Alberto Manguel escreve sobre livros. A cidade das palavras e Os livros e os dias são alguns de seus títulos que li com muito prazer e interesse. Meu favorito, porém, é A biblioteca à noite, um compêndio de histórias sobre bibliotecas de todas as épocas. Fala-se de livros que se perderam, como a incrível biblioteca de Alexandria e o vasto patrimônio escrito dos incas, cuja destruição foi lamentada até mesmo pelos conquistadores. Fala-se de livros que não existem, como aqueles guardados em certa parte da biblioteca de Charles Dickens, reservada apenas para lombadas ficcionais. Fala-se até mesmo de pequenezas cotidianas, como a dificuldade de se retirar certas etiquetas de preço sem macular a capa do livro, ou de pequenos grandes gestos, como a biblioteca móvel montada sobre o lombo de um burro no interior da Colômbia.
É a obra de um apaixonado; alguém que, mesmo quando trata os livros com uma deferência quase romântica, nem por isso os compreende como uma chave de leitura simplista e unívoca do mundo. A leitura é o lugar da desordem. Em A biblioteca à noite, Manguel nos conta que é à noite, na hora dos fantasmas, que ele se dedica com afinco à leitura. Nesse momento, a organização da biblioteca, supostamente regida pelos critérios da razão, cede lugar à desordem singular da prática da leitura:
Um livro clama inesperadamente por outro, criando alianças entre séculos e culturas diferentes. Um verso recordado pela metade encontra eco num outro, por razões que, à luz do dia, permanecem obscuras. Se a biblioteca pela manhã sugere um eco da ordem severa e passavelmente ilusória do universo, à noite ela parece deleitar-se na alegre e essencial mixórdia do mundo (em tradução de Samuel Titan Jr., para a Companhia das Letras).
A literatura escapa à ordem da catalogação e da razão diurna.
Como não poderia deixar de ser, a literatura é também um tema preferencial em sua ficção. É assim com o divertido romance Todos os homens são mentirosos. Enredo: o jornalista Jean-Luc Terradillos investiga a vida de Alejandro Bevilacqua, autor de uma obra-prima literária intitulada Elogio de la mentira, e morto em circunstâncias misteriosas. Ouvimos quatro personagens, cujas vozes compõem um quadro nem sempre coeso da personalidade e da vida de Bevilacqua.
A começar por um escritor chamado Alberto Manguel. Através dele, conhecemos um grupo de literatos argentinos exilados em Madri nos anos 70, fugidos da violenta ditadura de seu país. E conhecemos as linhas gerais da tragédia que envolveu o autor de Elogio de la mentira: o casamento fracassado, o horror da prisão, a fuga da Argentina, o trabalho como autor de fotonovelas, a publicação (à sua revelia) de seu único manuscrito e o aparente suicídio.
A certa altura de seu relato, Manguel cita o escritor catalão Enrique Vila-Matas e seu Bartleby e companhia, para inserir Bevilacqua dentro da ilustre tradição de autores que optaram por não escrever, ou que se tornaram reconhecidos antes mesmo de terem uma obra literária. Mas a referência é oportuna também para nos lembrar de que o próprio Manguel parece ser um caso clínico de “doente de literatura”, aquela pessoa obcecada pelo literário, que não consegue entender o mundo se não mediado pelos livros, perfil descrito por Vila-Matas em O mal de Montano. Manguel descreve seu conterrâneo, por exemplo, nos seguintes termos:
Agora me ocorre que a vida de Bevilacqua foi apenas um esboço de vida. Em termos literários, não passa de uma compilação de fragmentos, de retalhos, de episódios inconclusos. Qualquer um deles serviria para dar início a um grande romance de mil páginas, profundo e ambicioso. Em compensação, a biografia que lhe conto é bem ao estilo do personagem: indecisa, indefinida, inepta.
E nenhum dos personagens está imune à “mitomania literária”; nem mesmo a segunda narradora, Andrea, para quem Manguel é um “imbecil”, alguém que não acredita que nada seja verdadeiro “a menos que ele veja a coisa escrita num livro”. Ainda assim, ela não pode deixar de reconhecer que encaminhou a publicação dos originais de Bevilacqua movida pela fantasia do escritor que ele poderia ser, cujo nome figuraria nas estantes entre Benedetti e Cortázar. E insiste em entender a vida em termos literários: “Eu não sei se essas histórias contadas eram minhas ou dele, ou sei lá de quem. (…) Imagino que se nos lêssemos num livro não nos reconheceríamos, não saberíamos que aqueles somos nós fazendo aquelas coisas e comportando-nos daquela maneira”.
O mesmo acontece com os outros narradores: Chancho, esse estranho personagem que dividiu a cela com Bevilacqua nos porões da ditadura argentina, confessa ser “hábil” na arte da ficção (talento convertido em relações escusas com os militares), mostra habilidade ao refletir sobre o gênero literário que escolheu (uma carta) e cria aquela que talvez seja a mais elaborada das ficções: uma nova identidade. Quanto ao relato delirante (e onírico?) de Tito Gorostiza, o quarto narrador, basta dizer que exerceu de maneira bastante convincente o papel de ficcionista, ao convencer os militares do passado negro de alguns prisioneiros.
Autômatos
Parte do prazer de ler Todos os homens são mentirosos está em descobrir as contradições e semelhanças nos relatos desses quatro personagens, a começar pelo perfil que cada um apresenta de Bevilacqua. Alberto Manguel manuseia com habilidade temas e procedimentos muito em voga na literatura contemporânea — o uso irônico da trama policial, a ficcionalização do autor dentro do enredo, as reflexões metaficcionais — sem contudo abandonar o prazer de se contar uma história. É verdade que tais procedimentos, que repercutem a questão do esgotamento das formas narrativas tradicionais, também vêm se esgotando, e se banalizando ao ponto de se tornarem quase pré-requisitos para novos autores sedentos por aceitação. Mas Manguel não é um novato: há mais por trás de seu romance do que jogos ficcionais inócuos.
A começar pela história da Argentina, descrita não nas minúcias de um romance histórico, mas na melancolia resignada daqueles exilados, dedicados aos jogos literários como se nada mais lhes restasse. Condição que se deixa notar na recorrência de certas imagens que, repetidas em diferentes contextos, adquirem novas formas e sentidos. A principal delas, a do autômato: os bonecos do titeriteiro que manipula os sentimentos do jovem Bevilacqua; a autodescrição de Chancho como um Pinóquio caricato; o editor imberbe cujos traços e comportamento provocam a impressão de “alguém não totalmente humano”; o apelido insólito — “boneco” — para um torturador cujo rosto não se revela; o corpo de uma avó moribunda, reduzido “ao tamanho de um fantoche”, e com feições de um palhaço.
Esse desfile de autômatos sugere que importante não são os jogos e veleidades literárias, mas o fato de os personagens não conseguirem fugir do sombrio baile de máscaras em que atuam:
Nenhum rosto era verdadeiro, todos dissimulavam algo, cada qual mentia quase por hábito, era uma mascarazinha que refletia a máscara da cidade inteira, uma cidade que pretendia não ser o que era, não sentir essa espécie de mal-estar sempre presente, esse desgosto que ameaçava cada canto.
Ao final do romance, quando o jornalista Jean-Luc Terradillos assume finalmente a palavra, é para refletir sobre a falência de seu projeto jornalístico, o de traçar um perfil verdadeiro do escritor suicida. O que nos resta é a mentira. Ou, nas palavras do jornalista, aquela estranha “qualidade que jaz entre o equívoco e o desejo, entre o que dizemos por engano e o que tentamos dizer falsamente”. Uma qualidade mais trágica e essencial que a mentira. A literatura, mesmo.