Morte ou sumiço

"Anistia", de Pedro Süssekind, narra a potente história de um desaparecimento na ditadura brasileira
Pedro Süssekind, autor de “Anistia”
01/01/2024

A palavra Anistia, em sua simplicidade, é título potente para uma obra. Em sete letras se evoca momentos complexos e conturbados da história brasileira. Nelas estão escondidas uma ditadura empresarial-militar e a vergonha não termos punidos os assassinos e torturadores que a perpetraram, e ainda menos os grandes empresários que a financiaram. Entre essas letras se escondem décadas de repressão, censura, violência. É uma palavra densa em conteúdo, mas concisa; polêmica e forte em suas implicações, mas discreta; uma palavra que mostra a necessidade de se adaptar um tema que, por deturpações de nossa memória, conseguiu se tornar polêmico — e ainda assim, a palavra parece tão despretensiosa. Todas essas características, que dão sentido e enriquecem um termo tão simples, também estão presentes ao longo da narrativa de Pedro Süssekind.

Desde o primeiro capítulo isso é perceptível. O autor demonstra concisão singular, nos contando muito ao mostrar pouco — talento que, numa história em que ausências e segredos são tão importantes, ganha ainda mais relevo.

Anistia segue a história de Emílio, jovem cujo pai, revoltoso contra a ditadura, desaparecera em 1969. Quando a Lei da Anistia começa a ser discutida e o retorno de muitos exilados e fugitivos ao Brasil se torna possível, a possibilidade de uma sobrevida de Luís, seu pai, começa a parecer mais verossímil. Com isso, Emílio passa a buscar notícias com outras pessoas que voltavam do exílio após combaterem a ditadura ao lado de seu pai, um professor de literatura especializado em Homero, cujo codinome, entre os outros revoltosos, era Ulisses. E assim, repleto de referências à vida na época, à história e à literatura, segue o romance de Süssekind.

Sem hermetismo
Antes de mais nada, alerto: não fique com a impressão de que Süssekind é o tipo de autor que arremessa enciclopédias na direção do leitor. A escrita não é nada hermética, e não acredito que, para acompanhar o enredo e o desenvolvimento do romance, seja necessário conhecimento prévio sobre qualquer tema. Muito pelo contrário: a abordagem do autor é sub-reptícia. O leitor fica pela história interessante e porque o enredo desperta a sua curiosidade, a tal ponto que quase não percebe que aprendeu alguma coisa — e se descrevo assim o efeito, é para deixar claro que o livro, embora traga informações que frequentemente vemos em livros de História, foge por completo do didatismo. O nome das abjetas criaturas envolvidas direta ou indiretamente nas torturas e assassinatos na época é mencionado com a mesma naturalidade com que mencionamos hoje os nossos governantes: enquanto realidade material daquele tempo e influência na sociedade de então.

Anistia não fala da ditadura, mas mostra pessoas vivendo sob seu jugo ou sendo mortas por ela. Mostra esperança, e a luz embaçada e distante que a Lei da Anistia representou, embora não fuja de descrições fortes da repressão e suas arbitrariedades, assassinatos e tortura. Não vemos uma explicação sobre a História, e sim, uma história vivida naqueles idos — o que me leva a comentar outro aspecto da obra: a caracterização da época.

A maneira como Süssekind coloca seu leitor naquele período histórico se assemelha ao estilo da obra como um todo: discreta, mas eficiente. Objetos e atos relativamente recentes mas em desuso, como orelhões e a busca de jornais em bancas de revista, dividem espaço com câmeras fotográficas antigas e vitrolas rodando o vinil de Miles Davis. Claro, hoje em dia voltam a aparecer versões mais tecnológicas das vitrolas e do vinil, mas o leitor, consciente da data mostrada nos jornais que as personagens leem, consegue partir dessas indicações, dadas com naturalidade, para se colocar no ambiente descrito.

A única coisa sobre a qual a mão de Süssekind às vezes pesa são determinados diálogos — especialmente entre personagens mais jovens, que manjam de muita coisa porreta, putzgrila, e falam desse modo que, independentemente do quão historicamente acurado possa ser, soa artificial. Mas são casos raros, e não duvido que possam ecoar de maneira mais natural para quem chegou a ter familiaridade com esses termos.

Ainda assim, não consigo pensar em outro aspecto do romance que me pareceu artificial. Muito pelo contrário: o enredo flui e suas peças se encaixam de maneira bastante natural. Os personagens são bem-feitos, e as reviravoltas bem plantadas o suficiente para que eu aposte: vão surpreender muitos leitores, embora os mais atentos possam prever certas descobertas. O foco do romance, afinal, não são grandes acontecimentos nacionais ou globais, mas a maneira como uma família foi desmontada e ferida física, mental e socialmente pelas ações de um governo autoritário — e como resta algo de esperança a essa família. Anistia é, basicamente, a história de um desaparecimento e de uma desejada volta para casa — mas contada do ponto de vista daqueles que esperam.

Referências
Assim como Luís Riva, pai de Emílio, Anistia faz muitas referências à mais clássica história de volta a casa: a Odisseia. E, mais uma vez, o faz de maneira sutil. Se você conhece a epopeia de Homero — e dado o público de um jornal literário como o Rascunho, não parece tão improvável — certamente vai entender alguns significados e, por que não dizer, encontrar algum prazer em desvendar as inúmeras referências espalhadas de forma orgânica pelo romance. Se algo que eu disse até agora apelou a você, recomendo que salte o parágrafo abaixo e leia. Essas referências estão nas páginas do romance, e prometo que será muito mais satisfatório que ler minha breve descrição, em que enumero poucas delas como exemplo da naturalidade com que Süssekind consegue inseri-las em sua obra.

Rebeca, mãe de Emílio (e, portanto, nossa Penélope), é estilista, e se divide entre o trabalho elaborado com tecido e festas em que dispensa seus pretendentes; Emílio, ao descobrir que seu pai pode estar vivo, sai em viagem e encontra Nestor, que lutou ao lado de seu pai. Nestor o encaminha, junto ao filho, a casa de um outro combatente da ditadura, um homem casado com a mais bela mulher que já viram — mulher que foi salva das mãos dos militares por um estratagema de Luís que faz referência a certo plano muito famoso do Ulisses grego.

Dependendo de sua familiaridade com a Odisseia, a descrição acima pode parecer ter muitas ou poucas referências ao poema grego, mas digo com tranquilidade: o livro carrega muitas outras, várias delas bem mais discretas que as que citei e inseridas com um bom gosto cuidadoso na tessitura do romance.

A ditadura
Você não precisa de mim para dizer que a ditadura empresarial-militar que imperou no Brasil entre 1964 e 1985 foi um período de repressão traumático para o país. Um período de censuras, perseguições, torturas e assassinatos, em que a desigualdade social cresceu brutalmente. Ou pelo menos, espero que você não precise que eu diga isso. É difícil ter certeza numa época em que verdades históricas que imaginávamos incontestáveis são questionadas. Em que radicais da extrema direita e revisionistas tentam resgatar um dos mais sanguinários períodos da história brasileira e ressignificá-lo, justificá-lo, transformá-lo em algo menos que um conjunto de crimes hediondos, praticados por quem deveria defender o país, com apoio de seus maiores empresários.

São as recentes tentativas de negar esses crimes e esse trauma que tornam necessárias obras como a de Pedro Süssekind, obras que resgatam os acontecimentos e não se resumem a relatar a história de nosso país, que permitem que o leitor se identifique com personagens enquanto eles atravessam concretamente um tempo em que os crimes da ditadura eram uma realidade. Essas obras não só reativam nossa memória sobre o período traumático, como também transmitem, na medida do possível, um pouco dessa experiência àqueles que a subestimam ou não conseguem visualizar bem a crueldade exercida no período ditatorial. O nosso desconforto com cenas mais fortes de violência e nosso esforço para evitá-las significa que, mesmo quando nos referimos ao período, evitamos descrever de maneira muito explícita os atos praticados então. Assim, nos voltamos a estatísticas e descrições mais genéricas que inevitavelmente suavizam os acontecimentos, apagando nomes e impedindo que as ações ganhem um contorno bem definido. Isso não é dizer que Süssekind descreve a tortura e as mortes de maneira extremamente gráfica; mas ele descreve o suficiente. Não deixa que a forte realidade desses momentos passe em branco.

Se tenho uma reclamação, é a de que Süssekind, apesar das expectativas que seu título desperta no leitor, discute muito superficialmente a questão da anistia enquanto perdão aos militares que cometeram crimes durante a ditadura. O tema não passa completamente batido, mas quase. E se é verdade que o foco do romance é o perdão daqueles considerados criminosos por se revoltarem contra a ditadura, seu título inevitavelmente nos faz pensar em todos os assassinos e torturadores que, assim como seus financiadores e comandantes, nunca foram punidos por seus crimes. O romance, me parece, poderia ter se aprofundado um pouco mais nesse aspecto do problema — até como forma de tirar proveito da presença dos amigos de Emílio, únicos personagens que, por vezes, parecem um tanto desnecessários ao desenvolvimento da ação. Independentemente disso, recomendo fortemente a leitura de Anistia tanto pela qualidade da escrita, quanto pela importância do tema de que trata.

Anistia
Pedro Süssekind
HarperCollins
176 págs.
Pedro Süssekind
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1973. É doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor associado da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua na área de Estética e Filosofia da Arte. Além de ter trabalhado em diversas traduções e artigos acadêmicos, já publicou ensaios, romance e livros de contos.
Bruno Nogueira

É mestre em Estudos Literários e autor do livro de contos A síndrome do impostor.

Rascunho