Monte Sinai abaixo 4

De como Whitman, Lautréamont, Álvaro de Campos, Pound, Bandeira, Mário e Oswald de Andrade libertaram definitivamente o verso
Ilustração: Tereza Yamashita
01/08/2006

Os primeiros poemas estavam ligados à música, à dança e freqüentemente à improvisação. Diferentemente do que pensa a maioria, os poemas das primeiras comunidades não faziam parte só de suas práticas religiosas. Ninguém nega que a magia e a religião foram primordiais no desenvolvimento da música e da poesia, mas, no início, ao lado do impulso religioso havia também o impulso estético, responsável por poemas que não tinham outro fim senão o prazer desinteressado típico da arte pela arte. Os poemas dos primórdios da humanidade, entoados por caçadores, agricultores e pastores, eram os sagrados poemas dos rituais mágicos, de um lado, e os profanos poemas de circunstância, do outro. Poemas muitas vezes jocosos e improvisados, que versavam sobre os temas mais variados: o amor, a caça, a guerra, as competições tribais.

No tempo em que o mundo era pura magia e os homens só se expressavam em versos, nessa época o poema, o teatro, a música e a dança sérios eram partes de algo maior. Eram partes do ritual místico cuja finalidade era manter vivas as chamas do sagrado. Eram partes da religião. Mas esses poemas de caráter mágico-religioso tinham de conviver com os poemas profanos, quase sempre improvisados, desvinculados das práticas rituais.

Por ter surgido junto com a própria linguagem verbal e por mimetizar o ritmo vital e regular da natureza (o batimento cardíaco, o galope do cavalo, a alternância do dia e da noite, o ciclo da vida, o ir e vir das estações do ano), é verdade que o verso metrificado e regular parece mais natural do que o verso livre, irregular e aleatório como o mundo do artifício e da tecnologia. Mas a beleza dessa suposição não é garantia, como querem alguns, de que o verso metrificado era o único tipo de verso empregado e respeitado no princípio da humanidade ou no princípio do período histórico.

Muitos poetas contemporâneos continuam praticando o poema metrificado, principalmente em razão da crença nesse vínculo original, sagrado e natural. Duas ressalvas podem ser feitas a essa convicção. Primeira ressalva: o fato de uma tradição política, religiosa ou artística ter se originado de determinada maneira não a impede de se desenvolver de modo totalmente diferente. Na sociedade humana as reformas são necessárias e sempre bem-vindas, do contrário ainda seríamos monarquistas e escravocratas. Segunda ressalva: se em sua origem o poema regularmente metrificado e rimado soava natural e agradável, a partir do final do Renascimento esse mesmo poema, com a consolidação das academias e a multiplicação dos beletristas, salvo raras exceções passou a soar pedante e artificial. Em meados do século 20 ele já era totalmente insuportável.

Há muito tempo o verso metrificado pode até ter sido manifestação espontânea da fala e da escrita recém-inventadas, porém, na opinião de vários antropólogos e historiadores, ele sempre teve que suportar a desagradável companhia de seu irmão obscuro, o verso livre. Até que no século 20 este tomou o poder e dominou a cena.

Ampliação do universo
O embate dialético entre o poema rigorosamente metrificado e o poema sem métrica regular é tão antigo quanto a própria literatura. Aliás, essa necessária História social da métrica e da rima ainda está para ser escrita. Da Antiga Mesopotâmia e do Antigo Egito aos dias de hoje, durante boa parte da longa e conturbada história da literatura universal, o verso livre e o verso metrificado disputaram a atenção dos poetas e dos apreciadores de peças líricas. Em certas culturas de matriz oral o verso livre era usado regularmente, em outras, baseadas na escrita, apenas o poema metrificado (e, em certos casos, rimado) satisfazia o gosto refinado da elite letrada. O Enuma Elish e o Gênesis são poemas sem metro fixo nem rima. A Rig veda, a Bhagavad gita, a Ilíada, a Odisséia, as Metamorfoses, a Eneida, Beowulf e Paraíso perdido são metrificados, mas não rimados. A divina comédia, Os lusíadas, Orlando furioso e Invenção de Orfeu são metrificados e rimados. A terra devastada, Cobra Norato, Os cantos e Omeros não são metrificados nem rimados.

O poema rico em ornamentos, metrificado e rimado com habilidade e perspicácia, conheceu o apogeu e a glória no período que vai do final do século 12 até meados do século 20. Foi com a lírica provençal, que se desdobrava em complicadas e requintadas combinações de metro e rima, que ele começou sua escalada rumo à sua plenitude. Nas mãos de Arnaut Daniel, Petrarca, Góngora, Dante, Camões, Byron, Goethe, Milton, Poe, Baudelaire, Mallarmé, Maiakovski, Alberto Caeiro, Drummond, Jorge de Lima, João Cabral e tantos outros, essa manifestação particular da poesia foi soberana por quase 800 anos.

A alquimia do poema metrificado e rimado é dialética: o rigor militar do metro fixo e da rima tenta aprisionar o discurso na camisa-de-força do metrônomo, a fúria e o vigor das imagens tentam derrubar as paredes desse cárcere privado. Ao mesmo tempo refém e algoz das muitas formas fixas, cada poeta citado precisou inventar novas maneiras — maneiras originais, até então desconhecidas — de equilibrar essas forças antagônicas, a fim de transformar em poesia o que de outra forma seria apenas literatura metrificada.

Esse acadêmico exercício de mecânica silábica atravessou soberanamente os séculos. Até que Walt Whitman, com suas Folhas de relva (1855), virou novamente o jogo. Aproveitando o rigor mortis da métrica rigorosa, o verso livre se propagou primeiro entre os poetas franceses e em seguida entre os poetas do resto do mundo. Whitman, Lautréamont, Álvaro de Campos, Ezra Pound, Mário e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e muitos outros modernistas libertaram definitivamente o verso e, com voz vigorosa e apaixonada, devolveram ao poema a independência perdida. Antipático ao racionalismo iluminista, cada verso livre propõe seu próprio metro, que no poema é diferente do metro dos versos anteriores e do metro dos versos seguintes, subordinando-se apenas ao fluxo e ao refluxo das imagens.

Os concretistas brasileiros, no início de seu movimento, argumentaram de maneira enfática que o ciclo histórico do verso havia chegado ao fim. A afirmação, como todos os manifestos de vanguarda defendidos no século 20, foi categórica e produziu o efeito desejado: seduziu parte da audiência e irritou meio mundo. Apesar de desviarem a atenção do que realmente importa — os poemas —, esse e outros lances retóricos ajudaram a consolidar e a expandir o movimento.

Porém sempre acreditei que a poética concreta, em vez de eliminar o verso, ampliou-o, enriqueceu-o, exatamente como o avô de todos os poemas concretos, Um lance de dados, de Mallarmé, fez há mais de cem anos. Diferente do que está nos manifestos, o verso não desapareceu de poemas como Coca-cola, Nasce/morre, Vai e vem, O pulsar e Pós-tudo; ele ganhou foi nova roupagem. Ganhou cor, som, movimento e perspectiva. Novas e arrojadas tipologias foram convocadas para quebrar o rigor e a sobriedade das tipologias clássicas. O horizonte do verso ampliou-se, adquirindo dimensão insuspeitada, no momento em que o espaço branco da página ganhou mais prestígio. O universo do verbo, microcosmo de significados, agora é maior.

O triunfo do sagrado
Para as pessoas educadas na tradição iluminista e indiferentes à moral cristã e à retórica das religiões instituídas, a poesia é o último reduto do sagrado. Desde que o método científico, a revolução industrial e a filosofia marxista puseram abaixo qualquer possibilidade de existência de Deus ou de deuses, a poesia, para o indivíduo culto, transformou-se na única fonte aceitável do gozo místico. Mesmo o mais racional e materialista dos homens não se satisfaz apenas com a existência profana. Resistente à hipocrisia dos sacerdotes profissionais e à manipulação da fé, a necessidade de se vincular a algo maior e mais profundo faz com que esse homem se volte para a arte.

Por meio da poesia (axis mundi virtual) o mistério da criação do cosmo e dos seres vivos é constantemente representado e reapresentado. Quer se manifeste nas artes plásticas, na música ou na literatura, para o indivíduo cético e materialista da era tecnológica só a poesia é capaz de proporcionar as indescritíveis epifanias até há pouco exclusivas do fenômeno religioso. O sagrado, nas mãos totalitárias da Igreja e de outras instituições que banalizam o sobrenatural, tornou-se algo anódino e burocrático. O sagrado, nos templos do mundo capitalista, não passa de uma mercadoria como outra qualquer. Tornou-se pura racionalidade comercial.

Mas no âmbito da literatura o poeta de hoje é o xamã da era industrial, é o único indivíduo capaz de revelar aos poucos iniciados o sagrado da poesia e a poesia do sagrado. Revelação que, para acontecer, precisa ser intermediada por sacerdotes céticos, por criadores conscientes de que suas verdades são todas provisórias e seu altar não é de mármore e ouro, mas de ritmo, imagens, correspondências e subdivisões prismáticas de idéias.

Indicação de leitura

ABC da literatura, de Ezra Pound. Cultrix, 1995.
A personagem de ficção, de Antonio Candido e outros. Perspectiva, 2002.
Formas breves, de Ricardo Piglia. Companhia da Letras, 2004.
Na madrugada das formas poéticas, de Segismundo Spina. Ateliê Editorial, 2002.
O sagrado e o profano, de Mircea Eliade. Martins Fontes, 2001.
Signos em rotação, de Octavio Paz. Perspectiva, 1996.
Teoria do conto, de Nádia Battella Gotlib. Ática, 1990.
Texto/contexto (volume 1 e 2), de Anatol Rosenfeld. Perspectiva, 1996 e 2000.
Uma teoria da poesia, de Domingos Carvalho da Silva. Civilização Brasileira, 1989.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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