Monótona ladainha

Marcado por uma linguagem retorcida, supostamente poética, "Nosso grão mais fino", de José Luiz Passos, é leitura maçante e obscura
José Luiz Passos por Osvalter
01/05/2009

A produção de literatura — isto é, o trabalho de fazer com que a linguagem, vencendo seu caráter trivial, alcance um novo patamar de expressão, a fim de transmitir aos leitores situações ou estados subjetivos que, não necessariamente singulares, provoquem estranhamento, prazer, empatia — guarda inúmeros percalços. Em Nosso grão mais fino, José Luiz Passos tentou transpor essas dificuldades — e ele certamente as conhece, pois é autor de estudos literários sobre Mário de Andrade e Machado de Assis —, mas não conseguiu chegar a um termo satisfatório.

Novela de rememoração, na qual o protagonista/narrador, Vicente, busca recuperar não só o passado de glórias familiares — conquistadas, pelo que se pode concluir, desonestamente —, mas o amor vivido com Ana Corama, Nosso grão mais fino é marcada por uma linguagem retorcida, supostamente poética, que dá vida a um conjunto de imagens muitas vezes incompreensíveis.

A ênfase desse narrador ultrapassa qualquer barroquismo. Por exemplo, é certo que existem maneiras belas ou literárias de se descrever um beijo no umbigo da amante, mas há evidente exagero nesta tortuosa forma de se expressar:

cerimonioso, beijo-lhe em meu caminho avante a sua primeira cicatriz, aquela que a mantinha conforme a seiva da sua mãe ignorada, cicatriz do canal por onde saciou a primeira fome apegada ao fôlego do simples cordão torcido e vigoroso.

E há outros exemplos. É no mínimo curioso que o narrador diga “espero há horas Corama sair de seu estado de chão”, quando poderia usar, apenas, o verbo “levantar”. O miado insistente de um felino é descrito como a “rogativa costumeira desse animal”. Frente ao contexto em que a expressão surge, concluo que “acaba de apaziguar a antigüidade da espécie” significa “gozar” ou “atingir o orgasmo”. O marido de Ana não faz a barba, mas “diante do espelho, agora que veio a manhã, […] raspa o rosto dessa matéria que se lhe aderiu no tempo de subir mais um sol”. A própria Ana não pára ou desiste de se maquiar, mas afirma: “resisto à reforma de mim”. E quando o narrador afirma que “Corama aperta os lábios para exprimir melhor uma idéia em pó de grafite”, certamente quer dizer que ela escreve com um lápis…

Literatices desse tipo surgem de maneira injustificada, pois o narrador não é adepto do gongorismo, mas apenas um químico que, segundo suas próprias palavras, tem “a caneta medida em gotas” e sempre buscou ser “preciso, exato, paulatino”. Assim, contraditório, Vicente recheia a narrativa de excentricidades. Como é possível os dedos do pé “ensaiarem fora das sandálias um círculo majestoso”? O que o texto ganha com o contorcionismo “assisti-a impor às mechas a pressão das orelhas”? Qual deve ser nossa conclusão quando lemos que “o odor de barro úmido que se alastrou por sobre nós dois, um casal em seu quarto de casal, me lembrou o esfuziar dum cão após a chuva”? O que devemos imaginar ao ler que os olhos “circulavam em suas órbitas e, como me olhassem, era ao redor de mim que duas íris retinham meu contorno imóvel, um manto ereto de forragem viçosa”? Por que uma tesoura deve ser “dilatada pela pugna da ferrugem”, ao invés de estar, apenas, “enferrujada”? O que devemos visualizar quando um personagem faz um “ar de homem-rã”? Qual o significado de “fazer descer pela urgência”? Que sensação o narrador almeja expressar ao dizer “sua língua é hoje lã úmida de fervura e velhas mantas”? E o que pretende transmitir ao dizer “estanquei no meu próprio retombo”? Refere-se ao fato de, por um momento, parar diante das sobras de sua última refeição?

Leitor nocauteado
Essa linguagem plena de artificialidades nocauteia o leitor. Ela contamina, às vezes, longos períodos, tornando a leitura maçante, obscura. Jamais saberemos o que a personagem realmente quer dizer quando fala:

Me faça ir adiante, meu bem, estar contigo e fender meu coque despregando-me da presilha de tartaruga que retém este leve peso, toda a minha ondulação em pequenos cachos, e abandonar curvas despenteadas, negras, de bronze nas pontas mais claras como se ardessem, em feixes terminais, as melenas acesas de um pavio sibilante, e afinal deixar estes chumaços penderem redivivos.

E nem mesmo a imaginação mais luxuriante consegue discernir o que se passa nesta cena (aparentemente, de sexo):

Por um instante me esqueço que também ela me vê despido pela primeira vez. Mudo a voz e guio-lhe a volta que dá em torno ao meu centro; apanho entre as mãos seus quadris ainda marcados pela pressão cintada de panos e ligas maleáveis. Vendo-a por trás, busco suas cores entre o rosa, a seiva e o castanho. Seus joelhos pressionam o couro verde do sofá, deixam mossas nas almofadas amarelas, esticam a pele da mobília seca e aliada. As mãos de Ana, apoiadas sobre o dorso do espaldar, espalmadas na parede branca entre dois quadros com cenas marinhas, essas mãos miram passagens para um jardim de que nos aproximamos de costas. Desbaratada pela escavação dos meus dedos, ela olha para o teto e vê o chão, sua visão deve ser a minha, vemos o que vemos. Ana, ela, essa mulher que se apóia em joelhos dobrados e mãos crispadas, traz nas espáduas constelações, vê minha sombra contra a parede, me ouve dizer seu nome por uma língua de tons abertos. Siderado, repito aquela fala aérea, deixo que o hálito me abandone com lentidão, passe por entre meus dentes, circule ao redor da boca e rodeie minha língua para formar seu nome à nossa volta […].

Num dos trechos mais confusos, Vicente e Ana conversam, e o protagonista/narrador descreve sua amada: “os olhos, amarelados pela janela cada vez mais intensa, pelos fachos do vitral mostarda no piso ocre de lajota xadrez, esses olhos fecham dentro de sua cava funda”. Mas qual a origem da luz que, transpassando o vitral, cria o efeito descrito? Seria o entardecer? E se o sol esmaece, o que representa uma “janela cada vez mais intensa”? Pouco depois, o que predomina é “a cor azulada que banha as horas da madrugada”. Mais à frente, “nenhuma luz vara as cortinas que cobrem a porta de vidro corrediça”. Quando Ana se refere a Vicente como um rosto que “anuncia a surpresa das nossas alvas gradações”, talvez já amanheça — e nos damos conta de que a própria passagem do tempo foi esmagada pelo rebuscado da linguagem.

Narrador entediante
Nosso grão mais fino transforma-se, assim, num longo monólogo, no qual, apesar das diferentes personagens, só uma voz fala, monocórdia e hermética. Aliás, é Ana quem confirma o caráter entediante do narrador, ao concluir: “não vou deixar que Vicente me atrapalhe com sua latomia de insistir no que é baldado”. A definição, infelizmente, é precisa: o livro se assemelha a uma ladainha monótona.

Além das fracas analogias entre vida e química, a narrativa se permite lugares-comuns, como a clássica relação corpo/abóbada celeste — “Ana se dobra e a pele que lhe recobre os braços, os flancos, e se liga na desenvoltura das coxas, nas folhas marrons e arroxeadas enrugando-lhe o sexo, essa pele risca no ar, pela rotação dos seus sinais, novas matrizes, mapas da própria abóbada celeste” —, ou imagens que, não só pelo conteúdo, mas também pela forma, chegam a ser pueris: “Vicente veste um casaco verde-musgo, derrama no meu corpo o lume de olhos langorosos que se mostram em baque contínuo. É como um Lúcifer que aspira ser Ícaro, chega em casa caindo”.

Falando por meio de enigmas, as personagens destroem uma história sugestiva, pontuada de bons achados: Zelino, o irmão imaginário de Vicente; o suicídio do pai de Ana no zepelim; a caçada; o dilúvio final, apocalíptico, felliniano. E quando a poetização excessiva não sufoca o texto, o narrador — em uma linguagem ainda barroca, é verdade — consegue ser lírico sem grandes afetações:

Esse amor, mesmo o mais corriqueiro, não é vermelho como nos corações que desenhamos a lápis e imaginamos de rubro prenhe. É alaranjado, meio-termo entre a surpresa falhada do amarelo (de sua desistência lenta, a debilidade do pus) e aquele tinto que pensamos ser o corpo pelo avesso, o que esperamos, mas nunca é, nem virá a ser isso, porque nenhum vermelho é tão vermelho como aquele imaginado, como amor algum é tanto amor quanto o que houve em mim e de saldo me deixou o espaço oco, a sombra, uma mera lembrança pálida, digamos amarela, daquela cor mais ansiada, da sua vera carne, a intensidade rubra que nos faz retesos armar os braços para o outro na ânsia de, pelo tato, restaurar a vaga que dói e nos arvora a ser mais do que só somos.

O trecho acima, no entanto, é uma das poucas exceções. A linguagem hiperbólica de Nosso grão mais fino dá vida a um labirinto torturante, no qual grande parte da narrativa está exaurida de compreensibilidade.

É justo, sem dúvida, que o artista busque o inusitado, o surpreendente. Mas é igualmente justo — sob o ponto de vista dos receptores do texto — que tais escolhas sejam inteligíveis. Do contrário, o caminho que deveria conduzir o signo lingüístico a uma nova expressividade acaba levando a um destino insatisfatório: a frustração dos leitores.

Nosso grão mais fino
José Luiz Passos
Alfaguara
168 págs.
José Luiz Passos
Nasceu em Catende (PE), em 1971. Trabalhou como fotógrafo e vendedor de antiguidades e ensina literatura na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA). Publicou os ensaios Ruínas de linhas puras (Annablume) — sobre Mário de Andrade — e Machado de Assis, o romance com pessoas (Edusp/Nankin).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho