Rio-Paris-Rio não é uma história de amor, não é uma história sobre os tempos da ditadura ou de lutas políticas na França e no Brasil. Rio-Paris-Rio é uma história de vida, de vidas e seus desdobramentos. Com um detalhe fundamental, narrada por quem conhece o ofício, conhece os cenários. Amor, política, lutas, sobrevivência são atores, ora protagonistas ora coadjuvantes, que atuam em situações nas quais o viver vale a pena. Pouco importa se nas ruas, nos palcos ou nas páginas dos livros.
Rio-Paris-Rio beira a antropologia, esta ciência que se ocupa dos costumes, das crenças, dos hábitos comuns e dos hábitos sutis das pessoas. Fica evidente, embora apresentada de maneira rápida, a diversidade cultural que envolve a narrativa, e a antropologia tem por objeto estudar o homem, o ser biológico, o social e o cultural. Algumas vezes o estuda em partes. Assim o faz Luciana Hidalgo.
A história de Maria e Arthur, do Brasil e da França, do Rio e de Paris, a minha e a sua, é narrada com lirismo envolvente, um lirismo avesso à alienação e que é capaz de amenizar a aridez das vidas estrangeiras — o que não diminui de maneira nenhuma a intensidade. A intensa sutileza da autora que não edulcora a relação dos jovens, tampouco suas aspirações políticas, um anseio ao mesmo tempo bastante politizado embora pintado com as tintas da ingenuidade. Tão ingênuo que um brasileiro participa aos gritos, palavras de ordem, de uma manifestação em Paris, reivindicando o que não lhe diz respeito. Na verdade nem sabe ao certo do que se trata; sem desconfiar de que sua presença e performance não alterarão em nada a situação. Seja no exterior, seja no Brasil, o povo não passa de grito, geralmente gritos dispersos. O protesto uníssono jamais será uma mercadoria ao alcance de todas as mãos em todas as estações do ano. Requer preparo.
Jovens procurando sua identidade, não apenas como referência, mas como conteúdo. O eu em constante transformação ao assimilar o que lhe chega, identidade e liberdade. Conforme Emmanuel Levinas: “Liberdade implica saber que a liberdade está em perigo”. Mas nem tudo é permitido ao estrangeiro, e por vezes é justo onde a liberdade corre mais perigo, o lugar de se encontrar consigo mesmo.
No início de Rio-Paris-Rio, Maria assiste à aula na Sorbonne onde estuda Filosofia. O professor lê um trecho de Discurso do método, de René Descartes e uma frase ficará gravada na mente da estudante: “Minha intenção não é ensinar o método que cada um deve seguir para conduzir a sua razão, mas apenas mostrar como eu me esforcei para conduzir a minha”.
Maria entende e buscará construir o seu método, o método que será seu guia em terra estrangeira. E a aluna leva Descartes a sério, em seu quarto um X riscado no chão denuncia as proporções indiscutíveis definindo aquele ponto como o centro do cômodo, o lugar onde ela costuma sentar. Seu quarto, seu lugar seguro, reina paz e harmonia. O exterior guarda os problemas, a desorganização. O caos vive próximo, habita um apartamento do mesmo prédio onde mora Marechal, outro brasileiro que se refugiou para não cair nas mãos pesadas dos militares. Como vive e o que o faz viver? Lidera um grupo em condições iguais a sua, oprimidos por regimes iguais ao de seu país. Certa noite, ao retornar ao seu apartamento, após o expediente na bilheteria do cinema, Maria é surpreendida por uma festa cuja origem é o apartamento de Marechal, mas não se restringe aos limites do modesto lugar e alcança o corredor do prédio. Em meio a esse burburinho é que Maria e Arthur se encontram e se apaixonam. Ambos cariocas, no entanto o que o levou, ou seria o obrigou?, a Paris foram as convicções políticas de seu pai. Não adiantarei mais acerca deste aspecto para não azedar sua viagem pela história, atento leitor.
Alternativas
Qual é o propósito do X no chão do quarto de Maria? Simplesmente estar no centro, ser o ponto de convergência das ações, estar no comando, ou quem sabe apenas determinar o lugar da resistência? Outra hipótese: definir o ponto de partida? Talvez nenhuma das alternativas acima. Maria senta-se sobre o X e consome o tempo olhando para o teto. O alto, naquele cômodo plenamente alcançável, mas o limite de Maria estará definido?
Maria é neta de militar e bastião da ditadura no Brasil, pela manhã assiste às aulas de filosofia na Sorbonne e à noite desempenha a função de bilheteira num cinema. Embora a suposta integração, afinal de contas ela trabalha e estuda naquela cidade, Maria sabe e sente-se uma representante dos “em trânsito”, onde a inadequação ao humor francês de riso duvidoso, o acento a denunciar a fala de quem não é daquele lugar, e que em algumas situações será considerada além de estrangeira, naturalmente, uma intrusa.
Maria está no centro, anseia por referências, Arthur está solto, o que não impede o encontro. Encontro, o que nem sempre coincide com integração, harmonia.
Qual é o limite de Maria? A volta ao Brasil. Quem sabe. O Brasil da ditadura? Um Brasil diferente? E Arthur, terá limites? Mal sabem que os limites não costumam ser escolhas; e sim imposições. Maria e Arthur, afora a nacionalidade e a saudade do Brasil, quase nada os aproxima. Tamanha diferença, porém, não é o bastante para afastá-los. Ela pragmática, cartesiana; ele artista de rua, poeta. O desarranjo causado por Arthur retira Maria do equilíbrio do seu X. Maria sai do quarto, se torna uma ativista durante os protestos de Maio de 68. Maria e Arthur, o centro e o satélite, ambos carregam segredos escondidos no Brasil, o que poderá afastá-los definitivamente. Acentuo o definitivamente porque ao longo da narrativa Arthur vai e volta.
Rio-Paris-Rio é uma narrativa muito próxima à vida, sem com isso se assemelhar aos boletins de ocorrência que costumam invadir a literatura brasileira. Quase documento de uma época, dada a superficialidade que ora assola a sociedade brasileira, pode ser um exemplo contundente do que foi o período da ditadura. Tempos em que os ditadores costumavam usar uniforme e faziam questão de serem facilmente identificáveis. Mudou a época, aperfeiçoaram-se os disfarces…
A bela e precisa história de Luciana Hidalgo, que começa com Descartes, leva-me a concluir com palavras de Foucault na introdução de A arqueologia do saber.
Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar — histórias com um suave declive: história dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação das culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação.
Rio-Paris-Rio é um daqueles livros sem fim, uma daquelas histórias que nos seguirão ou que nos estimularão a persegui-las.