Mortes no paraíso

Em seu romance de estreia, Carlos Marcelo acerta na escolha do cenário e na construção dos personagens
30/09/2017

A literatura policial sempre foi um gênero instigante, capaz de atrair os mais diversos tipos de leitores. Mas, durante muito tempo, o gênero permaneceu marginal no Brasil. Para isso existem várias hipóteses. A principal delas, que provoca sua pouca aceitação no meio universitário, é que o gênero segue sempre uma fórmula prescrita, permitindo a seus autores produzir grande número de histórias. Portanto, aqui, faltaria originalidade. Outra hipótese, sobretudo tratando-se do nosso país, seria a contínua busca de erudição numa cultura periférica, em que seria preciso escrever “a grande literatura”, que refletisse a cor local e as peculiaridades do país, pois só assim se conseguiria criar identidade própria e chamar a atenção do mundo civilizado. Em relação a esta última, tem-se a impressão de que ela aconteceu. Autores hoje considerados clássicos da literatura brasileira são lidos em muitos países, tornando-se até mesmo objetos de pesquisas em universidades estrangeiras.

É certo que o gênero policial acabou por permanecer um tanto acanhado, relegado a um canto da estante. Ler este tipo de livro seria perda de tempo, o gênero não teria nada a ensinar num Brasil ainda subdesenvolvido, onde haveria muito a se estudar e aprender. Outro ponto a ser considerado é que ao mundo erudito não agrada a literatura de entretenimento. Muitos professores apostam suas fichas numa literatura de busca do conhecimento e de explicação da condição humana, dando destaques a pontos de partida (ou de chegada) filosóficos e/ou existenciais. Junta-se a isso aqueles que privilegiam os experimentos de linguagem. Como, então, situar a narrativa policial em meio a tal universo?

O leitor desse gênero está, na verdade, em busca de algo interessante, de uma história que lhe prenda a atenção, que lhe permita desfrutar o prazer da leitura durante uma viagem, ou mesmo passar o tempo numa fila de banco ou na sala de espera de um consultório médico. Não quero dizer com isso que a literatura policial não deva ser vista como cultura, como obra que atraia leitores devido à própria beleza e arte que comporta.

Um capítulo à parte, ainda sobre toda essa discussão, diz respeito ao conteúdo da narrativa policial num país em que a polícia é vista com suspeição e a justiça tarda e muitas vezes falha. Como um agente da lei, ou um detetive particular, pode arriscar a vida, meter-se em todo tipo de complicação para descobrir o criminoso, se este pegará uma pena na maioria das vezes mínima e poderá estar logo em liberdade alegando bom comportamento? São muitos os problemas a serem superados para que o gênero estabeleça-se por aqui como realmente merece. Ainda assim, contudo, há autores que não desistem. E conseguem.

Duplo assassinato
Presos no paraíso, de Carlos Marcelo, é um romance ambientado em Fernando de Noronha. Com tal escolha, o autor já delimita o seu campo de ação. Um homem, a princípio, viaja à ilha paradisíaca com objetivo de escrever roteiros de viagem para uma empresa de turismo. No dia em que está prestes a voltar, acontece um sério problema com o avião que decolaria para o continente, obrigando os passageiros a permanecerem na ilha durante mais um ou dois dias. No período acontece um duplo assassinato, e este personagem pode contribuir, através de um depoimento, no esclarecimento de alguns pontos obscuros das investigações.

A narrativa é acertada em vários pontos. O primeiro deles é a escolha do local. Não digo aqui sobre a riqueza na descrição das paisagens, assunto que o autor se sai bem. Mas o fato de que se trata de um “universo” fechado, onde quem esta fora não pode interferir, pelo menos no tempo em que a população local e os turistas permanecem isolados. Outro fator é a figura do policial que vai dirigir as investigações. Como atua praticamente sozinho na delegacia, ele não tem os vícios dos policiais da maior parte das delegacias brasileiras, locais quase todos inflados pela corrupção. Nelsão, como é conhecido por todos, está mais preocupado em levar uma vida em harmonia com a natureza, dividindo-se entre peladas de futebol e comidas baseadas em frutos do mar. Nestas ele exagera, o que desencadeia sua contínua, ingrata e infrutífera luta para emagrecer.

A construção dos personagens configura-se competente. Gente como Tobias, Nelsão, o Filósofo e tantos outros são bastante convincentes. Muitos deles deixam de serem tipos para tornarem-se seres humanos complexos. A exceção é Lena, gerente da pousada onde Tobias hospeda-se.

O início do livro, todo em forma de diálogos e com os passageiros dentro de um avião prestes a decolar, apresenta um momento de forte tensão, contribuindo para prender o leitor durante muitas páginas. Neste trecho chega-se a pensar que o autor optou contar sua história começando pelo final, mas não é isso que acontece. O falso fim acabará sendo o início dos principais acontecimentos que Tobias viverá na ilha. O aparecimento do reacionário coronel reformado Dias Nunes, com sua dose de autoritarismo diante de um movimento de Tobias, acirra o ambiente. A narrativa é em primeira e terceira pessoas.  O narrador de primeira pessoa é Tobias, personagem principal, o de terceira descobrimos no desfecho do livro. O que a princípio provoca certo estranhamento, no final acaba por se encaixar de acordo com a proposta do autor.

A história possui muitas idas e vindas e é organizada em várias partes, permitindo ao autor desenvolver personagens que viveram e/ou vivem longe de Fernando de Noronha, como o próprio Tobias quando jovem, sua irmã e sua filha. Também há um mistério a respeito da esposa deste personagem, que só será revelado perto do final da narrativa. Não é comum ao gênero policial muitos flashbacks nem a narrativa iniciada em media res, mas como se trata de um gênero ainda não consolidado na nossa literatura, tais percursos são permitidos e mesmo estimulados. Quem sabe até apareça algum escritor para servir de referência.

Caso haja alguma reparação a ser feita ao livro de Carlos Marcelo, o que se pode dizer é sempre o desejo de se escrever uma grande literatura. Isto é revelado pelos trechos em que estão presentes experiências existenciais não apenas do narrador, mas de muitos outros personagens que habitam Fernando de Noronha. Há também um mergulho no universo cultural da ilha, além, é lógico, dos eventos revelados pelo turismo de apreciação das belezas naturais.

Talvez, após a leitura deste romance, muitos leitores olhem com desconfiança os locais vendidos como paradisíacos.

Presos no paraíso
Carlos Marcelo
Tusquets
279 págs.
Carlos Marcelo
Nascido em João Pessoa (PB) em 1970, o escritor e jornalista Carlos Marcelo morou também no Recife, antes de se formar em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). Escreveu os livros Renato Russo — o filho da Revolução (2009), reeditado e atualizado em 2016. Nicolas Behr — eu engoli Brasília (2003), primeiro volume da coleção Brasilienses; O fole roncou! Uma história do forró (2012), em parceria com Rosualdo Rodrigues, finalista do Prêmio Jabuti de Reportagem. Foi repórter, editor do suplemento literário Pensar, editor de Cultura e editor-executivo do Correio Braziliense. Ganhador de dois prêmios Esso. É diretor de redação do jornal O Estado de Minas desde 2015.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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