A literatura brasileira é podre.
Não me canso de repetir este adjetivo: podre. É claro que, do jeito que escrevo a frase, parece que me refiro a presente e a passado, o que não é verdade. “A literatura brasileira é podre” tem origem num determinado ponto e é uma reticência prolongada da esterilidade que marcou boa parte do século 20. E que hoje ainda rende frutos como Bangalô, de Marcelo Mirisola. Podre.
Chegou a um ponto tal a fedentina expelida pela literatura brasileira que agora nós, leitores, profissionais ou não, temos vergonha de ler um livro em público. Eu tive. No avião, envergonhado, lia o romance (termo não exato) de Marcelo Mirisola. Quando chegou o lanchinho, pousei o livro com a quarta capa para cima, com medo de que o comissário me expulsasse do avião por carregar aquilo para dentro. Não à toa, acho, o senhor que estava sentado à minha esquerda começou a passar mal, com direito a saquinho de vômito e tudo. Faz sentido.
E, em sendo a literatura brasileira podre, não é difícil fazer uma analogia entre literatura e política, que também é podre. Literatura é, sim, política, mas o contrário não é verdade. O leitor, feliz em sua ingenuidade, que entra na livraria e se depara com um amontoado de títulos não imagina a podridão que está por detrás disso. E acha que tudo é boa-vontade de editores dispostos a revelar ao mundo talentos ocultos. Mentira. Podridão. Política. Três substantivos que geram coisas como Marcelo Mirisola.
O engano que há por detrás deste nome falsamente aliterado diz respeito à origem e fim. Enganam-se os detratores do escritor quando o mencionam como se ele fosse o culpado. Não é. Mirisola é tão-somente o pus de um cancro. É sintoma, não causa. O que não o exime de culpa, é claro. Porque ao se contentar em ser sintoma ele, o escritor, a persona literária, demonstra ter um caráter de pus. Que é o que se revela em seus livros.
Ao falar de autor e de caráter, parto da premissa de Dalton Trevisan, segundo o qual tudo o que um escritor tem para dizer, diz nos seus livros. Como Mirisola é incapaz de falar de outra coisa que não de si, torna seus livros extensão do caráter. O que não é uma posição confortável. Nem para crítico, nem para criador. Mas quem disse que Mirisola é criador, não é mesmo?
Eu queria era poder tratar com o editor. Colocá-lo contra a parede e perguntar o porquê disso tudo. Como nasceu a vulgaridade como meio de expressão, como filão literário, como sucesso editorial. Mais: como é que se pode conferir a este tipo de besteira absolutamente conservadora o status de literatura, avalizada, inclusive, por nomes como Fabrício Carpinejar e José Castello? O editor é um gênio; o escritor, mais uma vez, sintoma. Lembrando sempre que a genialidade não é um conceito exclusivamente bom. O século 20 está cheio de exemplos, políticos e literários, disso. Poupe-me de uma explicitação maior.
Não. Marcelo Mirisola e seu Bangalô não são a canalhice necessária. Simplesmente porque não há canalhice necessária numa literatura tão cheia de canalhas. O Bangalô do autor é uma mentira e um factóide literário. Ali está o livro, que tem pouco mais de cem páginas, mas ele não existe, de fato. É uma ilusão de nosso tempo, uma mentira, uma brincadeira. Pus que um algodão embebido em inteligência limpa sem maiores traumas.
Bangalô conta a história de Marcelo. Um homem que mora à beira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e que vive num bangalô, propriedade de um tal de Frank, artista plástico. No bangalô, Marcelo vê barquinhos o tempo todo. Vale lembrar que no outro livro, Marcelo lambia azulejos (não se pode negar que se trata de uma evolução. Mais alguns anos e teremos um pitecantropos. Esperança). Além disso, faz sexo, ativo e passivo, em dupla ou trio. E faz considerações idiossincráticas, falsamente polêmicas, sobre celebridades de ocasião. Ah, sim: e também assiste ao programa do Raul Gil ¾ dado importantíssimo.
Bangalô padece do mesmo mal que outros livros de sua geração ¾ uma geração verdadeiramente perdida ¾: é efêmero. Trata de questões que não farão sentido a leitor algum num futuro próximo. Isso supondo que faça sentido para alguém hoje em dia ¾ hipótese que não pode nem deve ser descartada, sobretudo por alguém que, como eu, recusa-se a supervalorizar o nível dos leitores. Sim, porque deve haver algo errado também do outro lado da cadeia.
Mirisola emite opiniões sobre Renato Russo, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Carlos Heitor Cony e Gustavo Kuerten. Não é novidade. Em outros livros, já havia falado sobre Xuxa e Senna, e até que chocou os mais deslumbrados. Ao fazer isso, parece se comunicar perfeitamente com seus leitores, que se identificam com o autor aqui e ali. Marcelo Mirisola, neste sentido, faz uma literatura de boteco. E não se trata aqui de concordar ou não com suas opiniões sobre cada uma das personalidades mencionadas, vale dizer. E um mundo que precisa de uma literatura de boteco simplesmente não é o mundo que admiro.
Marcelo, personagem e escritor, é, sim, um canalha. Na orelha do livro, Fabrício Carpinejar diz que compará-lo a Charles Bukowski é besteira. Faz a ressalva porque sabe que a comparação é perfeita e inevitável. Mirisola é, sim, um Bukowski, mas com trinta anos de atraso. Não vejo qualidade alguma no bêbado americano, mas perto dele, Mirisola consegue parecer ainda menor. É como uma criança que tenta ver o mundo sobre os ombros de um gigante, mas escolhe um anão. O pior é que o anão escolhido por Mirisola fede a cachaça barata.
Mas ele tem estilo, me dizem. É mais uma falácia. A literatura brasileira carece de imaginação, não de estilo. Alguém que se preocupe com estilo, e não imaginação, é apenas um decorador de textos. Neste sentido, o estilo de Mirisola é trapo sobre trapo; é saia verde-limão com blusinha de oncinha.
E eu lendo um livro e me perguntando: qual o grande estilo de Mirisola que, teoricamente, dispensaria a imaginação de seus escritos? É usar frases só de pontos…………………………………………………………………………………………………………………………………………………? É usar barra para separar algo que poderia ser separado por uma conjunção alternativa? É usar o “&”, em vez do “e” dos pobres mortais?
Para mim, o estilo de Mirisola é a dislexia. Frases sem nenhuma relação entre si. O uso de palavras a esmo. E a total incapacidade de compor um mísero diálogo interessante ou um parágrafo inteligível. Poderia dizer ainda que o maravilhoso, inovador e revolucionário estilo de Mirisola é escrever “tá”, em vez de “está”, “pra”, em vez de “para”, e contrações do mesmo calibre. Mentira. Podridão. Política.
Literatura é imaginação. Este é um dogma do qual não abdico. Se eu quiser realidade, palavrões, comentários pretensiosamente sarcásticos sobre celebridades do momento, pansexualismo e discurso de revoltadinho eu simplesmente saio às ruas, vou a um boteco, ligo a televisão. Em literatura, é mais do que dispensável.
Ainda sobre estilo, quem quiser isso que vá a Machado ou a Rosa (nos quais, aliás, sobra também imaginação). Na literatura brasileira, quem quer ter estilo e não tem capacidade para superar estes dois gênios verdadeiros, simplesmente não tem o direito de ser algo tão pequeno quanto Marcelo Mirisola.
Humor? Há quem veja humor em Marcelo Mirisola. Em seu Bangalô, eu também vi humor, mas era algo muito próximo daqueles programas feitos para velhinhos, com esquetes de rádio, adaptadas para a televisão. Se levarmos em conta o humor, podemos pensar em Mirisola como o Ari Toledo da literatura brasileira. Basta que ele diga “porra” para que toda a platéia se desmanche em risos histéricos num cenário cult qualquer.
Ora, mas por que perder tempo escrevendo sobre Bangalô, quando se poderia estar escrevendo, com mais gosto, interesse e inteligência, sobre Meu pé de laranja lima? Mirisola é pus; alguém tem de ser o algodão.
Para o bem da verdade, confesso: quando abri o cancro, o livro, achei que haveria cura. Houve uma esperança honesta. Ao abrir o livro, disse que gostaria de gostar (sic). Quis acreditar no material de divulgação da editora, que tecia loas ao escritor, que dizia que o final do livro era surpreendente, que o apontava como um expoente. A esperança era um sentimento mais do que verdadeiro. Mas ali logo na primeira página um parágrafo me angustia pela incongruência forçada, que nada tem a ver com sutileza de pensamento, e sim com incapacidade de se organizar idéias. Não foi desta vez que Marcelo Mirisola conseguiu surpreender.
É fato: perdi minha ingenuidade. Graças a Deus. Quero os canalhas longe de mim. Nenhum canalha é necessário, insisto. Muito menos em nossa literatura, onde eles proliferam como nunca.
Depois da esperança e a vergonha, o alívio. Ao terminar de ler Bangalô, me senti aliviado. Porque soube que poderia voltar à leitura de algo que realmente preste. Alívio também é o que sinto ao terminar este texto. Um texto inútil, diga-se de passagem. Porque Mirisola sobreviverá na literatura brasileira, alimentado pela podridão, pela mentira, pela política.
Pelo menos hoje eu coloco um ponto-final neste texto certo de que nunca mais me debruçarei sobre o livro de alguém que já afirmou, aos berros, escrever com os colhões. Tenho mais o que fazer.