a ajuda de Alexander Perchov, um jovem fã de Michael Jackson e fumante de Marlboro, que vai servir-lhe de intérprete, apesar de seu inglês macarrônico. E essa é maior piada de todas.
A ação é entremeada por cartas enviadas por Alexander a Jonathan, nas quais fala sobre sua vida em família e sobre a experiência de passar dias com o americano. Quando quer dizer que algo é difícil, duro, Alex fala que tal coisa é “rígida”. Para contar que gasta muito dinheiro com mulheres, afirma “disseminar muita moeda-corrente”. No começo, esse jeito tosco de se comunicar soa engraçado. Mas, na literatura, uma piada não dura 300 páginas. Lá pela metade do livro, a ingenuidade e repetições exaustivas de Alex começam a dar nos nervos. Antes, há trechos hilários:
Querido Jonathan,
Anseio que esta carta seja boa. Como você sabe, não sou de primeiro nível em inglês. Em russo minhas idéias são afirmadas anormalmente bem, mas minha segunda língua não é tão premiada. Empreendi o exame das coisas que você me aconselhou, e — também como você me aconselhou a fazer — fatiguei o dicionário com que você me presenteou, quando minhas palavras pareciam fracas demais, ou inadequadas. Se você não ficar feliz com o que desempenhei, ordeno que me devolva isto. Perseverarei na minha labuta até você se apaziguar.
Outros momentos impagáveis perderam a graça na tradução. A culpa não é dos tradutores — valentes ao encarar a tarefa de verter Tudo se ilumina ao português —, mas sim da língua. Existem expressões intraduzíveis e o trocadilho é uma delas.
Quando Alex encontra Jonathan na estação ferroviária de Lvov, o ucraniano pergunta “A viagem de trem apaziguou você?”. O americano responde “Ah, meu Deus, foram vinte e seis horas de foda”. Soa estranho e obsceno quando, na origem, a graça está na falta de malícia de um ao falar e na ingenuidade do outro ao ouvir. “Pensei que a mulher com quem ele viajara devia ser muito majestosa”, afirma Alex.
No original, o americano responde “Oh, God, twenty-six hours, fucking unbelievable”. A dificuldade é traduzir o “fucking unbelievable”. Em português, o mais perto que se pode chegar do significado é com “inacreditável pra caralho”. O que tem nada a ver com a piada original. O “fucking”, assim como o “pra caralho”, serve para reforçar uma idéia qualquer. Literalmente, “fucking”, como se sabe, quer dizer “fodendo”. Quando Jonathan diz que a viagem de vinte e seis horas foi “fucking unbelievable”, Alex entende que o americano passou mais de um dia fodendo uma garota chamada “Unbelievable”. E termina dizendo “Essa garota Unbelievable deve ser muito majestosa”.
Tudo se ilumina é ainda um romance epistolar — talvez por isso transmita uma sensação de anacronismo. Ninguém mais envia cartas. Agora, são e-mails. É estranho tanto quanto seria uma história que se passa nos dias de hoje ignorar a existência dos celulares (isso é quase ficção cientifica porque os telefones móveis são onipresentes).
Apenas dois momentos do livro ficam na memória, demonstram toda a força narrativa de Safran Foer e justificam os confetes e serpentinas gastos para elogiá-lo: 1) o fato que explica o título; e 2) o desfecho da busca de Jonathan pela mulher que teria escondido seu avô dos nazistas. O resto é barulho.