É estranho ter em mãos um livro de um bom autor, uma trama interessante que mescla o histórico com a ficção, personagens com um bom potencial, mas que de alguma maneira não te cativa, não te empolga. Até certo ponto, o livro segue um tom meio burocrático rumo ao seu final, que não é tanto um final mas um anticlímax. Espera-se, ao chegar ao fim, que algo pelo menos emocionante, se possível bombástico, aconteça. Mas não há, há um lento desfecho, como se não houvesse mais o que ser dito, ou, mesmo que houvesse, não há como. Os esforços foram feitos, mas por mais que se fizesse, não dá para se empolgar muito com Boa terra de ódios, último trabalho de Paulo Fernando Craveiro.
A idéia do livro é muito boa. Tudo começa com o assassinato de João Pessoa, candidato derrotado à vice-presidência da República, na Confeitaria Glória, em Recife (PE), em 26 de julho de 1930. Naquele instante em que o candidato é alvejado, há três testemunhas que terão suas vidas marcadas para sempre pelo ato. São eles Dhole, o patriarca tradicional, amante das mulheres mas não mais da sua; Damiana, a esposa que guarda um segredo que poderia fazer a família se desfazer; e Bianca, a filha com pendores artísticos que sonha em largar a barra da saia da mãe e a vigilância do pai para conhecer o mundo. A cada personagem está ligado um outro, meio que para fazer o contraponto a cada uma das personalidades principais. Dhole tem seu par em Zyna, uma prostituta polonesa que ele retira do bordel para lhe dar uma casa própria. Damiana tem par em Romeu Acôntio, irmão de Dhole e com quem partilha seu segredo. Bianca, por sua vez, tem seu par em Paulus, um alemão que acaba parando no Brasil por acaso. É a convivência entre cada um de seus personagens e seus pares e a dinâmica familiar que dá o tom de Boa terra de ódios.
A época escolhida pelo autor é muito apropriada para indicar grandes mudanças. O Brasil logo passaria por uma revolução, o mundo via os últimos dias da República de Weimar e a ascensão de Hitler e de seu nazifascismo, os Estados Unidos se recuperavam do baque de 1929, enfim, grandes alterações em diversos campos. Na cabeça dos personagens, o momento também pede mudanças. Dhole está entediado com seu casamento, Damiana já não sabe mais por que está casada, Bianca pensa em ir para qualquer lugar do mundo onde possa ser uma artista, profissão que sabe não ser a sonhada por seus pais para ela. Aos poucos, com movimentos muito mais cerebrais que ação propriamente dita, os personagens vão tomando suas decisões e mudando o que têm ou desejam mudar em si próprios, ainda que não tão seguros de que estas decisões sejam acertadas.
Os temas de debate interno dos personagens são clássicos: a adolescente que quer independência, que se julga já adulta o suficiente para viajar pelo mundo, mas não consegue fazer nada sem o dinheiro dos pais; a mulher que depende do marido para tudo, que não tem ocupação, mas sente que seu matrimônio é como uma prisão; o homem que também vê seu casamento como uma prisão, e a cada vez mais atolado em dívidas e problemas financeiros, resolve dar vazão a um sonho adolescente e “se casa” com uma prostituta, tudo para provar a si mesmo que ainda é um provedor doméstico.
Referências artificiais
Apesar da eternidade dos temas, falta empatia aos personagens. Em momento algum estamos verdadeiramente conectados com eles. Eles estão distantes, cerebrais demais, pensativos em excesso, mas de um pensamento que não é o nosso. Há diversas referências no texto à cultura do autor, em que ele cita eventos, acontecimentos e lugares distantes, que poderiam até fazer parte da cultura dos personagens. No entanto, dado o ambiente em que os protagonistas de Boa terra de ódios vivem, tal esbanjamento de cultura não combina com eles. As referências culturais soam artificiais, falsas, como se produzidas para agradar ao leitor sem necessariamente estarem dentro do texto. Assim, vamos ficando longe dos personagens, sem um ponto de conexão. Como os personagens não se entregam nem ao dramalhão nem ao drama cotidiano, não nos é possível sentir muita simpatia ou pena.
Outro ponto de desconforto é que pouco se percebe, durante a leitura, da conexão entre o assassinato de João Pessoa e a vida da família disfuncional. Afora menções ocasionais e esparsas ao crime, são poucas as vezes em que os personagens burilam de uma maneira mais profunda o que o ato hediondo realmente significou para eles. Por mais que a orelha do livro insista que o crime é o ponto de desequilíbrio da vida dos personagens, que a partir dali a situação de cada um será alterada de maneira irreversível e que a morte os acompanhará a cada instante, não se percebe isso.
Os personagens secundários também parecem deslocados na narrativa. Tudo bem, eles são secundários, mas em alguns momentos dá-se a eles uma dimensão que parece desproporcional à sua importância. Assim, queremos saber mais de Paulus ou de Romeu Acôntio, mas não temos onde procurar mais informações. Eles estão ali por perto, rondando a casa de Dhole, Damiana e Bianca, mas não os vemos agir, não os vemos protagonizar, não os vemos exercer a influência que supostamente têm, dada a sua importância para a vida dos protagonistas. São como fantasmas que eventualmente vêm à tona, assombram alguns por alguns instantes e se retiram sem mais delongas.
A somatória destes itens resulta em um trabalho que não empolga. Somos arrastados até o fim do livro porque queremos ver o trabalho engrenar de alguma maneira. Queremos ver Dhole pôr fim ao seu matrimônio de uma maneira bacana. Queremos ver Damiana deixar de ser submissa. Queremos ver Bianca livre dos dois, mulher plena. No entanto, o fim do livro chega, meio que tenta resolver às pressas tudo o que estava aberto anteriormente, não sem antes o autor conseguir de alguma maneira ainda colocar o acidente do Hindenburg, o zeppelin, na trama. Dá a impressão de que não havia muito o que ser dito, e que por isso, quanto mais erudição para cima do leitor, melhor. Enfim, melhor partir para o próximo título na prateleira.