Moderno pelo avesso

Malone morre é exemplo da busca de identidade fadada ao fracasso na obra de Samuel Beckett.
Samuel Beckett. Foto: Reprodução.
04/04/2015

Publicado originalmente em francês em 1951, Malone morre é desdobramento de um longo percurso beckettiano de problematização do romance realista canônico centrado na soberania do “eu” narrador. Tema onipresente na obra de Samuel Beckett, a dissolução do indivíduo como sede de reflexão é o fundo comum de uma prosa em permanente conflito com suas bases, sobretudo com a ideia do romance enquanto movimento, isto é, narrativa do embate entre o herói e o mundo exterior.

Os contos de More pricks than kicks (1934) e o primeiro romance Murphy (1938) já confrontavam o padrão realista do século 19, ainda que sob o âmbito da paródia. Em Murphy, por exemplo, o detalhamento exaustivo do realismo novecentista é parodiado na caracterização física da personagem Celia — feita com base numa tabela apinhada de adjetivos e medidas — e na descrição de uma partida de xadrez entre Murphy e o personagem Sr. Endon — para a qual o narrador lança mão de uma tabela de duas colunas referentes às posições das peças. Mas nesse romance o pilar da narrativa não é abalado, pois o narrador, malgrado algumas hesitações, ainda é senhor de seus meios; trocando em miúdos, a explicitação do ilusionismo em Murphy é atestado da onipotência do narrador, ao passo que na obra madura será sintoma de sua pusilanimidade.

É, contudo, no período pós-segunda guerra que Beckett eleva o impasse da narrativa à radicalidade — guinada estilística que passa pelo exílio voluntário na França, onde atuou como membro da Resistência, e sobretudo pela adoção do francês como língua de escrita. Distante da sombra a um só tempo sedutora e opressiva de James Joyce e da tradição de sua língua materna, o irlandês de Foxrock abdica do virtuosismo de seus primeiros trabalhos e faz da economia de meios a forma adequada para uma arte às voltas com o fracasso (“Em francês é mais fácil escrever sem estilo”, declarou).

Que o diga a chamada trilogia do pós-guerra, também conhecida como trilogia do silêncio, escrita freneticamente entre 1947 e 1950 e composta de Molloy, Malone morre e O inominável. Nestes romances, Beckett solapa a objetividade realista e a soberania do narrador pensante ao subverter princípios como coerência, linearidade temporal e distanciamento entre narrador e personagem. O jogo retórico com o leitor aparece agora sob o prisma do impasse: se em Murphy o “gentil folheador” era uma espécie de testemunha da destreza do narrador ao manipular deliberadamente o processo fabulatório — característica que remete a Joyce —, na trilogia, leitor e narrador são postos no mesmo patamar de incerteza. O emprego do narrador em primeira pessoa — advento da trilogia —, longe de simbolizar a força do “eu” narrador, sublinha sua claudicância, daí o caráter ambíguo de questões que emergem em meio às falas, na medida em que podem ser atribuídas tanto ao narrador quanto ao leitor, como atesta a seguinte passagem de Molloy:

Quando não faço nada, não me dá nada, me repreende. No entanto, não trabalho por dinheiro. Por que então? Não sei. Não sei grande coisa, francamente.

Como bem analisou o crítico Frederick Smith acerca desse fenômeno, não se trata do mesmo “eu” onipresente do romance realista inglês do final do século 17 e início do 18, pois o discurso em primeira pessoa é frequentemente minado por trechos em terceira pessoa os quais instauram a dúvida em relação a elementos da matéria narrada.

Para esse fracasso paulatino do “eu” narrador, contribui sensivelmente a impregnação — involuntária aos olhos do personagem, premeditada pelo autor implícito — da memória textual beckettiana. Em outras palavras, os narradores carregam à revelia resquícios de outros heróis, o que perturba sobremaneira a instância narrativa, dada a impossibilidade de se afirmar enquanto “eu” e, por conseguinte, de empreender uma distância segura em relação à matéria narrada. Esse fenômeno em muito explica a confusão que acomete Molloy ao tentar contar suas memórias, pois termina por incorporar nelas elementos de moribundos beckettianos anteriores: “Que turba em minha cabeça, que galeria de moribundos. Murphy, Watt, Yerk, Mercier e tantos outros. […] Histórias, histórias. Não soube contá-las”.

Marionete da memória
Fiel ao princípio norteador de sua obra — o de falhar melhor —, Beckett fez de Malone, herói do segundo romance da trilogia, aquele para quem o processo fabulatório é ainda mais exíguo. É o único dos narradores da trilogia assumidamente escritor, o que nos permite acompanhar por dentro a dramatização do processo narrativo, ou melhor, seu fracasso ao contar histórias aos moldes da tradição realista. A ligação umbilical com heróis beckettianos que o precedem — sobretudo Molloy, de quem cita frases semelhantes ou até mesmo idênticas, (Molloy: “Estou no quarto de minha mãe. Sou eu que moro lá agora. Não sei como cheguei lá. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente”. Malone: “Talvez tenha herdado o quarto com a morte de alguém. […] Não me lembro como cheguei aqui. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente”.) — põe em xeque sua identidade e, por extensão, impende-no de apartar as instâncias viver e inventar.

Deitado sobre um catre miserável, o velho Malone deseja contar para si quatro histórias enquanto espera a morte, cada qual com tema diferente: a primeira sobre um homem, a segunda sobre uma mulher, a terceira sobre uma coisa e a última sobre um animal, talvez um pássaro. Quando terminá-las e “se tudo correr bem”, deseja ainda fazer seu inventário. A julgar pelo uso do verbo “achar” (“Acho que vou conseguir me contar quatro histórias”), notamos de chofre a imprecisão de seu projeto. Imprecisão que se confirma ao cabo da leitura do romance, pois Malone cria duas histórias, ambas sobre homens — o garoto néscio Saposcat e o velho Macmann —, personagens que replicam não apenas Malone, mas resquícios da memória textual beckettiana, de modo que, em última análise, há apenas uma história na qual todos se confundem. Nada é dito sobre a coisa e o animal e, quanto ao inventário, acaba irrompendo aqui e acolá em meio às histórias, dada a obsessão em falar de seus pertences, contrariando, portanto, a ideia de realizá-lo somente no final.

Ao escrever suas histórias, Malone persegue o distanciamento caro ao realismo novecentista (“Ficarei neutro e inerte”), haja vista empregar a voz narrativa em terceira pessoa, a linearidade temporal e o passado como tempo base da narração. Tanto que, num primeiro momento, há um nítido contraste entre a sintaxe da história sobre Saposcat e aquela das falas e dos pensamentos de Malone: a primeira é comedida, clássica, ao passo que a última é difusa, regida pelo princípio da livre associação, com alternância de períodos (ora curtos, ora longos, ora subordinados, ora justapostos) e tempos verbais. Contudo, na condição de herói beckettiano — fadado, portanto, ao fracasso e à replicação da memória textual —, o escritor Malone acaba por sobrepor cada vez mais essas duas formas, algo que salta aos olhos na história sobre Macmann. Dados tais impasses, Malone é incapaz de apartar memória e fabulação, sujeito e objeto. De tábua de salvação, a alteridade ensaiada por ele, quando muito, não passa de uma máscara delgada, facilmente rompível ao menor resquício de memória. Citemos um trecho em que o escritor Malone descreve o comportamento de seu personagem Saposcat: “Em meio a tumultos, na escola e na família, ficava imóvel no lugar, com frequência em pé, e olhava direto à sua frente com olhos claros e fixos de gaivota”. A despeito da onisciência narrativa e do tempo passado — forma oposta àquela de suas falas e pensamentos —, Malone, desconfiado, interrompe a narrativa (“Mas vou me conceder uma pequena pausa, para maior segurança”) e empreende uma digressão:

Os olhos de gaivota me deixam desconfortável. […] Conheço essas frasesinhas que não parecem nada e que, uma vez admitidas, podem empestar toda uma língua. Nada é mais real que o nada. Saem do abismo e não param até arrastarem você para lá. Mas desta vez saberei me defender delas.

Ora, mas de onde o sismo na narrativa? Ocorre que Malone é vítima da memória que o excede. A comparação com olhos de gaivota já fora feita pelo narrador de Murphy na descrição dos olhos do protagonista homônimo: “Seus olhos, frios e estáticos, como os de uma gaivota, fixavam-se num reflexo iridescente sobre a moldura de gesso do teto, cada vez menor e mais desbotado”. Desse modo, o intrincado jogo de máscaras está posto: Malone, que na condição personagem fora levado pelo autor implícito a tomar como suas as palavras ditas por Molloy, reproduz — desta vez enquanto escritor — uma expressão utilizada pelo narrador em terceira pessoa de Murphy.

Não há saída. Malone está fadado a replicar o procedimento de que é vítima, fazendo da criação de personagens uma multiplicação de subjetividades cindidas, acúmulo de fracassos. As narrativas criadas por ele e, em âmbito maior, o próprio romance Malone morre, são desprovidos de uma instância narrativa unívoca, o que não mina a centralidade da obra, mas sim a altera substancialmente — ancorado de praxe na onipotência do “eu” narrador, o romance passa aqui a ser urdido pela memória textual beckettiana de que são reféns protagonistas e narradores de livro a livro. É notável o contraponto à tradição do realismo formal, posto que as memórias não mais remontam a um “eu” central, mas sim é o “eu” que, à cata de lastro e identidade, empenha-se a todo custo em reconhecer-se em tais memórias, muito embora não passe de um joguete em suas mãos. Malone morre é um romance que se faz moderno pelo avesso, isto é, pela busca deliberadamente falhada dos moldes da tradição realista.

Malone morre
Samuel Beckett
Trad.: Ana Helena Souza
Globo
180 págs.
Samuel Beckett
Nasceu em 13 de abril de 1906, em Foxrock, Dublin, Irlanda. Em 1927, graduou-se em Literatura Moderna no Trinity College. Fixou residência em Paris em 1938, e entre 1940 e 1945 integrou a Resistência Francesa. Vencedor do Nobel de Literatura em 1969, publicou, entre outros, Molloy, Esperando Godot, O inominável e O que é o mundo. Morreu em 1989.
Wilker Sousa

É escritor, jornalista e mestre em Teoria Literária pela USP. Em 2016, foi premiado no concurso Paulo Leminski de contos. É autor de as digitais das sombras (Patuá). Como jornalista, foi editor de literatura da revista Cult.

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