No Podcast da revista Veja, disponível para quem acessar o site da publicação, o colunista Diogo Mainardi disse que a literatura perdeu sua importância no sentido de não mais suscitar um debate de interesse geral. No limite, afirma o colunista, em nossos dias, o romance não passa de um jogo de piscadelas entre os autores e os leitores, posto que ambos os grupos conhecem todas as artimanhas, truques e saídas deste gênero literário. É na esteira desta pensata de Mainardi que se pode incluir os dois recentes lançamentos do espanhol Manuel Vázquez Montalbán, morto em 2003. Milênio e Erec e Enide, de certa forma, confirmam e refutam a tese do enfant terrible da imprensa brasileira. E isso se dá porque, em ambos os livros, Montalbán foge da estrutura temática central de um romance e parte para um gênero que mescla a memória afetiva, o personalismo e, como sói a um grande romancista, a vontade de contar boas histórias. A fórmula parece simples, mas, como já foi aventado no início deste parágrafo, existe um desafio de fazer com que essas histórias ultrapassem o estigma da piscadela.
E, com efeito, a princípio, as histórias de Milênio e de Erec e Enide não escapam da tradição dos romances tradicionais. Ao leitor que conferir os textos de apresentação dos respectivos livros, não haverá nada de novo sob o sol. O primeiro se circunscreve dentro da literatura policial, com direito a dois detetives, seus cacoetes e seus mistérios a serem resolvidos. Já o segundo tem como eixo central o outono da vida de um intelectual que prepara sua última conferência acerca de duas personagens, mais precisamente Eric e Enide, e, amiúde, comenta acerca dos fatos que envolvem esse seu último ato. Como se vê, aparentemente, não existe nada de especial nos dois assuntos, entretanto, como costumeiramente ocorre na literatura, as duas histórias surpreendem pelos detalhes que cercam as duas narrativas, conforme se verá a seguir.
Em Milênio, o que se lê é a história de detetive Pepe Carvalho que, de repente, se vê perseguido e é obrigado a fugir por ser acusado de assassinato. Daí em diante, o que se lê é uma viagem por lugares inusitados onde o personagem central e seu ajudante passam a descobrir os prazeres gastronômicos e teorizações sobre os rumos da humanidade. Em verdade, se é verdade que o tom policial tem grande importância neste romance, também é verdade que o texto de Milênio ultrapassa as limitações impostas em tese pelo gênero. Notam-se, assim, os arquétipos, os modelos, os tipos típicos das personagens, mas, em contrapartida, há uma discussão bem mais profunda que envolve o romance. Como escreveu Ubiratan Brasil, crítico do jornal O Estado de S. Paulo, para Montalbán, o romance policial era uma forma de construir um romance-testemunho sobre a realidade. Nesse sentido, a produção do escritor espanhol neste gênero expõe uma poética possível do capitalismo mais agressivo, uma vez que exibe a debilidade limite entre política e delito, evidenciando, desse modo, a existência de duas verdades, esclareceu o autor em entrevista ao Estado.
Em Eric e Enide, a história é de Julio Matasanz, um professor que parte para a Grécia para receber uma homenagem em um congresso de literatura. Na Grécia, ele se encontra com sua amante e, como numa espécie de filme de memória, recorda junto ao leitor os principais momentos de sua vida, ao sabor de cenários construídos ora com as referências literárias a Eric e Enide, personagens oriundos dos cavaleiros da Távola Redonda. Em certo sentido, este seria um livro mais hermético, mais complexo; ocorre, entretanto, que ao repassar sua história de maneira memorialística, o autor destitui o livro de sua carga erudita do ponto de vista estilístico. Assim, tece com simplicidade uma narrativa que poderia figurar entre os livros de difícil compreensão por parte dos leitores e de fácil aceitação por parte dos críticos. Ambos os lados, aqui, são presenteados com uma prosa repleta de símbolos, mas cujo significado está acessível aos leitores que encararem o romance.
Estilo e obsessão
Em que pesem as particularidades de cada obra, o que se nota, cumpre ressaltar, é o fato de as duas obras contarem com elementos caros ao estilo e às obsessões de Montalbán. No que se refere ao estilo, por exemplo, o autor, cuja produção compreende ensaios, biografias e reportagens, além de poesia, consegue impor nos livros um formato de rara fluidez, a ponto de o leitor sentir-se conduzido e absorvido pelas histórias, muito embora elas sejam entrecortadas, apresentando idas e vindas ao longo das páginas. A propósito das obsessões, logo nas primeiras linhas de Milênio o leitor verá que também o personagem Pepe Carvalho, ao se apresentar a madame Lissieux, logo se apresenta como especialista em literatura medieval, característica semelhante do personagem central de Erec e Enide.
Adiante, outro ponto em comum nos dois livros, está a crítica aos rumos da globalização. Não, leitor, ele não cria um assunto para levantar um debate na sociedade. Até mesmo porque, num mundo dominado pelo culto às imagens, pelo “celebridismo” e pela superficialidade, dificilmente, um romance será, ao menos em nossa época, objeto de um grande debate de idéias fora dos círculos acadêmicos ou do universo literário. Sem fugir da “realidade”, Montalbán insere nas palavras de seus personagens algumas de suas preocupações, como a proposta do trabalho das ONGs, a discussão acerca do movimento slow food, bem como o debate a propósito da relevância da política e da luta de classes. Que fique claro: Montalbán não assinou dois libelos sobre a política em tempos de globalização; contudo, não escapou desse debate justamente por ser um escritor que se viveu e sentiu a influência da política, da cultura e das mudanças sociais de seu período. Talvez seja significativo, nesse ponto, que as obras não reflitam tais preocupações ao mesmo tempo em que lidam com o romance policial e uma espécie de romance memorialístico.
A literatura, de acordo com a proposta de Montalbán, funciona como peça de resistência. Em outras palavras, num mundo cada vez mais corrompido pela virulência do comodismo, da mesmice, numa espécie de triunfo da mediocridade, o escritor assina dois romances que criticam esse status quo, utilizando, como fonte inicial, a ficção que se esmera na realidade. Ora, se é por piscadelas que os autores de nossos dias estabelecem um diálogo com os leitores, como ironizou Diogo Mainardi, Manuel Vázquez Montalbán é no mínimo sarcástico ao renomear seus detetives em fuga com os nomes de Bouvard e Pécuchet, personagens de Gustave Flaubert. Afinal, num período em que as referências literárias mais óbvias passam por piadas internas, a referência a Flaubert corre o risco de soar tão somente desnecessária ou intelectual demais. Para o bom leitor, no entanto, é um detalhe que não deve passar despercebido, sobretudo por se tratar, a história, de um romance policial.
Semelhantemente, também, o relato sobre o universo intelectual de Julio Matasanz, pontuando sua existência ao mesmo tempo em que trata de uma obra pertencente à literatura medieval, mostra aos leitores uma visão de mundo um tanto obscura e amarga, já que a face humana das pessoas com quem ele convive, para o bem e para o mal, se transformou. Assim, em vez de enxergar na modernidade um mote para a brutal mudança da sociedade, o autor assinala tal alteração a partir de um cenário inusitado e de uma história de amor entre um jovem da corte do rei Artur para viver com a mulher por quem estava apaixonado, Enide. Seria uma contradição se, com efeito, não existisse aí uma tentativa do próprio autor em salientar as diferenças a partir de opostos. Dessa maneira, se a literatura já não mais apresenta uma questão de ordem para debate em sociedade, não é porque seus temas estão obsoletos ou ultrapassados. Antes, trata-se de um déficit de atenção de nós, leitores, que preferimos a superfície, deixando de lado a profundidade e a aspereza de determinadas temáticas. Montalbán, à sua maneira, atenta para isso, mas a pergunta permanece: será que estaremos aptos a perceber o seu piscar de olhos?