Mudança de estação

João Almino transforma incertezas e turbulências em um personagem complexo e inesquecível
Ilustração: João Almino Por Dê Almeida
30/12/2015

Pode fazer alguma diferença, informação nunca é demais, saber que, em Enigmas da primavera, João Almino dialoga com Nizami, poeta persa do século 12. Nizami é autor de Layla e Majnun, poema que teria estimulado William Shakespeare a elaborar Romeu e Julieta. A exemplo do que acontece em Layla e Majnun e em Romeu e Julieta, Majnun — o protagonista de Enigmas da primavera — também está diante de um relacionamento inviável com a personagem Laila.

Mas isso é apenas um detalhe do mais recente romance de João Almino.

O escritor nascido em Mossoró (RN), atualmente vivendo em Brasília (DF), recria o poema de Nizami para tratar de impasses do presente. Majnun representa o jovem que terminou o ensino médio, mas ainda não conseguiu entrar na universidade — não sabe ao certo o que fazer e tem a impressão de que conseguir um emprego não será fácil. Na página 82, o narrador define o personagem: “Na verdade não estava numa encruzilhada. Numa encruzilhada havia direções e destinos possíveis”.

Se alguém definir a situação de Majnun como uma metáfora da condição humana, não será exagero. E, quase paralisado diante da aparente falta de caminhos, o protagonista de Enigmas da primavera tenta fugir de sua realidade. Em alguns momentos, demonstra — mesmo que apenas por meio de desabafos — vontade de ter sido jovem nos anos sessenta, período da juventude de seus avós. Mas, durante um encontro na casa dos parentes, surgem opiniões relativizando aquele período que Majnun considera ideal: “No Brasil, era a ditadura. Na França, os jovens achavam que iam transformar o mundo. O fim da hierarquia, o desafio à autoridade… E sabe o que sobrou?”. Em seguida, uma personagem dispara o seguinte comentário: “Sabe em que desembocou maio de sessenta e oito? No aumento das vendas de pornografia”.

Confuso, Majnun tem a sensação de que já viveu na Europa em outro momento histórico — e a narrativa sugere que ele entra em transe, ou em algum estado de vivência paralela, e conversa com personagens do passado, ao mesmo tempo em que também se entrega a viagens pelas redes sociais: “Passo minhas tardes sozinho, dedicado a meu mundo interior, ao Twitter ou ao Facebook”.

Em meio à turbulência, Majnun se interessa pelo Islã, na avaliação dele, “a religião da igualdade”. E, então, há fragmentos de Enigmas da primavera dedicados ao tema, como se lê, por exemplo, na página 204:

— Estúpido falar de tolerância no Islã — interrompeu Suzana, furiosa. Existem lugares onde a blasfêmia e a apostasia podem levar à morte; onde as mulheres não podem dirigir, andar de bicicleta. Pra sair de casa têm de estar acompanhadas de um parente do sexo masculino, mesmo que seja uma criança. Pra viajar têm de ter autorização dos maridos…

— Isso não tem a ver com religião… Em Túnis, no Cairo e em Istambul você vê muçulmanas liberadas, sem véu e feministas — Majnun contestou.

— Você já esteve lá?

— Não, mas…

— E por que a maior parte dos terroristas é muçulmana? Será que não conseguem ler direito o Corão? Ou então leem e se explodem com bombas achando que os mártires vão pro Jardim das Delícias, cheio de virgens de grandes olhos negros?

Longas falas
Nesses fragmentos, os diálogos entre personagens podem apresentar o tema, Islã, a quem nunca leu a respeito — o autor conhece, a fundo, a questão. Eventualmente, algum leitor pode considerar uma ou outra fala longa demais — e há, de fato, algumas falas extensas, por exemplo, na página 207:

— Primeiro, o Irã não é árabe. Depois, existe uma explicação para esses castigos corporais. O direito penal moderno existe para reabilitar o preso ou para evitar que ele volte a cometer o crime, se fica solto. Já o antigo, que predomina ainda na Charia, tem o objetivo de fazer sofrer. Mas você tem de entender o seguinte: o direito penal moderno depende da existência de um Estado, de prisões e de policiais. Onde não havia nada disso, a solução era a dos castigos corporais. As leis de Talião (olho por olho, dente por dente) estavam no Código de Hamurabi e também na Bíblia hebraica. Já era um avanço que os castigos corporais da Charia não fossem aplicados diretamente pelas famílias agredidas e não degenerassem em guerras tribais. […]

Esses diálogos, que algum resenhista poderia classificar como exageradamente extensos, ao invés de, por exemplo, entediarem um ou outro leitor, se alternam a outros momentos do romance, proporcionando, de maneira geral, uma dinâmica na leitura.

Majnun viaja para Madri, acompanhando duas amigas, Carmen e Suzana. Se a primeira é a personagem com quem o protagonista consegue conversar, a segunda desperta nele instintos incontroláveis. Majnun tentou, mas não resistiu e “se jogou” em cima de Suzana, como está na página 170:

— Chulo — ela repetiu. Bruto. Foi uma violação — ela disse, chorando. — Você me currou, seu filho da puta.

— Não. Só tentei.

Mas, além e independentemente de tudo o que foi comentado nesta resenha, Enigmas da primavera traz a atmosfera das manifestações de rua que tomaram conta do Brasil em anos recentes. A insatisfação com as práticas políticas, o anseio por algo que seja diferente daquilo que se repete e parece imutável e, acima de tudo, como alguns analistas interpretaram os protestos, em especial os de 2013, a falta de entendimento a respeito do que, exatamente, os manifestantes desejavam aparece neste romance de João Almino. Majnun é uma metáfora desses movimentos: ele não tem clareza a respeito do que fazer, mas segue, em conflito com obstáculos — ele é, ao menos aparentemente, um enigma —, na iminência de uma outra estação que, em breve, pode ter início.

>>> Leia entrevista com João Almino.

Enigmas da primavera
João Almino
Record
288 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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