Deonísio da Silva é um escritor. Escritor no Brasil. Parece simples dizer isso, mas não é bem assim. Porque ser escritor no Brasil é coisa rara. Ser poeta no Brasil é coisa rara. Embora o Brasil esteja cheio de “escritores” e de “poetas”. É uma coisa extraordinária. Veja-se, por exemplo, o que ocorre agora na área da prosa, em que os nomes dos novos “talentos” surgem do dia para a noite ou da noite para o dia com uma facilidade espantosa. Todos “escritores” geniais, de acordo com a tal mídia cultural.
Mais do que razão tem o crítico e escritor Jerônimo Teixeira, de Veja, quando escreveu um artigo com o título “Revelações de Parati”, observando, logo de início, que “os autores descobertos pela festa literária mereciam o anonimato”. Jerônimo se refere à Festa Literária Internacional de Parati (Flip) — que tem total cobertura da Rede Globo de Televisão e que, no final de tudo, se revela um evento de objetivos nebulosos. Mas isso no Brasil é comum, faz parte da rotina da mediocridade. No dizer de Teixeira, são “escritores” que tentam, com um discurso choroso, “fisgar o público de ‘elite’ pelo seu ponto mais frágil: a má consciência”.
Na verdade, essa gente forma um bando. É gente ignorante mesmo no que diz respeito à literatura. E ao se reportar a alguns nomes de agora, Jerônimo Teixeira conclui, observando, antes, que esses nomes não têm política nem estética: “Apenas transformaram a miséria em peça de marketing. São o equivalente literário do Fome Zero”.
Escrevo toda essa introdução — se é que cabe essa expressão — para falar de um escritor brasileiro na acepção mais correta da palavra: Deonísio da Silva, que está lançando Teresa, namorada de Jesus, mais um livro mágico de alguém que nunca cedeu às facilidades sempre à disposição dos que carecem de talento e sabedoria. Um dos autores mais importantes deste país, Deonísio da Silva tem uma trajetória marcante dentro da literatura nacional, desde Exposição de motivos (1976), passando por Cenas indecorosas (1978), A cidade dos padres (1986), Avante soldados: para trás (1992), O assassinato do presidente (1994), Os guerreiros do campo (2000) e outros livros de literatura absolutamente insuspeita.
Sua narrativa é resultado de um exercício que atravessa a vida. Narrativas exuberantes que compõem toda sua obra, uma das mais expressivas da literatura deste país. O escritor nasceu em Siderópolis, Santa Catarina, em 1948. É doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, com uma tese sobre livros proibidos pós-64. Tem mais de 30 livros publicados. Recebeu os prêmios literários mais importantes e significativos, como o Casa de las Américas (por Avante soldados: para trás), com um júri presidido por José Saramago. Professor aposentado, hoje vive entre São Carlos, no interior de São Paulo, e Rio de Janeiro. Na bagagem, leva sempre aquela literatura que tanto respeita, por ser, verdadeiramente, um escritor brasileiro, dessas raras figuras que — felizmente — ainda existem neste país de mentiras e de faz-de-conta.
• Teresa, namorada de Jesus foi eleito um dos dez melhores romances brasileiros dos últimos 20 anos por ensaístas da revista norte-americana World Literature Today. O que você tem a dizer sobre isso?
Nos Estados Unidos, Teresa, namorada de Jesus teve acolhida semelhante à que teve, em Cuba, Avante, soldados: para trás (atualmente em sua nona edição). Mas fui várias vezes a Cuba e nunca aos Estados Unidos. É que, uma vez, quando a Manuela, minha filha, foi para lá, Soila e eu, pais dela, precisamos declarar que tínhamos meios de sustentar nossa única filha, afirmando que não estávamos fazendo de uma brilhante aluna de Direito na USP uma intrusa nos Estados Unidos. A Soila é uma polaca valente, ficou muito triste com aquela exigência, e eu resolvi escrever uma carta atrevida, mas justa e profética, ao consulado norte-americano. Disse ser defensor do trato justo, da conversa clara, e que o Brasil nada exigia dos turistas dos Estados Unidos. Por que eles tinham tanta falta de educação internacional? Outra vez, ganhei uma bolsa para morar alguns meses numa universidade americana, mas não fui. Indiquei um amigo em meu lugar.
• Como é que você classifica este romance em sua obra?
Meu avô de origem italiana morreu bonito, forte, saudável e bem-humorado, à beira de oitenta anos. Uma vez ele disse para a namorada com quem, afinal, casei, a Soila: “Você é muito bonita, devia casar-se com alguém branco e louro como você. O Deonísio é caboclo e só não é feio porque é meu neto, puxou um pouco pelo avô”. De minha avó materna, pouco lembro. Meu avô paterno morreu quando meu pai era criança. Minha avó paterna contava histórias dramáticas, tristes, complexas, das quais o sexo era o grande ausente, assunto a ser evitado. Quando eu tinha 9 anos, minha mãe teve vocação para eu ser padre, me pôs num seminário: ali o sexo só entrava de contrabando, fosse em falas, leituras, imaginações, pensamentos etc. Escrevi muitos livros de contos eróticos, o sexo é um assunto fascinante, mas eu queria escrever um romance em que a sensualidade fosse tomada em sua dimensão profana e sagrada. Acho que Teresa concilia esses opostos, trabalha com eles. No seminário, alguns meninos iam para perto de uma estátua de pedra de Nossa Senhora de Fátima, “a mãe carinhosa”, nossa padroeira, e ficavam olhando para ela com um olhar 43, aos 13 anos!
• Novamente você empreende uma pesquisa histórica para escrever um livro. Como ocorre esse processo na elaboração de sua literatura, com tantos romances marcantes ?
Primeiro eu escolho um tema, que nasce depois de leituras, sonhos, pesadelos, remorsos etc. Depois começo a viver para aquele tema solar e saio pesquisando planetas e satélites que giram ao seu redor, no processo. Não sei se meus romances são marcantes. Só sei que não publico nenhum livro que eu não tenha escrito também para mim, um livro que eu também goste de ler. Eu tenho um grande orgulho: eu escrevo para os leitores. Ganhei prêmios, mas não escrevi livros para ganhá-los, escrevi para os leitores. Os meus contemporâneos e os pósteros. É uma grande alegria ter a esperança de ser lido. A mesma esperança que Teresa teve. Ela não poderia imaginar, por exemplo, que Frei Betto e eu seríamos apaixonados por ela, nós dois nos consideramos concubinos de Teresa. O Pedro Paulo de Sena Madureira, meu editor por 25 anos, a quem devo tantos projetos literários que chegaram a um final feliz, seria um grande rival, mas ele gosta da Teresinha de Jesus. Nós, não: nós gostamos é da Teresona! Um dia disse isso numa palestra e o pessoal começou a rir: eu não sabia que no passado histórico daquela cidade existira uma zona de meretrício famosa, dirigida por uma mulher chamada Teresona. Um convento ao contrário: em vez de monjas, putas!
• E por que Teresa D´Ávila ?
De repente, descobri Santa Teresa d’Ávila apaixonada por Jesus, pelo Crucificado, falando que Ele era seu namorado, utilizando palavras muito amorosas para falar Dele e com Ele. Jovem, bonita, rica, poderia ter vivido de modo muito diferente, mas preferiu o convento, onde entrou aos 20 anos e ficou a vida inteira, até morrer, aos 67. A vida de todos é sempre cheia de mistérios, sejam gozosos, dolorosos ou gloriosos, como diz o terço que os católicos rezam. E eu fiquei apaixonado por Teresa por ela falar com tanta naturalidade do amor, do sexo e de outros grandes enigmas de nossa existência. Acho que, mesmo sendo Teresa uma mulher, identifiquei-me com ela, que foi perseguida pela Inquisição e morreu inédita. No meu romance, alguns meninos de um seminário, depois de muitas peripécias — em que até um padre morre afogado —, descobrem, no velório, que ele deixou um livro inédito intitulado Pedras com febre: romance para teatro. A primeira vez que dei uma entrevista sobre o romance foi para o cronista Sérgio da Costa Ramos, e ele registrou que o livro ia chamar-se Pedras com febre. O outro título seria A xoxota sagrada, mas no fim optamos pelo título delicado de Teresa, namorada de Jesus.
• Você sempre manteve uma postura coerente dentro da literatura, com posições firmes, avesso às facilidades, algo difícil de encontrar atualmente. Gostaria que você falasse sobre isso.
Mas paguei caro por não me submeter às trapaças literárias e universitárias, a torto e a direito, à esquerda e à direita. O Brasil não escolhe o lado ideológico das besteiras. Quando fiz meu doutorado na USP, cujo tema foi a censura a Rubem Fonseca, eu já conhecia a censura na prática, mas é horror proclamar-se coitadinho, perseguido. O que também não estou fazendo agora — acho que, como canta o Gilberto Gil na versão que fez de “No woman no cry”, do Bob Marley: “Retratos do mal em si/ melhor é deixar pra trás”. Há escritores talentosos no Brasil, em todos os cantos, só não vê quem não quer.
• A leviandade que se vê atualmente na poesia brasileira atingiu também a prosa, com alguns nomes que aparecem muito na chamada mídia cultural, mas que pouco têm a mostrar como obra consistente e séria. Essa afirmação é exagerada?
Não, não é. Vivemos tempos assustadores, a mediocridade triunfa, impune e fagueira. Veja os horrores! Em muitos comentários, já não se acerta nem mais a categoria. É como se o sujeito disputasse futebol e se classificasse no vôlei. Isso, sim, é meter os pés pelas mãos! Mas no Brasil quase não há polêmica; há ódios, ressentimentos. E o ressentimento, como disse Shakespeare, é um copo de veneno que você toma na esperança de que ele faça mal a seus inimigos. Faz mal somente a você. O poeta Eduardo Hoffmann, cujos versos me foram apresentados por Manoel Carlos Karam ou Dante Mendonça, diz: “Sede como Machado de Assis, que perfumava os vândalos que o feriam”. Sejamos assim, ou “sejemos”, como disse aquele ministro na CPI: em vez de soltar puns de ressentimento, vamos alegrar nossos leitores com versos e prosas bem escritos.
• Um dos capítulos de Teresa, namorada de Jesus tem o título As palavras escritas vivem para sempre. Você acredita nisso?
Vivem para sempre. Por isso é necessário cuidar de sua beleza. Elas são eternas. Ninguém se arrepende da beleza. Os leitores também me dizem que Teresa é um livro bonito. A Claudia Cordeiro Reis, que fez a página www.deonisio.com.br, está recolhendo resenhas, comentários, cartas e mensagens que dizem coisa semelhante. E estou pensando em publicar a série “Os melhores telefonemas”, pois o brasileiro é o ser que mais gasta com telefone no mundo. Mudando de assunto, é muito feio o que estão fazendo com a literatura brasileira. Acho linda a recomendação que as mães fazem às crianças: “Não faça isso, meu filho!”. “Por quê, mãe?”, perguntam os pimpolhos. “Porque é feio”, resumem as mães. Quanta sabedoria nessa síntese. É muito feio o que estão fazendo com os verdadeiros escritores no Brasil. Fazem de conta que eles não existem ou que existem apenas para serem perseguidos ou ignorados. Os mais sensíveis podem até morrer! E esses ignorantes serão também assassinos, credo em cruz! O Brasil precisa de mais dez mil escritores! Mas, para isso, precisa antes de mais alguns milhões de leitores! Nosso grande problema continua sendo, mais do que o analfabetismo, a falta de leitura! A mortalidade infantil é muito alta na literatura brasileira. Muitos livros estão morrendo de puro abandono, sem ninguém para cuidar eles.