Para quem não conhece suficientemente a poesia de Ivan Junqueira — cujos livros anteriores, em geral, foram de circulação mais restrita — esta coletânea serve de valiosa apresentação. Confiada à competente organização de Ricardo Thomé (autor de tese sobre o poeta), a antologia abriga parcela substancial da produção de Ivan, com 93 poemas, oito dos quais inéditos, além de bibliografia que consigna não apenas suas publicações como poeta, mas também como importante ensaísta e premiado tradutor. O estudo introdutório de Thomé, Ivan Junqueira: a poesia do palimpsesto, examina temas e formas recorrentes em sua obra, bem como o diálogo intertextual tramado com alguns dos grandes nomes da lírica ocidental, para cuja execução muito contribui sua atividade nos terrenos da crítica e da tradução.
Não se entra a passeio na poesia de Ivan Junqueira, e dela não se sai incólume. Isso talvez seja o que de mais desafiador se possa demandar de um texto: a capacidade de nos fazer outros, ao cabo de sua travessia. E a lírica de Ivan, como poucas neste país, possui este atributo. Avessa a improvisos e facilitações, talvez por isso mesmo apresente, em termos quantitativos, dimensão reduzida, pelo simples fato de que sua “obra completa” já é em si, ao mesmo tempo, uma “obra seleta”. Poeta de poetas, seríamos tentados a dizer, se a expressão não contivesse um certo teor de descompromisso para com o que subjaz além ou fora do mero exercício virtuoso da escrita — porque a consciência poética de Ivan, rigorosíssima embora, não abre mão de lançar-se para fora de si mesma, e mergulhar inteira nos meandros sórdidos ou sublimes que caracterizam a aventura humana.
Tecnicamente, a extensa gama de recursos do poeta (parcialmente arrolados na introdução de Thomé) aponta para um diálogo com a tradição, seja no emprego de formas fixas, seja nos versos isométricos ou no recurso à rima. Se não se pode crer num artista que desconheça o material com que trabalha (a apologia da ignorância gera maus resultados em todos os domínios), também não será unicamente a mestria técnica a instância que legitima a qualidade poética. Ivan consegue tornar viva a tradição não porque a redunde ou a glorifique na totemização da inércia, mas porque nela insere marcas pessoais que reelaboram o antigo, tornando-o contemporâneo da pulsação fremente do novo. Atente-se, por exemplo, para a admirável utilização da rima toante em vários de seus textos, dentre os quais o magnífico O rio.
Eis um poeta não apenas de ossos e destroços, como se tentou caracterizá-lo, mas da carne e da matéria simultaneamente cantadas em sua plenitude e decantadas em sua inestancável derrocada — daí a exasperada presença da morte, que torna tragicamente absurda a fatuidade da vida. O não-querer da morte (que não cessa de nos querer) é responsável pela áspera tonalidade de muitos poemas, que oscilam sutilmente entre um certo fascínio malévolo do horror e o desejo de exorcizá-lo — mas para substituí-lo por que ingênua esperança? Num mundo sem transcendência, o homem se estabelece como um provisório deus de si mesmo — quando cria, ou quando ama. Fora do amor e da arte, não há salvação. Dentro, tampouco, mas, precariamente, é como se houvesse. Sob esse prisma, desenha-se uma nítida coerência no pensamento de Ivan Junqueira, desde o inaugural Os mortos (1964) até A sagração dos ossos (1994). Esse leitmotiv da perda e da dissipação — cada vez mais bem executado — insiste em se fazer ouvir, com pequenas variantes, em todos os “movimentos”/livros da poesia de Ivan, num gesto sinfônico que o poeta-maestro rege no limite extremo da beira de um abismo.