Uma ausência. Alguém que se foi para nunca mais. Alguém que já esteve. E não mais está. No agora, então, rastros de passados, escombros na memória e tardes compartilhadas outrora, verbalizações que se fazem em eco em meio a afirmações não-ditas que também reverberam, uma estrada interrompida e brumas de inesquecíveis manhãs supostamente eternas, outonos quentes ou madrugadas acesas, entre outras repetições cotidianas que tecem uma existência, afinal, “é de gestos iguais que se fazem os dias”. E muitos dias foram feitos por alguém que a Indesejada das Gentes levou. Houve ontem. Houve ontens. E há o agora, os agoras. Uma ausência. Alguém que se foi para nunca mais. A partir deste mote o escritor português Jorge Reis-Sá elaborou Todos os dias.
O romance se dá a partir do ponto de vista de familiares que perderam um dos seus. Sobretudo, pela maneira como esses personagens se relacionavam com aquele que a morte levou. O presente, então, é assombrado pelo passado. Tudo, e nada, faz com que os habitantes de uma mesma casa recuperem os passos de Manuel Augusto, o protagonista morto que ganha vida pela memória dos que sobreviveram. Em Todos os dias, o que passou não passa, ninguém se livra do passado e o presente se revela prisioneiro, dependente do que se foi. E o que se foi, não vai, permanece.
Morto, vivo pela memória
O retrato de Manuel Augusto adquire espessura, em grande parte, a partir do impacto que ele provocou e que repercute em Fernando, o irmão vivo durante o presente narrativo. Manuel Augusto e Fernando, quase outros Abel e Caim. Manuel Augusto foi um desfile de alegria. Fernando sentia-se mais infeliz que um vira-lata. O primeiro existia sem esforço. O outro lutava por migalhas. Augusto viveu tudo que sonhou: trocou a faculdade pela literatura e se tornou escritor. Fernando seguiu o script endossado pela família: concluiu o curso, entrou no banco, casou e teve filho. E tem o imaginário dominado por um contínuo e rancoroso lamento: “Tu, Augusto, estás morto e, mesmo assim, com a vida que eu queria como minha”. Augusto é o morto que vive, e sobrevive, pelas lembranças do irmão que não se conforma com o próprio destino: “Tu e o teu nome para sempre impresso nas palavras que escreveste e naquelas tantas outras que sobre ti escreveram”.
A voz de Fernando revela um possível irmão Augusto, e denuncia a decepção por ele, Fernando, não ser o outro, o escolhido, a quem todo querer se tornava realidade. “A ti, Augusto, tudo era permitido. Até a loucura quando, obsessivo, te fechaste durante um ano no quarto e decidiste ser escritor.” Fernando inveja até o suposto último ato do irmão. “A mim não foi permitida sequer a morte.” Fernando assume ter desejado sim o suposto último ato do irmão. “Desejei tantas vezes que morresses que, quando finalmente acabaste por me fazer a vontade, me achei um assassino cruel.” A morte não foi o último ato de Augusto, ao menos para Fernando. “Eu quero jantar nesta família. Quero construir com ela a minha velhice. No esquecimento, construindo novas memórias. Mas tu não deixas.” Augusto sobrevive, e permanece, pela repetição continuada do que se dá no imaginário de Fernando. A memória faz do morto, mais do que um vivo, um sujeito eterno.
Líricas, o sublime
Todos os dias é feito pela voz de Fernando somada à de outros personagens da família: a mãe, o pai e uma das avós. São essas vozes, cada uma com timbre peculiar, que recuperam a trajetória e compõem a imagem de Augusto. Todos os dias se faz pela seqüência das vozes dessas personagens. Cada voz aparece em uma, duas até três páginas no livro e então surge outra voz, e assim se dá a narrativa. Todos os dias pode até vir a confundir o leitor devido a essa polifonia. Mas, em painel amplo, essas vozes, mesmo sobrepostas, resultam naquilo que a ausência de um familiar causa. Todos os dias trata de perda. E perda, sob o impacto da sensibilidade literária de Jorge Reis-Sá, se fez, no mínimo, lirismo.
Não é necessário precisar qual personagem enuncia, há lirismo em: “Morre-se onde se entrega a alma, e a minha mãe morreu no dia em que mudou de quarto e deixou o colchão de palha”. Há não apenas lirismo mas beleza (Beleza é lirismo? Lirismo é beleza?), beleza mesmo num fragmento como (independentemente de qual seja o personagem a falar): “É quando as pessoas saem que a casa se enche. Porque o silêncio é do tamanho das paredes da casa”. Silêncio do tamanho das paredes da casa é não apenas lírico, belo mas genial, tão genial como a frase: “Agora a casa é grande apenas pelo silêncio que é meu”. Agora, lírico, belo, genial, sublime, enfim, é o fragmento a seguir (mesmo sem identificar o personagem que diz): “Eu gosto que anoiteça aqui porque é este o quintal que me permite todo o esquecimento e toda a memória”. E, mais do que qualquer outro fragmento, um dos ápices de Todos os dias acontece em uma frase, frase essa que, se o editor do Rascunho consentir, pode vir a ser publicada em negrito: “Sou, na passagem das horas, no olhar de quem amo, todas as resignações, todos os dias que já fui”.
A vida é um dia
Todos os dias articula literariamente o tema perda com densidade e amplidão. E a obra insinua que tudo se passa em menos de 24 horas. O romance é dividido em blocos com títulos que recortam os períodos de um dia: Aurora, Manhã, Almoço, Tarde, Crepúsculo, Jantar e Noite. Os personagens em meio a mergulhos na memória e outras ruminações não apenas seguem no presente mas, sobretudo, elaboram o panorama de toda uma existência. Detalhes da casa e a imagem de um cemitério nas imediações deflagram, praticamente ressuscitam, o ente que se foi. Interessante é que o tempo presente na ficção de Jorge Reis-Sá não é refém da pressa que parece a todos contaminar na realidade real. Ao contrário.
Todos os dias relativiza essa supervelocidade do mundo contemporâneo. Os personagens vivem em um pequeno povoado num ponto qualquer do mundo. Vivem. Mesmo na ficção, com toques de real, eles vivem. Vivem, por exemplo, apesar da inundação de notícias que sufoca os humanos do planeta Terra no presente. Um dos personagens reflete sobre a não-necessidade de consumir informações, assim:
Há também o jornal que compro no Magote e que, todos os dias, termina a sua vida pousado algures em casa do Janela. Mas o jornal sempre existiu e eu nunca lhe vi grande sentido. Era com ele que sabia do mundo, mas o mundo existia enorme à minha volta, sempre que saía de casa para ir para o trabalho, pronto para ser visto, reconhecido. As pessoas eram sempre muitas em meu redor, conversando, trabalhando.
Essa não-dependência do jornal é relevante, não meramente pelo fato do personagem existir e continuar independente das notícias, mas porque a vida acontece e se dá tanto naquele microcosmo e, sobretudo, dentro de cada um dos personagens. Afinal, nesta ficção de Jorge Reis-Sá, é por meio das memórias que os personagens existem e pela memória eles recuperam o que passou e um personagem oculto, morto que está, mas que se revela o protagonista de suas vidas e desta obra-prima que é Todos os dias.presente mas recordando o passado. (…).