Mosaico de mitos

Dora Ferreira da Silva concebe a poesia como um mapa e um itinerário de mundos existentes e passados
Dora Ferreira da Silva: poemas abrem frestas de luz no real
01/01/2004

Podemos começar a leitura desta nova obra de Dora Ferreira da Silva, Cartografia do imaginário, pela sua capa. Nela vemos estampada uma bela tela de Frank Cowper, na qual um anjo tange um alaúde solenemente, de olhos fechados, em meio aos galhos de uma árvore, enquanto um pássaro o ouve em silêncio em um dos ramos suspensos. Em qualquer outro poeta essa imagem seria subsidiária, e teríamos que passar ao seu largo e ir buscar direto nos versos a poesia. Porém, em se tratando de uma poeta para a qual a palavra está no limiar da experiência litúrgica e o mundo é um conjunto de signos a serem revelados em sua ascendência sagrada (dir-se-ia que bebe no conceito cristão de integridade e que aspira à unio mystica), devemos ter cautela. Provavelmente a atmosfera algo insólita desses elementos sobrenaturais que se manifestam na floresta não cumpra aqui um mero efeito decorativo, mas tenha, sim, um sentido simbólico central para a compreensão mesma do livro. Mal viramos as páginas, e eis que nos deparamos com a série de poemas intitulados Anjos músicos, a partir da qual o livro se abre para a sua orquestração verbal. Isso confirma a minha hipótese? Até certo ponto. Porque essa é apenas uma porta de entrada para uma via de ver as coisas. Um umbral, uma passagem. Abramo-la, então.

Dentro desse universo que acabamos de adentrar, dessa morada do ser que é a palavra poética, há o toque dos dedos tangendo suas notas luminosas. Essa música tem uma infinidade de camadas de sentido, difíceis de serem expostas de maneira tópica e racional. Penso que a aparição do anjo é um acontecimento que remonta ao duplo domínio, à conjunção de vida e morte, transcendência e matéria, e vem sempre associada a uma reprodução do universo humano em uma dimensão maior, algo que estaria no limiar entre o puro Espírito desencarnado e a feição humana talhada na argila. Mas isso não esgota a música em si mesma, menos ainda a sua experiência. Porém, é nesse intervalo que Dora compõe seus poemas e abre sua via singular de acesso à poesia. Sendo a natureza uma instância que deve ser lida e compreendida para ser contemplada, um dos melhores leitores e intérpretes que ela pode ter é o poeta, que a desdobra como a uma partitura e a traduz em seu canto para que os outros possam acedê-la. Nesse caso, sua posição é a de um pequeno anjo, ou melhor, a de um boneco, como queria Rilke, um ser que está no limite, na tangência entre a esfera eterna das essências imutáveis e a inexorável necessidade de louvar o terreno, a morte, o amor, a loucura e tudo o que submerge, se transfigura e se transforma sob o imperativo do tempo e na corrupção da matéria. Assim Dora erige seu canto: da perspectiva ficta de alguém que paira indiferente sobre o transcorrer dos acontecimentos, mas que, em si mesmo, ama o que há de mais vivo e só assim pensa o que há de mais profundo, como diria Novalis.

E o que significariam as asas abertas do anjo? É um hiato, passagem, abertura (Offenheit) para o ser e ao mesmo tempo desvelamento do rastro divino na natureza, tal como para os românticos a Flor Azul não é uma simples aparição de flor em um caminho pedregoso (a não ser que essa se oferte e descortine em si a Máquina do Mundo), muito menos a flor geométrica e refratária de Platão, que paira incólume no mundo das idéias, mas sim uma Flor ancestral, originária e sempre presente, que contém em si não só um olor ou uma forma, mas traduz sim em sua presença a potência numinosa do divino disperso no mundo. Aqui a poesia arroga para si um uma tarefa de grandes dimensões. Consiste na via de acesso ao transcendental, mas sem perder seu caráter de artesanato mundano. Aspira às esferas eternas, se nutrindo do que há de mais vital e circulando naquele deus-rio do Sangue de que nos fala, mais uma vez, Rilke, fazendo de nosso próprio dilaceramento o repasto de algum deus bruto que nos queira atrelados ao ventre da terra e faça disso mesmo a nossa glória e superação. A nossa comunhão.

É esse jogo entre as dualidades fundamentais que Dora mobiliza em sua poesia: não só aquela hesitação entre o som e o sentido que caracterizaria toda a atividade poética, como queria esse impecável espírito mediterrâneo que foi Paul Valéry, mas a dança entre o presente e a memória, entre o eterno e o instante, entre o esteio mítico coletivo no qual a humanidade se ceva e as experiências individuais intransferíveis que compõem o que há de mais genuinamente nosso como indivíduos. E essas dualidades se apresentam logo na estrutura do livro, dividido em duas partes: Estátuas e Do outro lado, sendo ambas precedidas por uma Introdução, composta por uma série de poemas que funcionam à maneira de Abertura sinfônica, onde se delineiam os anjos e os mosaicos da manhã, da tarde e da noite, e que funciona como proêmio que pinta a cena onde se desdobrará o itinerário (o mapa) poético, fazendo uma translação do ut pictura ao ut musician poesis, já que, na obra de Dora, a poesia não se mostra apenas como pintura, seguindo os padrões clássicos conhecidos da imitação, mas também como música, como já fora muito bem sinalizado pelo poeta grego do Ceará, Gerardo Mello Mourão, em exímio estudo sobre a poeta. A primeira parte é da esfera do eterno: as estátuas não morrem porque nunca conheceram a vida. São as formas que o passado nos legou e que a mão do ourives compõe diariamente e oferece à dimensão trans-histórica dentro da qual se desenvolve a história humana. É o amanhecer, o ciclo natural, as forças e impulsos vitais primários e a sua subseqüente elaboração. É o resíduo mítico que a civilização legou e que permanece vivíssimo na imaginação criadora e também na dimensão transcendental do sonho: Vênus, Horus, Osíris, Seth, Khepri, Nut, Corfu, Fedríades, Adão, Jesus. E são as cidades e estações dos mitos: Epidauro, Mármara, Patmos. A poesia seria o elo de ligação entre essas duas realidades. Uma mítica, residual, projetiva, originária, onde a coleção de pedras que se cravam no mosaico do tempo delineia o semblante da civilização e do inconsciente coletivo. Outra, pessoal, singular, concreta, feita da imago mundi indivisível que cada um de nós projeta fora de si mesmo e reconhece como real. O interessante é notar como a poeta realiza essa intersecção: do outro lado da rua havia um menino, Osíris. É aqui que se abre a mitologia da infância, leitmotiv do livro. É ele que congregará em si a dimensão transcendental (do mito) e imanente (da vida) em um passado que é, a um só tempo, memória (pessoal) da poeta e inconsciente (coletivo) da humanidade.

Esse é um dos aspectos mais admiráveis da obra de Dora Ferreira da Silva. Sua capacidade ímpar de conceber a poesia como um mapa e como itinerário de mundos existentes e passados, mas passíveis de serem manipulados pela imaginação e por intermédio da invenção poética. Como diria o filósofo por antonomásia Martin Heidegger, o que há de não cogitado e virgem sob as formas gastas do passado em verdade ainda está por vir, é algo que só espera ser iluminado pela consciência, lido em uma outra chave existencial e lançado em uma outra clareira do tempo para ser reconhecido em sua infinitude fundamental. É com essas crenças que Dora manipula sua infância, recolhendo dela o que não é acidental e meramente seu, despojamento só a partir do qual, paradoxalmente, se alcança a impessoalidade necessária ao ofício da poesia e o interesse universal de que essa fabulação é capaz. Não estamos mais na trilha do anjo. Passamos por ele no caminho traçado pelos primeiros poemas. Agora entramos já naquele templo vivo da Natureza em que as correspondências se efetuam e onde os sentidos profundos e manifestos se completam, como diz o famoso soneto de Baudelaire. É nesse território dominado pelo sonho que as associações se tornam férteis. É o reino da possibilidade, e é nele que a poesia encontra a sua residência e razão de ser, já desde Aristóteles.

Uma metáfora perfeita para esse tipo de leitura seria a viagem. O Outro lado, embora se caracterize textualmente apenas como um universo cotidiano de crianças que descobrem o amor e a frustração, é a meta a ser transposta pelos viajantes, espécie de Santo Sepulcro a ser reconquistado após a peregrinação consciente por essas ilhas da memória. É a interdição, o não-ponderado, o limite, a censura, o desconhecido, o tabu, o mistério e muitas outras coisas que são do domínio de nossos anseios e que estão também na nossa experiência imediata. É essa tensão da descoberta que atiça o arco e a lira e os faz pulsar. No âmbito das possibilidades, é simples a passagem do Osíris menino ao Osíris deus. Ela se dá numa só metáfora continuada, presente no poema Chamou-me o Deus. Pode também ser lido em outros poemas como Não eras múmia e Ritual. A mãe egípcia e o mero soletrar da palavra Egito já faz irromper uma cadeia de associações oníricas e de relações afetivas, existenciais, psíquicas, sexuais e intelectivas. No centro desse torvelinho de paixões e de conceitos difusos, inaugurados pela recuperação do passado que eclode no presente enunciado, a arte poética funciona como um caleidoscópio, como uma argamassa que conseguisse dar o tom a esses motivos e oferecer à nossa percepção um retrato desta nossa Origem comum e remota.

De maneira semelhante se dá a conversão da vida tal qual foi vivida àquela esfera sobrenatural da mesma vida que, em suas ressonâncias arquetípicas, se desenrola dentro de uma paisagem mitológica. E não há aqui nenhuma concepção engessada ou programática, nem em termos de escrita nem em termos de visão de mundo. Os deuses não são exterioridades meramente literárias, mas presenças hierofânicas que nos devolvem o mundo em seu teor sagrado, virgem e inaugural, como se este estivesse sendo a cada instante redescoberto. O que há é uma vivência interna da Palavra como elemento primordial e fundador. O resto, como diria Paul Verlaine com todo deboche, é literatura. O imaginário, nesse caso, não é um espelho do real, nem uma representação sua ou tampouco o seu reflexo. O imaginário cria o real e o funda, é uma de suas instâncias, e é do ir e vir entre esses dois reinos, o do possível e do provável, que a poesia encontra seu prumo e seu ritmo. O mundo provável pode ser de natureza vária. Sejam os antepassados Bulliarattis recuperados em Retratos da origem, tela que conjuga um retorno à ancestralidade da própria origem familiar à busca ancestral pelo ser, sejam os vários retratos que se abrem em leque em Uma via de ver as coisas, nos remetendo à vivência íntima do mistério. Essa é uma constante de toda a obra de Dora. Atividade poética que se quer e se faz desvelamento das coisas para a subseqüente revelação do ser, os poemas abrem frestas de luz no real e nos reportam à condição transcendental que fundamenta a existência destas mesmas coisas, ou seja, àquela condição que é, para falar com Heidegger, a essência de sua fundamentação existencial concreta. Nesses termos a poesia assume um caráter de gnose, de iniciação à vivência de realidades supra-sensíveis, embora mergulhando e deitando suas raízes profundas no que há de mais vivo na sensibilidade, como alguém que se valesse de imagens e palavras para figurar o não representável e o inefável. E seria ocioso dizer aqui que esse é o princípio de toda a figuração religiosa e de toda a arte iconográfica.

Dentro dos enquadramentos amplos e de longos vôos da obra poética de Dora Ferreira da Silva, cujos correlatos cinematográficos talvez sejam os filmes de Andrei Tarkóvski, Cartografia do imaginário representa uma continuidade madura e aprofunda muitos dos temas caros à autora, pertencentes ao seu universo de meditações. Os únicos reparos que poderíamos fazer dizem respeito à métrica e às rimas de alguns poemas, que acabam soando fracas, ficam aquém da acuidade geral do restante da obra. Isso pode ser observado principalmente em poemas de versos curtos, geralmente de sete sílabas, onde a autora ensaia um despojamento infantil que não logra êxito, como em Carnaval e Escolhi frutos. Outro ponto que diminui a integridade formal do livro é a seção final, intitulada Poemas vários. Não que os poemas não sejam bons. Pelo contrário. Aí estão algumas das melhores peças do livro, como o magnífico Epidauro, que narra uma viagem de carro que Dora fez ao lado de Henry Miller e do poeta grego Katzímbalis rumo a esta cidade. E justamente esta é a questão. Essa seção do livro é muito ampla, contém muitos poemas, e acaba fugindo da tônica das duas partes centrais, Estátuas e Do outro lado. A poeta poderia ter agregado esta parte anódina ao conjunto da estrutura do livro, e dado um título a esse andamento da sua sinfonia que funcionasse como uma continuidade do que foi desenvolvido até ali, de modo que o começo e o fim se reatassem e não houvesse tantos poemas bons soltos, ocupando uma espécie de marginalia temática da obra.

Porém, esses são detalhes insignificantes diante da tapeçaria poética que Dora nos deu com esse seu novo livro. E como todo bom poeta habita uma conjunção de todos os tempos possíveis e toda a pessoa inteligente sabe que não há vaidade mais idiota do que querer ser uma pessoa do seu tempo, a poeta e a mulher Dora abrem solenemente as asas, pairam sobre essa cartografia de cidades e de deuses e planam tranqüilas sobre todos esses tempos conjugados em um único instante, como notas unificadas sob a ação do acorde de sua obra. Nela entramos como quem passa pela porta do mistério e saímos transfigurados. Porque essa é a função da poesia para os antigos que revivem incólumes aqui: a catarse. Não só no domínio do teatro e da cena, mas naquilo que diz respeito às forças instauradoras e às potestades divinas que a boa arte mobiliza em si e no espectador. Unindo em si o duplo domínio, dos vivos e dos mortos, do mundo terreno e imediato às vivências originárias que esculpem nossa fisionomia, sair desta floresta de signos é entrar de novo na vida, mas sob outra condição. Não mais aquela que nos alija da História e nos deixa presos à fatuidade banal de nossas atividades cotidianas, entregues à deriva de seu círculo vicioso. Mas àquela onde se processam e dimanam as possibilidades mesmas que originam a nossa vida possível, e assim nos educa para o sentido mais substancial da palavra liberdade.

Cartografia do imaginário
Dora Ferreira da Silva
T. A. Queiroz
146 págs.
Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho