Montaigne ou Patanjali?

Em "Ioga", de Emmanuel Carrère, um multifacetado narrador encara as misérias do mundo
Emmanuel Carrère, autor de “Ioga”
01/05/2024

Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. Queria eu dizer então que, vivendo rodeados de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla.

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

Poderíamos muito bem evocar essas palavras de José Saramago para refletir sobre o romance Ioga, de Emmanuel Carrère, pois, se à primeira vista, temos a impressão de estar diante de um relato puramente autobiográfico, aos poucos, o que se nos revela é uma estratégia narrativa instigante que explora, ao máximo, os diversos recursos do chamado “gênero híbrido”, tão recorrente em boa parte dos romances contemporâneos.

Assim é que acompanhamos esse instável narrador em primeira pessoa, assumindo suas múltiplas faces, ora como ensaísta ou repórter, ora como escritor em crise que reflete, metaliterariamente, sobre sua Ars Poetica ou ainda como o homem Emmanuel, que, num viés autoficcional, se desnuda diante do leitor, totalmente fragilizado ao confrontar as misérias do mundo. Tais procedimentos multifacetados do narrar são perfeitamente coerentes com a fragmentação do sujeito que se impõe em um universo que deixa de ser coeso, desde que a dúvida nietzschiana se instaura no centro do palco e rouba toda a cena. Depois que o espelho de Narciso se quebra, o que resta é essa tentativa de amalgamar os cacos de um eu que já não pode ser uno, mas que pirandellianamente é “um, nenhum e cem mil”.

Consolo narcisista
Com a “melhor das intenções”, numa investida altamente irônica, o protagonista, visando ter ideias para seu novo romance, “um livrinho simpático e perspicaz” sobre a ioga, se dirige para o Vipassana, um retiro de meditação, não muito distante de Paris, inspirado nos rituais hindus. Por mais que ele tente buscar a unidade do ser, por mais que se esforce para se desconectar de tudo e realmente se empenhar nos infinitos benefícios da meditação, aprendendo a “ habitar o eu inabitável”, acabará por concluir que o que há de mais interessante na vida, ao contrário do autocentramento, “é tentar saber isto: o que é ser outra pessoa que não você”:

Simone Weil dizia: “há muito pouca gente, no fim das contas, que sabe que os outros existem”. A meditação, décima primeira definição, deveria nos pôr a par disso. Se ela não o faz, se ela se limita a ser algo entre você e você mesmo, ela não presta para nada: mais um consolo narcisista. Isso me deixa triste.

Outras vidas
Não à toa, no referido trecho, ele recupera o tema central do que afirma ser sua obra predileta: Outras vidas que não a minha (escrevi sobre neste Rascunho, #138, out/2011). Nesta, o narrador viaja de férias, com a família, para outra espécie de retiro, um resort de alto padrão no Sri Lanka. Sua crise matrimonial, que inicialmente é descrita como um grave problema, torna-se insignificante quando a região é devastada por um tsunami e o drama, antes íntimo, passa a ser coletivo. Assim, a chamada onda, a catástrofe climática o retira da perspectiva autorreferencial, fazendo com que passe a olhar ao redor, à existência dos outros, numa verdadeira tomada de consciência.

De maneira análoga, em Ioga, a crua realidade o toma de sobressalto quando, estando já no retiro Vipassana, vê-se obrigado a voltar a Paris às pressas, devido ao trágico ataque terrorista à sede da revista Charlie Hebdo, em que um de seus amigos jornalistas morre.

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Justamente por não conseguir se alienar das misérias do mundo, dos tsunamis e ataques de toda a espécie a que estamos sujeitos, por considerar que a vida dos outros importa muito e deve constituir matéria-prima ficcional, o narrador, em arguta chave crítica contrapõe Montaigne a Patanjali:

[…] mas esses são os bons e velhos pensamentos humanos, bastante variados, bastante interessantes, e me pergunto de repente por que Patanjali e sua turma consideram essas vritti inofensivas nuvens de insetos funestos, inimigos que é preciso vitrificar a todo preço e substituir pela observação do ar que passa pelas narinas. Subitamente fico em dúvida. O que estou fazendo aqui? Onde foi que eu me enfiei? Por que sentir vergonha do que eu penso? Será que isso não é um pouco uma Coreia do Norte, em última análise? Não estou me comparando a Montaigne, saiba disso, mas será que Patanjali não condenaria também a ele, Montaigne, pela própria condescendência em relação às suas vritti? Pelo prazer tão vivo que ele sente em “acompanhar o espírito na sua marcha insegura, fixar tantos incidentes miúdos e agitações diversas”?

No fundo, embora manifeste idealmente o desejo de “desgastar o ego, a avidez, o espírito da conquista e da competição”, escrevendo com a mesma fluidez da ioga, ele sabe, em contrapartida, que a meditação visa à interrupção da narração de histórias. A tal aquietar da mente corresponde a busca pelo Nobre Silêncio que, em última instância, busca anular as contradições, as inquietações, as perplexidades intrínsecas a nosso estar no mundo. Nesse sentido, a meditação esvaziaria o propósito — citado por Montaigne — da escrita inclinada a “acompanhar o espírito em sua marcha insegura”, em sua riquíssima instabilidade, tão cara, por exemplo, aos exercícios ensaísticos do célebre escritor.

Dostoiévski e Dalai Lama
Uma vez que a dúvida está no centro de tudo e se nutre da fragmentação desse sujeito de múltiplas faces, infinitas vozes e olhares, na relativização abissal da onipotência de uma única verdade, o que nos resta é a arte da fabulação. Daí ser perfeitamente compreensível essa outra máxima do narrador:

Tudo que é real é verdadeiro, por definição, mas algumas percepções do real têm um teor de verdade muito maior do que outras, e não são as mais otimistas. Acho, por exemplo, que esse teor de verdade é mais elevado em Dostoiévski do que em Dalai Lama. Para resumir, no que dizia respeito ao meu livrinho simpático e perspicaz sobre a ioga, eu estava meio de saco cheio.

Inspiração x expiração
Ao descrever sua extensa trajetória de vida em que procurou meditar, em diversos contextos, seguindo os mais diversos mestres hindus, chineses e outros, até chegar às raias da loucura, o narrador revela o quanto sempre lhe pareceu mais fácil, na exigente arte de respirar, fazer o movimento da inspiração do que o da expiração. Tanto que teria cogitado — justamente pelo seu grau de dificuldade — um possível título para o seu “livrinho”: A expiração.

Recorrendo a requintes de ironia, também o constructo formal do romance acompanha, ainda que de modo propositalmente desatinado, o inspirar e o expirar da função primeira de nossa existência: o da respiração.

Um dos eixos da narrativa se perfaz por meio de afirmações, citações, pesquisas e máximas dos mais diversos e inusitados preceitos da famosa arte da meditação e da ioga num processo que remete ao ato da inspiração — naturalmente mais fácil. Por outro lado, as observações críticas a respeito, as dúvidas e principalmente a explícita percepção do quanto tais práticas podem ser alienantes sugerem, nesse difícil ato de expirar, o desafogo, o desabafo, a denúncia e a liberação de tudo o que sistema enganoso do mindfulness tenta impor. Expirar, nesse sentido, teria a função catártica e liberatória de nos alertar para o que Adorno já anunciava ao afirmar que “consciências alienadas” são “coisas” e estas, por não pensarem, deixam-se manipular. A grande armadilha contemporânea seria, então, a de que o sistema nos hiperconecta e condiciona a uma infinidade de telas, aplicativos, mídias e gadgets no limite da saturação, para propor em seguida, a desconexão e o desligamento (práticas de mindfulness) como antídotos para os males que ele mesmo causa.

Diante de tudo isso, muito mais do que um “simpático livrinho” sobre ioga, bem mais do que esses que desfilam pelas prateleiras de autoajuda de toda a espécie, este de Carrère, em articulada mescla de estilos, nos coloca em xeque-mate: “será que a meditação pode domar o horror que nos ronda, a verdade horrível daquilo que na realidade nos habita, no segredo dos nossos corações e das privadas?”.

Ioga
Emmanuel Carrère
Trad.: Mariana Delfini
Alfaguara
268 págs.
Emmanuel Carrère
Nasceu em Paris (França), em dezembro de 1957. Formado no Institute d’Études Politiques, é escritor, roteirista e diretor de cinema. Já recebeu os prêmios Femina, Renaudot, FIL de Literatura, Prêmio da Biblioteca Nacional da França e Princesa de Astúrias, entre outros. É autor, entre outros, de O bigode, Outras vidas que não a minha, Limonov e O reino.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho