Mistérios, vícios e transtornos

"Baixo Paraíso", de Isabella de Andrade, descreve inúmeros sintomas de uma sociedade doente
Isabella de Andrade, autora de “Baixo Paraíso”
01/09/2024

Baixo Paraíso traz uma história na ordem do dia. Vivemos a era dos transtornos, a diversidade nessa área é farta. Aqui o protagonista é o transtorno alimentar, coadjuvante mais expressivo: dependência química. Poderia ser a depressão, a ansiedade, o TDAH, o assédio e suas variações, etc. O cenário, cidade pequena no interior de Goiás e sua rotina lenta sob atmosfera abafada e seca.

Marília nasceu e vive em Baixo Paraíso, cidade fictícia, tem Gabriela como sua melhor amiga, exemplo, espelho, e… motivo de frustração e revolta. Enquanto Gabriela apresenta forma física que preenche as “exigências da sociedade”, Marília é gorda e isso a incomoda. A contradição rege a sinfonia Marília, da infância ingênua ao ingresso na excludente e exigente idade adulta, a compulsão alimentar dita o compasso dos seus dias.

A amizade não é algo simples, diferente do amor, inexiste o desejo erótico, o que não significa dizer que jamais existirá, sua ocorrência é periférica e sutil. A grande diferença é que o amor pode não ser correspondido, mas a amizade obriga reciprocidade. Gabriela e Marília seguem o manual com a complexa amizade que combina desejo e aversão. Marília abriga suas inimigas mórbidas, ansiedade e frustração. Na tentativa de acalmá-las, faz uso da comida. Engorda por ser ansiosa, é ansiosa por não ter determinação na luta para diminuir o peso, as medidas. Consciente de que a sensação de não pertencimento resulta da forma de seu corpo, chega à conclusão, também corriqueira atualmente, é preciso usar remédios. Tudo pode ser resolvido com remédios: ansiedade, depressão, TDAH, transtornos de toda ordem, envelhecimento, tem remédio para tudo. Acredite se quiser. E as questões internas, as causas propriamente ditas, serão sempre secundárias. O comprimido traz a solução. Marília, um ser moderno, atento às novidades e soluções mágicas, faz a opção lógica: usar remédios para emagrecer. Entra em cena o padrasto da amiga, rapidamente apresentado pela narradora, o que não impede de o leitor perceber um ser abusivo, oportunista, abjeto, o padrasto se intitula poeta. E Marília define: “Todo cretino com a voz mais mansa se diz poeta”. O fornecedor das receitas, motivo da humilhação de Marília, centro da forte cena de abertura da trama, o fim da inocência, milimetricamente concebida por Isabella de Andrade.

Um véu escuro e longo envolve Baixo Paraíso, véu que impede a comida de ser digerida sem culpa, que impede a amizade, seria apenas amizade, entre as mães das amigas, que impede ou dificulta a independência, não importa se material ou afetiva. Essa característica pouco a pouco transforma a narrativa, aparente romance de formação, em uma história de mistério. Um mistério moderno, onde quase tudo pode ser relativizado. Inclusive a frase anterior.

Contrastes
Outro mistério: Marília fala, descreve, confessa, faz queixa? Queixa da mãe, da covardia, da incapacidade de assumir um amor. Queixa por ser desse jeito, confessar sua insegurança, sua fragilidade, frutos desta companheira inseparável, a solidão, um dos caminhos que conduzem à depressão. O que também faz parte da modernidade. Isabella trabalha com os contrastes, a insatisfação, a inadequação de Marília e a leveza, a popularidade e respingos de maldade de Gabriela; o padrasto nojento, assediador de Gabriela e o pai ausente de Marília, o clima seco e quente de Baixo Paraíso e o clima ameno, quase frio, no interior da sorveteria, gorda e frágil, à medida que diminui o peso, autoconfiante. Nada que espante, pois a ficção de Isabella é retrato fiel da nossa realidade; algumas virtudes e muitos vícios, inúmeros transtornos. Baixo Paraíso é onde você está, onde me encontro agora. A autora descreve inúmeros sintomas de uma sociedade adoentada. Remédio? Aprender a pensar, viver sob seus ditames e jamais do que rezam os programas de TV, o instagram, e outras atrocidades. O tempo? O tempo não tem a menor responsabilidade sobre isso. O vazio, ah! aqui um suspeito. O vazio interior. Quem sabe pensar sobre isso?

“Quatro anos é tempo suficiente para se esquecer de tudo”, Marília chega a essa constatação, ou seria suspeita? Às vezes surgem coisas guardadas na memória que pareciam apagadas, talvez Santo Agostinho se referisse a esse aspecto quando falou em escravo da memória, reminiscências que fogem ao controle. Marília sabe o que aconteceu com o pai de Gabriela. A vida não faz muito sentido para Marília, se não sabe o que se passa com ela, o que ocorre em seu organismo, como “mudar de vida?”. A vida é esse impasse, não conseguir fazer planos, desejar otimismo, e não saber onde encontrar.

A frase é de Milan Kundera: “a grande forma da prosa, onde o autor, através dos egos experimentais (personagens), examina até o fim os grandes temas da existência”.

Mas que grandes temas são esses? Existir, tudo se resume a isso, simples demais. Complexa é a morte. As pessoas vivem de qualquer jeito, a vida não faz exigências, está cheio de gente sobrevivendo de restos. Sobras, esse detalhe desesperador. As mães, de Gabriela, e de Marilia, satisfazem-se com sobras. Sobras de amor. E sobra de amor ainda pode ser considerada amor? Mas o que satisfaz Marília? A começar pela alimentação, nada a satisfaz, talvez uma possibilidade, o amor de Gabriela, a impeça de desistir de tudo, inclusive de encontrar a forma aceitável de seu corpo. Mas quando uma possibilidade beira à satisfação se torna preocupante. Afirmei que se trata de uma narrativa de mistério, de mistérios. As sobras que referi anteriormente seriam mentiras? As mães e Marília mentem para elas mesmas, quando negam o amor, quando rejeitam o lugar onde vivem, quando os comprimidos fazem as vezes da força de vontade? Vivem uma fantasia opressiva. Com séria justificativa: a fantasia sempre foi muito mais importante que a vida. Na fantasia a morte não vence, é uma morte mentirosa, o que conduz à tese: a necessidade de mentir, o gozo que brota da falsidade. Nada morre, inclusive a falta de amor, o sentimento de inadequação, mas não devemos esquecer um detalhe bastante significativo, falta de amor faz vítimas.

Está em Os ensaios, de Montaigne: “Todos correm para alhures e para o futuro, enquanto que ninguém chegou a si mesmo”.

Está na ficha catalográfica, Literatura brasileira, Romance, caberia incluir, Sociologia, Antropologia.

Isabella abordou vários aspectos de nossa contemporaneidade, o que me faz acreditar que ela retornará a Baixo Paraíso.

Baixo Paraíso
Isabella de Andrade
Diadorim
226 págs.
Isabella de Andrade
É escritora, jornalista e atriz. Publicou dois títulos pela Patuá: Veracidade (2015) e Pelos olhos de ver o mar (2019).
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho