Modernidade a meio caminho

Resenha do livro "Os escorpiões", de Gastão de Holanda
Gastão de Holanda, autor de “Os escorpiões”
01/04/2014

Escrito em 1950, Os escorpiões ganhou em 2013 uma segunda edição pela Companhia Editora de Pernambuco. Vencedor do Prêmio Comemorativo do IV Centenário de São Paulo, em 1954, o romance é considerado a principal obra de Gastão de Holanda e foi relançado com grandes homenagens na IX Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, em 2013.

É bem-vinda a reedição para leitores jovens ou não, que, provavelmente, nunca ouviram falar do autor ou mal o conhecem. A rigor, Gastão de Holanda foi reverenciado agitador cultural regional (no bom sentido); mas, a despeito de viver vários anos no Rio de Janeiro — e circular com a intelligentsia fluminense —, não se tornou canônico ou de fácil memória literária.

Assim, a reedição deste romance favorece uma leitura que leve em conta o processo evolutivo da nossa literatura. Nos anos 50, a despeito da presença já marcante de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa no chamado “terceiro momento” do modernismo brasileiro, os regionalistas de 30 ainda ditavam regras; e é nesse limiar, quase antípoda, que se pode instalar o esforço do romance de Holanda.

Efetivamente a obra é regional, embora não rural: ao contrário, traz a cor local de ruas, festas e hábitos, escolas e estudantes. E o Capibaribe — incontornável terçado pernambucano (e recifense) — tem papel fundamental na obra. É diante de uma das suas pontes que começa a narrativa; é no Capibaribe que nadam (ou se afogam) os jovens amigos do protagonista — aliás uma das boas cenas da obra. E é sempre o rio que testemunha o casal que se ama. E, mais que tudo, é mirando suas águas que Leopoldo reflete sobre a vida, o amor e a morte — espelhando no rio certo existencialismo (precoce demais, é verdade).

Por outro lado, o projeto do autor deseja usar novos recursos dos anos 50 (na época ainda mal digeridos pela crítica): a recorrência ao monólogo interior — com que o autor se acerca de seus personagens principais — fazendo-os mergulhar na introspecção (longe, entretanto, daquela de Clarice Lispector ou Lúcio Cardoso).

Metade cá, metade lá, como são os anos 50 na nossa literatura, Os escorpiões deixa transparecer na sua tradição de tema, linguagem e construção de falas, certos “ventos” da modernidade joyceana.

Nem por isso, porém, o romance é bem-sucedido. Predomina nele o tradicional e lhe falta fôlego. Diga-se, porém, benefício deste romance que (com todo o respeito) a reedição não merecia o prefácio ininteligível do professor Janilto Andrade. Se alguém quiser reler esta edição, sugiro com veemência pular tal prefácio, onde se lê, por exemplo: “O tom judicativo aqui presente leva em conta a secular revolução estética kantiana, ou seja, o deslocamento das especulações estéticas da esfera do objeto para a do sujeito”. [Pois é, ainda há quem se expresse sob categorias interpretativas afetadas, desprezando a transparência acadêmica que, por exemplo, o velho Antonio Candido ensinou]. O fato é que o projeto de Gastão para Os escorpiões era ambicioso — o que talvez tenha dado asas à comparação que o prefaciador faz com a Odisseia.

O romance pretendeu inovar na forma, o que não conseguiu; isso porque recorreu a um narrador onisciente e onipresente, que narra do alto e quase sempre fixo. O fato de vez por outra ingressar na narrativa como narrador intruso, que provoca o leitor (à moda machadiana), ratifica a onipotência da terceira pessoa que interpreta, o protagonista (antecipando-se perigosamente ao leitor):

O erotismo do adolescente e a sua sensualidade estavam separados pela consciência, mas iam encontrar-se no sonho com demasiada avidez.

Por que noto tais questões de foco narrativo? Por que o narrador também resvala na primeira pessoa do plural (“nós”) várias vezes, impondo ao leitor sua presença dentro da narrativa como se amigo ou colega fora do jovem Leopoldo, ou de Frederico. Ora, essa oscilação do foco (para usar categorias conhecidas: narrador onisciente + intruso+ narrador observador em primeira pessoa) muitas vezes é bem-vinda; mas, aqui, não cria um efeito harmônico ou surpreendente. Parece ficar numa ambiguidade perniciosa para a obra. Que não é autobiográfica, mas chega perto dessa impressão. O fato de o autor/narrador se debruçar ora sobre o jovem Leopoldo, ora sobre o insosso Frederico parece mais defeito narrativo que escolha de ponto de vista.

O romance é ambicioso também porque se quer um romance de formação, aqueles em que amadurecemos junto com Wilhelm Meister, de Goethe, ou com Julian Sorel, de O vermelho e o negro; ou com Sérgio, de O ateneu.

Leopoldo, filho de uma simplória viúva, cuja casa em Recife serve de humilde pensão a hóspedes variados, é amigo e divide o quarto com Frederico Sarmento, funcionário e um pouco mais velho que o adolescente de escola secundária. Aluno aplicado e culto de escola de Ensino Médio, Leopoldo tem dúvidas existenciais talvez grandes demais para sua idade, 16 ou 17 anos. Quanto aos vários diálogos intelectuais, a despeito de a obra se passar em Recife na década de 30, a erudição dos jovens intriga quando discutem de Bilac a Carlos Gomes, de Kant ao judaísmo, de Baudelaire à história das religiões ou Chopin.

Cabe a Frederico o ingresso na cena inicial do romance, e a ele caberá consolar a mãe do jovem ao fim da obra. Frederico, aliás, é quase um alterego do narrador, ao qual cabem reflexões, análises de conduta dos demais protagonistas e certa ascendência sobre o jovem Leopoldo.

A rigor, o leitor se prepara para o protagonismo de Frederico — que se dilui e recairá sobre Leopoldo. Essa oscilação (que alguns chamaram de onisciência múltipla) não funciona bem; perde-se sempre na narrativa um dos personagens quando se fala de outro. Ou seja, o autor parece esquecer-se de um deles, deixando frouxos os laços que unem os dois personagens. E o leitor fica em dúvida se as luzes do protagonismo estão bem focadas: no jovem funcionário ou sobre o estudante Leopoldo.

A rigor, pouca coisa acontece proposta de “amadurecimento” de Leopoldo, mas o autor investe em centros nevrálgicos importantes: um é seu amor malsucedido (e pouco erotizado) pela judia Bertha, a colega de escola, que, feiosa e insolente, o provoca e o desatina. O casal de namorados (e isso é pouco verossímil) discute poesia, literatura, filosofia. Pouco ou quase nada se toca na questão das diferenças de crença e, intrigante, apesar dos encontros na casa da moça, a família desta pouco aparece para ratificar sua aprendizagem de vida. Outro é a relação distorcida, quase edipiana, que une o jovem à mãe viúva e apática.

O temperamento de Bertha, a namorada, parece ter o mais consistente retrato jovem feminino na obra; talvez porque o autor se debruça sobre um personagem diferente de si mesmo, o que não ocorre com os masculinos. Bertha tem forte personalidade, antitética à da mãe do estudante:

Entre para esta sala um pouco — disse ela. — Depois vamos para o meu gabinete. Você não está com pressa. Papai e mamãe não estão em casa o que quer dizer que nem por esse lado você tem razão de se esquivar da minha casa. (…) A verdade é que ele não vinha ali para estudar. Vinha atraído por aquela criatura, aquela adolescente com espírito de mulher.

Porém, se procurarmos um modelo exemplar de Bildungsroman, cujos traços a crítica tem fixado e que tem encontrado longevidade na literatura, creio que aqui não encontramos. Aqui o ambiente age, mas não de tal maneira que esclareça a gradativa formação interior do personagem. Leopoldo vem de uma distorcida relação com a mãe, pobre dona de pensão, bordadeira mal remunerada e escolhe uma mulher muito diferente para amar. Bertha é atrevida, é feia, é irresistível. Mas o aprendiz abandona as duas mulheres.

E o fim da obra é melancólico, um tanto decepcionante para quem pensa no Bildungstoman. O meio em que vive, a terra, o rio, a escola e a cidade não transfiguraram o caráter de Leopoldo: este tem de fugir — e pelo mar, deixando tudo para trás. Ou seja, em vez de receber os efeitos dos fatos exteriores para crescer, preferiu agir (fugir) em direção ao exterior, ao mundo desconhecido.

Quer dizer, do romance de aprendizagem, voltamos ao mundo pueril de uma epopeia apequenada. E o autor cria um parágrafo final que jamais precisaria ter sido escrito: “Assim termina este pequeno drama, acontecido e relatado na pitoresca cidade do Recife, por volta do ano de 1936”.

Os escorpiões
Gastão de Holanda
Cepe Editora
220 págs.
Gastão de Holanda
Nasceu no Recife (PE), em 1919. Foi advogado, jornalista, professor, editor e designer gráfico. Sócio de alguns intelectuais, como Sebastião Uchoa Leite e Ariano Suassuna, criou em 1958, no Recife, a editora O Gráfico Amador. Editaram-se mais de 30 obras de autores coetâneos, como Carlos Drummond, João Cabral ou Francisco Brennand. A casa editorial marcou, pelas inovações, a história da edição de livros no país. No Rio de Janeiro, foi editor da importante revista José — literatura, Crítica & Arte. Algumas obras: Zonas do silêncio, contos; O burro de ouro, romance. Em 1954, ganhou o prêmio IV Centenário de São Paulo com Os escorpiões. Morreu no Rio de Janeiro (RJ), em 1997.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho