A emissão de juízo é o item causador de maior desconforto para a crítica literária na atualidade.
Se não for possível afirmar de modo convicto, é ao menos bastante plausível a sensação de que os críticos convivem sem o trauma que poderia ser decorrente das exigências da intervenção concrítica (que constrói sentido junto com ou a partir da obra) e da recorrência da escrita analítica, dada a captar e explicitar as implicações do discurso da obra, debruçando-se sobre forma, conteúdo e contexto. Talvez os que reivindicam poeticidade para o ensaísmo concluam que a leitura racionalista cumpre um papel relevante nos estudos literários, dado ser necessário um teor objetivamente referencial para aproximar o leitor daquilo que lê.
Quanto ao par formado pelas intervenções abertamente judicativas e por suas antíteses, o atrito se revela bastante claro. Independente da forma discursiva, se poética ou convencional, a crítica deliberadamente isenta de juízo rejeita (ou, no mínimo, despreza) o seu antônimo por nele ver um ato de restrição insurgido sobre o fenômeno artístico.
Há nisso alguns enganos: geralmente quem diz se opor ao juízo, opõe-se, a rigor, a um tipo de juízo, caracterizado pela adversidade entre emissão da obra e recepção do estudioso. Apesar da obviedade, não custa salientar: aquele que aponta a obra como prodigiosa, chamando-a “criativa”, “genial” ou “profunda”, também emite juízo. Por que dizer então que quem usou adjetivo de qualificação contrária não compreendeu a obra? Os antípodas do juízo também se valem do seguinte argumento: não convém formular uma intervenção sobre/a partir de um texto com o qual não há diálogo, pois o discurso que nasce sem convergência de espírito é mortificador. Nesse caso, o problema não seria, em si, do juízo reprovador, e sim de sua veiculação pública.
Esta opinião (este juízo) é bastante procedente, mas se distancia da, digamos assim, realidade prática de muitos críticos, sobretudo os em estado de formação. Ao iniciante, ainda sem nome e sobrenome, nem sempre é possível negar certas pautas do editor, justificando que o livro não lhe tocou o gosto. (Afinal, o que freqüentemente se pede do crítico não é imparcialidade?) Daí que ao jovem crítico as escolhas podem, num ou noutro momento, ter algum grau de redução, e o que ele deve fazer diante de um livro cuja construção conjunta de sentido se lhe afigura inviável? Ezra Pound sugeriu que um crítico se revela por suas escolhas, o que está de acordo com a idéia da crítica em consonância com a obra. Mas podemos nos perguntar se, em algum momento, isso não se traduziria em certo tipo de negligência ou exclusão.
Convém dizer, ainda, que a história da literatura registra casos famosos de autores que, ao receberem advertências de críticos sérios, releram suas obras e as reescreveram. É quase estatutária a fala de que não existe mais crítica de jornal e que a crítica no Brasil é muito ruim. Se há verdade nisso, é preciso haver espaço para os jovens — e os jovens, como dito no parágrafo anterior, por estarem em formação, nem sempre dispõem de total autonomia. Não se trata de sujeição ou postura corrupta, trata-se de aproveitamento de oportunidades para a construção de um caminho.
Para finalizar, recorro a dois casos de Machado de Assis, o nosso grande escritor: o primeiro diz respeito aos escritores brasileiros lambuzados de nacionalismo, os quais eram dotados de um infeliz instinto de nacionalidade. O segundo caso envolve Eça de Queirós: quem não vibrou com o desassombro e a inteligência de Machado ao censurar o gesso realista de O primo Basílio, vibrando também por, naquele episódio, um brasileiro mulato e de origem pobre avaliar com força uma manifestação da metrópole?
O juízo não é o Judas da crítica literária, mesmo porque, morfossemanticamente, “crítica” e “juízo” são termos sinônimos, imbricados desde o seu nascimento etimológico, na Grécia. Mas, em bom português, daí a ver no crítico “judicativo” o arcaico correlato de juiz de arte vai uma homérica distância…
No escuro
É possível ler Patrícia Melo — e transformar a leitura em discurso crítico — com total isenção opinativa?
Patrícia é uma escritora de considerável sucesso, o que se constata pelo fato de seus romances serem publicados por algumas das maiores editoras brasileiras, por já ter sido vencedora do Prêmio Jabuti (2001) pelo romance Inferno, e por ter emplacado o livro O matador (1995) no cinema, com o filme O homem do ano (adaptado por Rubem Fonseca e dirigido por José Henrique Fonseca), de 2003. A autora se notabilizou no ramo da ficção policial, com obras em que prepondera a temática da violência urbana, com uma linguagem dada ao neonaturalismo típico de uma geração de escritores ramificados no tronco Rubem Fonseca.
Patrícia Melo volta agora à cena com Escrevendo no escuro, o qual marca sua estréia como contista. Em recente entrevista, a autora deu a entender que o livro marca uma espécie de virada em seu exercício criativo por registrar nova feição de uma linguagem antes explicitamente bélica. Isso é ocasionado (ou consolidado) pelo fato de a autora ter se mudado de São Paulo para Lugano, na Suíça, o que lhe permite nova experiência do viver urbano.
A leitura confirma parcialmente o que diz a autora: a começar pela temática, em alguns dos dezenove contos do volume (se considerarmos contos os takes de Cecília, uma narrativa partida e espalhada pelo livro) a violência (em sentido policial) dá lugar à tematização de questões mais particulares. Ao lado disso, aparece a escrita metadiscursiva, ainda embrionária dada a sua freqüência esporádica pelo livro, mas de teor destacável, uma vez que a autora se insere na própria narrativa, ficcionalizando a si própria, sendo afrontada por uma personagem:
Mas você não gosta de mim. Tem um monte de gente para matar nas suas histórias, um monte de bandido safado, drogado, gente corrupta que não vale nada, mas você implicou comigo desde o início. Estou aqui numa boa e, de repente, vem você mandando eu me atirar do décimo andar. Só que não sou tonta como seus personagens. Eu me recuso a me deixar morrer.
Entretanto, uma análise mais cautelosa desautoriza a suposta mudança, uma vez que à variação temática não corresponde uma reformulação formal de sua escrita. O que normalmente é verificado nos escritos de Patrícia Melo aqui se mostra permanente: personagens defasados de ânimo interior, construção narrativa dedicada à prestação de informações e uma linguagem que, ao se querer despojada e fluida, termina por resvalar na gratuidade:
Quando a tampa do caixão foi aberta, senti um frio na barriga. Você continuava bonita, Lúcia.
Conclusões da exumação:
Você não era cardíaca.
Você é linda.
Você não desmaiou durante o banho.
Você não foi envenenada.
Você parecia um pato, sua pele estava toda arrepiada (início de morte por afogamento).
Você é linda.
Você casou com o cara errado.
Você não foi espancada.
Você é a mulher da minha vida.
No texto em que ocorre um tímido movimento de originalidade, certos detalhes amputam a fatura de modo precoce. Acerto de contas é o relato de uma mulher que, em sua adolescência, tem fascínio pela imagem de pessoas sendo esbofeteadas. Por essa razão, Laura, típica moça fútil de classe média, filma um tapa que dá no rosto da empregada de sua casa, e esta não ergue qualquer reação. A cena poderia render uma reflexão acerca do homem e das relações de hierarquia social que propiciam gestos dessa natureza, mas o narrador não dá uma só nota do que se passa no pensamento da oprimida ou no da opressora. Como a narrativa é mais interessada em relatar fatos, as posturas sempre se manifestam retas: “A minha segunda melhor amiga, bem mais forte que eu, também não hesitara, prometendo o revide na mesma hora” (grifo meu). Sendo, conforme dissemos, a obra de Patrícia Melo dada ao neonaturalismo contemporâneo, por sua vez inspirado no realismo literário, comete-se no conto uma pequena falha que a deixa defasada de verossimilhança: a protagonista, também narradora, tem trinta e três anos na época da narração, e doze quando agrediu Cida, a empregada. Causa estranheza o fato de a cena ter sido gravada na câmera de um telefone celular, o que soa impróprio.
Se a saída de Patrícia Melo das páginas policiais não efetivou substantivamente um deslocamento da autora de si mesma, tampouco a retirou das convenções da média dos autores de hoje. Se em sua, digamos assim, fase anterior tudo convergia para retratar a banalização da violência das grandes cidades de forma caricata, em cujos livros os tiros tomavam o lugar da reflexão e da experimentação formal, nesta agora inaugurada a atmosfera é muito prezada pelos autores que olham a vida da janela de seu apartamento. De uma ponta a outra de Escrevendo no escuro, figuram personagens que estampam suas crises existenciais como se fossem etiquetas de camisa, algo típico de quem se crê moderno ou diferente por freqüentar analistas. Vejam-se três fragmentos de três contos distintos: a) “De repente abro os olhos e já estou chorando, sem ao menos saber por quê. É assim que acordo. Sem os remédios, talvez eu me lembrasse dos sonhos”; b) “Eu não sentia dor. Queria apenas acionar a bombinha que liberava a morfina e sentir a doideira toda. Tchac. Tchac. Tchac.”; c) “Aconteceu assim: certa manhã, logo após iniciar um tratamento à base de barbitúricos indicados por meu psiquiatra, acordei ao lado de meu bloco de notas repleto de novas sugestões e apontamentos para meu romance emperrado”.
Para concluir, retomo a pergunta feita no início da segunda parte desta resenha. O caso de Patrícia Melo, escritora de grandes números e cartazes editoriais — assim como o caso de muitos autores representativos da cena contemporânea —, demonstra a grande necessidade e a total conveniência da crítica que não se poupa de distinguir e atribuir valores à produção literária. Talvez isso contribua, de forma humilde porém firme, para que a literatura brasileira não permaneça tão escrita, editada e eleita no escuro.