Oficinas de criação literária são necessárias. São empolgantes. São eficientes.
Talento se ensina? É possível ensinar alguém a escrever bem? Acredito que não. Na minha opinião o talento é inato, ou o diletante já nasce com ele ou jamais conseguirá ultrapassar a condição de aprendiz, de amador, de novato.
É possível ensinar alguém a não escrever mal? Pode apostar que sim. Como? Por meio de toques, apontamentos, discussões inflamadas. Por meio da troca de impressões e das mais variadas dicas literárias, musicais, teatrais, cinematográficas. Quem não quiser escrever mal, quem quiser ajudar outros escritores a não escrever mal, deve primeiro evitar a leitura descompromissada. Deve obrigar a intuição a casar com a razão. Deve saber ler e se expressar com critério: como crítico, não como parente, namorado ou amigo de infância. Deve escrever apaixonadamente, ler apaixonadamente, discutir apaixonadamente. Mas sempre de maneira compromissada. Ao ler o trabalho dos colegas, deve apontar os vícios, os exageros, os lugares-comuns. Deve tentar espantar o mau gosto, o kitsch, o melodrama. Deve sugerir alternativas, indicar caminhos, recomendar leituras.
Que é literatura?
Coordeno oficinas de criação literária desde 2002. A primeira coisa que tive que aprender, ao lidar com os freqüentadores mais ansiosos, foi a driblar com tranqüilidade e bom humor a fome de definições que parece torturar a maioria das pessoas que, cedo ou tarde, resolvem se envolver de maneira mais disciplinada com a literatura.
Todos querem escrever bem, mas poucos acreditam saber com exatidão o que é escrever bem. Isso mesmo. Pura insegurança: eles sabem, mesmo que de maneira intuitiva, o que é escrever bem, mas não acreditam que sabem. Ou pior: rejeitam o que sabem. A literatura às vezes é tão libertina e escatológica que boa parte dos candidatos a escritor não aceita o comportamento obsceno dessa arte considerada em geral demasiadamente nobre e sagrada.
A fome de definições atrapalha bastante a criação. Ela distrai e confunde o autor inexperiente, que, em vez de concentrar toda sua energia na elaboração de algo realmente novo e indefinido, preocupa-se o tempo todo em fazer seu texto caber perfeitamente nas fôrmas preestabelecidas. Mas a fome de definições está sempre aí e não pode ser ignorada. Ela é o estorvo que só sairá de cena depois que receber certa atenção do público.
Perder tempo discutindo o sexo dos anjos ou o fim da Atlântida não é comigo. Me interessa a criação. Por isso em minhas oficinas eu passo em alta velocidade pela fome antediluviana de definições.
Existem perguntas traiçoeiras que todo diletante mais atrevido, a fim de testar o coordenador da oficina, jamais deixa de formular logo no primeiro encontro. A pergunta mais antipática de todas, na minha opinião, é: que é literatura?
Por que eu considero antipática essa pergunta?
Por três motivos.
Primeiro: literatura é como o jazz. Quando perguntavam a Louis Armstrong o que é o jazz, sua resposta era fulminante: “Se você não sabe que é o jazz, então não adianta eu tentar explicar”. O mesmo vale para a literatura.
Segundo: existem milhares de definições de literatura, desde as mais estúpidas até as mais poéticas, desde as mais edificantes até as mais controvertidas. A minha predileta é a definição sugerida por Albert Camus: literatura é o exercício da inteligência a serviço da sensibilidade nostálgica ou revoltada. Esse poderoso enunciado me comove e atiça. Repita-o três vezes em voz alta e sinta toda sua força. Não é difícil perceber que essa definição é do tipo poético: Camus endereçou-a à literatura, mas, bela e estimulante, ela serve tranqüilamente para todas as artes.
Terceiro: a prática (criação) sempre precede a teoria (definição). Os novos talentos da poesia e da ficção logo que surgem modificam o panorama literário e redefinem o cânone, obrigando a crítica a reformular seus conceitos.
Definições provisórias
A maioria das definições em arte e literatura é restrita demais, beneficiando apenas a escola artística ou literária que as cunhou e excluindo as escolas dissidentes ou amplas demais, ou seja, são tão abertas que acabam englobando tudo (como a de Camus, que serve muito bem para o cinema, o teatro e a música de qualidade). A melhor definição é a que não exclui nada que não deva ser excluído, é a que dá pouca liberdade para as exceções.
Que é prosa? Que é poesia? Que é conto, crônica, novela e romance? Para diminuir a angústia do diletante e estabelecer as coordenadas mínimas e o repertório básico que permitirão que todos falem a mesma língua, eu voltei do monte Sinai com a seguinte tábua de definições:
Poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético.
Poema é o texto composto em versos e estrofes.
Prosa é o texto composto em orações, períodos e parágrafos.
O poema é feito de linhas breves, a prosa é feita de linhas longas.
Ponto final.
Observem que a definição de poesia me permite buscar essa qualidade em todas as artes. Me permite falar da poesia que há nos bons poemas, nos bons contos, na boa arquitetura, no bom cinema, no bom teatro, na boa escultura…
O conto
Falar sobre a literatura de qualidade é muito mais fácil do que produzir literatura de qualidade. Aliás, parece verdadeira a crença de que é mais fácil discorrer criticamente sobre a boa prosa e a boa poesia do que produzir boa prosa e boa poesia (vem daí a famosa provocação que garante que todo crítico é a sublimação mal costurada do escritor frustrado que habita seu corpo). Há também momentos em que falar sobre o conto e sobre a prosa de ficção em geral é a mesmíssima coisa. Não fiquem espantados, isso vai ocorrer bastante nos próximos parágrafos.
Na prosa, o modernismo literário, buscando a originalidade e fugindo da tradição, deu à luz mil filosofias diferentes de composição, que por sua vez pariram uma imensa variedade de contos, novelas e romances. As múltiplas possibilidades técnicas e estruturais que cada gênero narrativo tem a oferecer desmontam todas as definições clássicas (de Aristóteles aos teóricos contemporâneos) e põe à disposição do escritor infinitos caminhos criativos. Dada essa multiplicidade de modos de composição, a definição contemporânea de conto, novela e romance, para não deixar escapar as narrativas mais avessas a definições, tornou-se bastante elástica. É claro que tal flexibilidade não é exclusiva da literatura, ela deriva da superflexibilidade que nos últimos dois séculos encampou todas as áreas do conhecimento humano.
Por exemplo: que é o conto? Qual a diferença entre o conto, a crônica, a novela e o romance?
Edgar Allan Poe baseava sua teoria do conto na relação entre a extensão da narrativa e o efeito (inquietação, medo, dúvida, encantamento, excitação, perplexidade ou qualquer outro) que o autor deseja que a fruição da narrativa provoque no leitor. Para o escritor norte-americano (anos mais tarde, Anton Tchekhov também adotou esse princípio), o conto só produzirá esse efeito único e fulminante, essa impressão total, se for apreendido de uma só assentada e mantiver o leitor sempre em suspense. Por isso, para exercer o domínio sobre o leitor, o conto não deve exigir mais do que duas horas de leitura atenta. Poe estendeu também ao poema sua filosofia da composição baseada no perfeito e explosivo casamento da extensão do texto com o efeito literário pretendido.
Vladimir Propp, por outro lado, não se preocupava com a extensão da narrativa. Ele alicerçou sua rigorosa definição do conto folclórico russo, intitulada Morfologia do conto maravilhoso (1928), na análise cuidadosa das diferentes ações das personagens. A descrição estruturalista de Propp se baseia nas 31 ações constantes (ele as chama de funções) que as diferentes categorias de personagens (sete no total) podem executar ao longo da narrativa. Apesar de considerar apenas o conto popular, de estrutura simples, o sistema de Propp foi posteriormente ampliado pelos seus seguidores europeus para abarcar também o conto literário, muito mais complexo. Porém o altíssimo número de funções nos contos modernos e nos contemporâneos, o desdobramento do caos em tantas ações graúdas e miúdas, em tantas categorias de personagens e de narradores, tudo isso inviabiliza a classificação segundo determinados padrões estruturais.
Ricardo Piglia, incrementando a teoria do iceberg de Ernest Hemingway (o contista talentoso é sempre econômico: seu narrador revela muito pouco, deixando os fatos mais importantes apenas subentendidos), nas suas duas teses sobre o conto também mantém o foco no enredo: para ele todo conto sempre narra duas histórias, uma história visível (a ponta do iceberg) e uma secreta (o imenso corpo submerso do iceberg), narrada de forma elíptica e fragmentária. Para Piglia, o talento do contista está em entrelaçar ambas as histórias, de maneira que só no desenlace seja revelada, de modo surpreendente, a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira veio se desenrolando.
As muitas definições e teorias do conto, amadurecidas por gente como Poe, Tchekhov, Propp, Hemingway, Piglia e tantos outros, por serem detalhistas demais, sempre deixam escapar por entre os dedos bons espécimes. Pouco tem a dizer, por exemplo, sobre o miniconto e o microconto, formas brevíssimas muito praticadas nas últimas décadas. Pouco tem a dizer sobre as novas modalidades de conto, muito distantes de sua forma simples (o conto maravilhoso, transmitido oralmente de geração a geração) e de sua forma modernista (a produção dos contistas citados e também a de Kafka, Cortázar e Guimarães Rosa): o conto em forma de mosaico, feito de recortes de jornais, revistas e livros; o conto minimalista; o conto confessional em espiral, que usa largamente o fluxo de consciência; o conto produzido com os elementos até então só encontrados em poemas, como as assonâncias, as rimas internas e os jogos sutis de linguagem.
A confusão acontece também com as muitas definições e teorias da crônica, da novela e do romance, para ficarmos apenas na prosa. Novamente para diminuir a angústia do diletante e estabelecer as coordenadas mínimas e o repertório básico que permitirão que todos falem a mesma língua, eu voltei do monte Sinai com mais essa tábua de definições:
A diferença entre o conto e a crônica é de natureza, não é de extensão.
A diferença entre o conto, de um lado, e a novela e o romance, de outro, não é de natureza, é de extensão.
A diferença entre a novela e o romance não é de extensão, é de natureza.
Hoje o que diferencia o conto da crônica é a densidade poética.
O conto é pesado, a crônica é leve. O conto deve provocar e inquietar, a crônica deve entreter e deleitar. A crônica é a prosa curta, amena e coloquial, com toques de malícia e humor, sobre os fatos políticos da atualidade ou sobre os hábitos e costumes dos diversos segmentos sociais. O conto é todo o resto, é toda a prosa curta que não é crônica.
Hoje o que diferencia o conto da novela e do romance é principalmente a extensão: o conto é curto, a novela e o romance são longos. O que diferencia a novela do romance é basicamente o número e a disposição das unidades dramáticas: na novela há a sucessão cronológica, em linha reta, de várias unidades dramáticas, sucessão que pode ser prolongada indefinidamente (grosso modo, é como se a narrativa fosse feita de vários contos ligados pela permanência das mesmas personagens). No romance há menor número de unidades dramáticas e todas estão interligadas, ou seja, as células dramáticas não surgem dispostas lado a lado, em linha reta, mas simultaneamente, como em certos móbiles em que cada esfera está ligada a todas as outras.
No próximo Rascunho falarei um pouco mais sobre o conto e, é claro, sobre a poesia.