Há ao menos uma afirmação com a qual parte dos intérpretes de Franz Kafka concorda: a de que o número e a variedade de análises dedicadas ao escritor são excessivos. Para Otto Maria Carpeaux,[1] “é difícil dissipar a nuvem de equívocos”. Marcel Reich-Ranicki,[2] certamente o mais famoso crítico literário da atualidade na Alemanha, fala de certa “saturação” em relação a Kafka, de que se nota algum “cansaço”, não especificamente em relação aos livros do escritor, mas aos “livros acerca desses livros”, ou seja, à “indústria internacional kafkiana”. E completa seu raciocínio com uma citação do crítico Heinz Politzer, para quem os textos de Kafka são “o teste de Rorschach da literatura, e sua interpretação diz mais sobre o caráter do intérprete do que sobre a essência do seu criador”. Ernst Fischer[3] salienta que “se trata de defender Kafka de toda canonização, mas não menos de defendê-lo, também, contra fanáticos dogmáticos”. Quanto a Maurice Blanchot,[4] este nota a invasão da “tagarelice dos comentários”, mas, parágrafos depois, conclui:
O que torna angustiante nosso esforço para ler [Kafka] não é a coexistência de interpretações diferentes; é, para cada tema, a possibilidade misteriosa de aparecer ora com um sentido negativo, ora com um sentido positivo. Esse mundo é um mundo de esperança e um mundo condenado, um universo definitivamente fechado e um universo infinito, o da injustiça e o do erro. […] Deve ser dito de sua obra: tudo nela é obstáculo, mas também tudo nela pode se tornar degrau. Poucos textos serão mais sombrios, e, no entanto, mesmo aqueles cuja conclusão é sem esperança permanecem prontos a se reverterem para expressar uma derradeira possibilidade, um triunfo ignorado, a fulguração de uma pretensão inacessível.
Inclusive entre os ensaístas que analisaremos aqui, algumas das idéias acima reverberam. Em seu K., Roberto Calasso reclama da insistência com que se estuda “a relação de Kafka com o judaísmo”, identificando nela uma “pertinácia muitas vezes vã”. Mas pertence a Günther Anders a melhor observação, semelhante, aliás, à de Blanchot: “A diversidade de interpretações que Kafka experimentou não se baseia na ‘estupidez’ dos intérpretes, mas no caráter multívoco do objeto”.
Estamos diante, portanto, de uma obra que se pretende apenas literatura — “Sou apenas literatura e não posso nem quero ser outra coisa”, escreve Kafka[5] —, mas que é lida, dissecada, escalavrada como se pudesse oferecer mais, como se escondesse uma essência prometida a poucos iniciados ou certa verdade reservada ao futuro. Chegamos, assim, ao segundo ponto de concordância entre os críticos acima: apesar de suas diferentes censuras, nenhum deles resistiu ao desejo e ao risco de interpretar Kafka.
Entretanto, diante dessa contradição a que toda obra literária genial está condenada — originalmente, almejar ser apenas literatura, mas tornar-se objeto de cultos os mais diversos —, não devemos perguntar se há uma megalomania subjacente ao ato de interpretar Kafka, mas, sim, quais leituras de sua vida e de sua obra são aviltantes — ou seja, apenas classificam e diminuem — e quais ilustram, abrindo novas e ricas possibilidades de interpretação.
Em busca de Kafka
Gérard-Georges Lemaire, autor da biografia Kafka, é um intelectual de múltiplas facetas: tradutor de, entre outros, Allen Ginsberg e William Carlos Williams, criou várias revistas culturais e colabora em muitas outras publicações. Estudioso de história da arte e estética, com inúmeros livros publicados, foi o curador de uma exposição coletiva dedicada a Franz Kafka, com o objetivo de transformar em obras pictóricas os escritos do autor de A metamorfose.
Lemaire inicia seu relato pelo enterro de Kafka. Movido por um fundo senso dramático, ele não descuida, no entanto, da recuperação dos necrológios publicados nos jornais da época — oferecendo-nos a repercussão da morte de Kafka entre a intelectualidade de língua alemã e tcheca —, de um amplo levantamento histórico sobre a situação dos judeus instalados na Boêmia e da cuidadosa reconstituição do problema do anti-semitismo, traçando um inevitável paralelo entre o funeral de Kafka e “o crepúsculo da Praga judia e germânica (uma minoria no seio de outra minoria bastante ínfima, presa entre o martelo do nacionalismo tcheco e a bigorna do anti-semitismo alemão), que viu pouco a pouco seus artistas desertarem-na”.
Lentamente, surge diante de nós o jovem Kafka, formado em instituições escolares severas, a fim de responder aos anseios de ascensão burguesa do pai, bem como a estranha discordância existente entre o que seus contemporâneos lembram sobre sua dedicação e seu desempenho na escola e a maneira de Kafka, reiteradamente, se autodepreciar.
Lemaire deixa evidentes os cuidados que toma na tentativa de recuperar o “verdadeiro” Kafka. Utiliza a Carta ao pai com desconfiança — “Não sabemos se é puramente autobiográfica ou puramente literária. […] É preciso ler essa carta com muitas precauções” —, permitindo que aflore um Kafka menos ficcional:
A vida em família nem sempre foi tão sombria quanto ele nos faz crer, como se a completa dominação do pai lançasse uma sombra pesada sobre tudo. Na qualidade de mais velho, ele tem ascendência sobre suas irmãs, que parecem, aliás, obedecê-lo com docilidade.
E essa desconfiança se repete em relação a outra fonte assinada pelo escritor, sobre a qual Lemaire pondera: “[…] se confiarmos em seu Diário, sempre muito lacunar e elíptico”.
O aluno de direito que cursa germanística, história da arte, literatura alemã e sintaxe do alto alemão moderno — “com os exercícios de estilo e os comentários das cartas de Gestenberg, um grande crítico do século XVIII” —, também é o leitor de Nietzsche, Flaubert (no original francês), Goethe e Robert Walser, além de desenhista — aparentemente influenciado por Paul Klee e Alfred Kubin —, adepto do naturismo, caminhante solitário pela Praga dominical e freqüentador assíduo de cabarés, bares e prostíbulos. Todas as facetas da personalidade de Kafka são apresentadas ao leitor, incluindo seu humor sutil e a capacidade para rir de si mesmo.
Trata-se de uma biografia útil como introdução ao mundo kafkiano, e não só porque Lemaire nos oferece uma minuciosa cronologia das obras de Kafka, sempre contextualizando os respectivos períodos de elaboração, mas pelo fato de que o biógrafo tem o cuidado de compor um claro panorama do espaço físico no qual o escritor viveu, descrevendo o processo de urbanização dos bairros em que a família Kafka morou, historiando a vida noturna, inclusive com detalhes da decoração dos cafés e prostíbulos, além de acompanhar os personagens centrais, principalmente as mulheres que se relacionaram com o escritor, como Felice Bauer e Milena Jesenská, até anos depois da morte de Kafka.
No texto de Lemaire não há espaço para hipóteses mal fundamentadas ou generalizações. Seu apego aos detalhes — inclusive da correspondência de Kafka, na qual o escritor expõe suas carências sem qualquer pudor, exagerando-as a ponto de confundir realidade e ficção — dá vida a uma narrativa equilibrada, capaz de encontrar soluções prudentes para as inevitáveis lacunas. Por exemplo, entre duas versões sobre a relação do biografado com o sionismo, Lemaire delibera:
O que podemos afirmar é que Kafka tem uma consciência aguda da situação acrobática e necessariamente perigosa do homem judeu na Europa moderna. Ele sabe que essa situação é fruto de uma longa, longuíssima história cujos fundamentos estão deturpados.
Os últimos dias de Kafka fecham o livro. A descrição da pobreza, a doença que o impede de se alimentar, as horas de felicidade ao lado de Dora Diamant, a inesgotável ânsia por escrever, a agonia no Sanatório Wiener Wald, o ímpeto com que ele arranca de si o pneumotórax, todos esses elementos são impregnados pela descrição do encontro de Kafka com sua “leitora ideal”, aquela que, “como ele, prefere a ‘verdadeira vida’ da ficção à vida real” — páginas finais que reafirmam o timing de Gérard-Georges Lemaire.
Simplificações
Distanciando-se da biografia formal, Kafka de Crumb, com desenhos de Robert Crumb e texto de David Zane Mairowitz, é uma obra à parte. Nesse sentido, o editor brasileiro agiu acertadamente ao não traduzir o título original, Introducing Kafka, pois o livro não é uma introdução aos escritos, à vida ou às idéias de Kafka, mas, no que se refere exclusivamente aos desenhos, uma leitura pessoal de Crumb.
O texto de Mairowitz, que já escreveu volumes semelhantes sobre Wilhelm Reich e Albert Camus, apresenta conclusões duvidosas e arriscadas generalizações. Ele afirma, por exemplo, que Kafka “não tinha uma visão do mundo discernível para utilizar em seu trabalho, nenhuma filosofia que o guiasse, somente lendas espantosas retiradas de um subconsciente extraordinariamente agudo”, demonstrando não conhecer a formação de Kafka e restringindo o imaginário do escritor a algumas histórias assombrosas da cultura judaica, como a do Golem.
Para Mairowitz, entre alemães e tchecos, “TODOS [maiúsculas do autor] odiavam os judeus”. E no que se refere à relação de Kafka com o pai, dois parágrafos bastam para termos uma idéia de seus exageros:
O pavor que Kafka demonstrou em toda a vida frente ao PODER superior, tornado famoso em seus livros O processo e O castelo, começa com Hermann Kafka [pai do escritor]. Ele temia e odiava seus professores da escola, mas tinha de vê-los como Respektspersonen, a serem respeitados por nenhuma outra razão a não ser a de estarem em posições de autoridade.
Mas ele nunca se rebelou. Em vez disso, transformou seu medo em auto-rebaixamento ou doença psicossomática. Em cada enfrentamento com a autoridade, tornava-se o lado culpado. Além disso, como na clássica relação entre senhor e escravo, colonizador e colonizado, COMEÇOU A VER-SE ATRAVÉS DOS OLHOS DO PAI.
Entre poucas afirmações verídicas, um amontoado de simplificações psicanalíticas e de deduções apressadas, superficiais. Pressionado, talvez, pela necessidade de oferecer um texto curto, do qual, além da biografia, constassem resumos de algumas das histórias de Kafka, Mairowitz elaborou uma síntese pouco confiável.
No que se refere à visão de Crumb, quando o desenhista ilustra as histórias de Kafka, sua imaginação não divaga e ele se prende ao roteiro, oferecendo-nos seus traços pesados, densos, nos quais o jogo de claro-escuro revela o que os personagens têm de pior. Mas quando se trata da vida de Kafka, Crumb se apóia nas simplificações de Mairowitz e recria o escritor, transformando-o em um ser obsesso, às vezes fantasmagórico, quase sempre oprimido e doentio. Àqueles que conhecem o trabalho do desenhista norte-americano, nenhuma novidade, mas os leitores de primeira viagem ou os que, porventura, estejam em busca de material introdutório ao universo kafkiano, esses terão uma idéia falsa de Kafka, além de se depararem com duas páginas finais que dão ao livro a aparência de um libelo da contracultura.
Pequenas epifanias
Outra leitura de Kafka, distante dos excessos de Crumb e Mairowitz, encontra-se em K., de Roberto Calasso, editor e ensaísta conhecido dos leitores brasileiros — autor de Os 49 degraus, A literatura e os deuses, Ka, e As núpcias de Cadmo e Harmonia, todos publicados pela Companhia das Letras.
Os capítulos de K. pressupõem a leitura de Kafka. Sem esse antecedente, o leitor se sentirá navegando à deriva. Contudo, tendo lido ao menos O castelo e O processo, sua experiência nem sempre será agradável, pois, se, como afirma a orelha do livro, “Calasso não tenta desfazer o labirinto a golpes de interpretação”, algumas vezes despende páginas e páginas para recontar o que já lemos nas obras de Kafka, apenas para recontar o que Kafka, é claro, contou melhor.
Assim, é preciso ler Calasso com paciência e pertinácia, não somente para ultrapassar as páginas entediantes, mas principalmente para descobrir os momentos nos quais o autor elabora comentários que são pequenas epifanias, observações que nada concluem, que na verdade não pretendem ser conclusões definitivas, mas que nos fazem refletir.
Logo no início da obra, partindo de uma citação autobiográfica — “Como justifico o fato de não ter escrito nada hoje? Com nada. […] Tenho continuamente nos ouvidos uma invocação: Ah, se viesses, tribunal invisível.” —, Calasso afirma:
Com essas palavras, como se recorresse a um potente sortilégio da mão esquerda, Kafka cruza o umbral e penetra no recinto do Processo e do Castelo — mas também de todo o resto de sua obra. Esse é o lugar de sua escrita, na expectativa de uma condenação e nas delongas de um trâmite interminável. Lugar torturante, mas também o único ao qual Kafka tem certeza de pertencer.
Assim, além de demonstrar compreender a obra kafkiana, Calasso revela ter consciência de que o vazio e a incerteza são, dentre outros, estados capazes de gerar a escrita, e que, de uma forma ou de outra, os homens são reféns da insegurança.
Outro bom achado surge de um trecho em que Kafka analisa sua caligrafia: “O k é muito feio, quase me dá asco, mas continuo a escrevê-lo, deve ser muito característico de mim mesmo”. As observações de Calasso são um fino exercício de sensibilidade, resultado de uma leitura dedicada:
Escolhendo o nome K., Kafka obrigou-se a grafar centenas de vezes, diante dos próprios olhos, um traço que ofendia e no qual reconhecia alguma coisa que lhe dizia respeito. Se tivesse narrado O castelo em primeira pessoa, conforme começara a fazer, a história não teria imergido tão profundamente em sua própria fisiologia, em zonas subtraídas ao império da vontade.
Há também comparações sugestivas, como a analogia entre o porão descrito por Kafka em uma carta a Felice Bauer e os detalhes que a personagem Pepi narra do quarto que ocupa, com outras criadas, na hospedaria de O castelo:
Os escritos de Kafka […] estavam repletos de sonhos nascidos num quarto escuro e subterrâneo. […] Escavados laboriosamente na compacta superfície do mundo, são nichos que hospedam uma vida oculta, imperceptível de fora, a um só tempo paradisíaca e infernal.
Certamente, não são divagações de um beletrista, mas sinceros exercícios de entendimento, semelhantes ao resultado conseguido por meio da comparação entre uma imagem do pai de Kafka e seu filho:
[…] Mas voltemos a olhar para uma fotografia de Hermann Kafka em 1930, seis anos depois da morte do filho e um ano antes da sua própria. Está em pé, ao lado da esposa, que, metida num casaco longo e escuro, parece sair do chão. Hermann está magro, a gola da camisa é frouxa demais, o casaco está aberto e pende, com certa elegância, como de um cabide. O rosto é o de Franz Kafka, tivesse ele envelhecido. Tudo é igual: os cabelos rentes, as orelhas para fora, a leve inclinação da testa, a ossatura triangular do rosto, a quieta desolação do olhar. Apenas deste último pode-se dizer que não corresponde plenamente ao do filho. Mas o pressupõe.
Antes de morrer, devastado pela doença, só então o pai se aproxima do filho, levando-nos a pensar no quanto Franz Kafka sempre esteve no limiar da morte, um ser limítrofe entre a angustiante experiência de viver e o nada.
Mas as melhores páginas do trabalho de Calasso são as do último capítulo, quando ele trata dos aforismos que Kafka escreveu durante a estada em Zürau, na propriedade de sua irmã, Ottla. Calasso consegue estabelecer uma relação frutuosa entre a biografia de Kafka, sua correspondência e os enigmáticos aforismos, que o ensaísta interpreta com sobriedade:
[…] Aqui aboliu-se toda a redundância, todo acidente, toda ênfase. Em sua brevidade, em sua limpidez enganadora, essas frases têm alguma coisa de taxativo. Seria fútil exigir uma amplificação ou concatenação. São os traços intempestivos do pincel de um mestre velhíssimo, que se concentra por inteiro nas mínimas oscilações do pulso, guiadas por um “olho que simplifica até a desolação total”, como Kafka definiu seu próprio olhar numa carta da mesma época.
Há vários desses parágrafos-sínteses em K., um livro que não propõe uma taxinomia, mas que também não é fruto apenas do deleite; texto cujo estilo se assemelha ao do diálogo respeitoso, distanciando-se e aproximando-se de seu objeto, num movimento oscilatório, numa circunavegação que nem sempre alcança seu fim, mas que, em determinados momentos, inesperadamente, oferece uma descoberta capaz de nos aproximar um pouco mais de Kafka.
Kafka e o mundo
Da mesma forma que Roberto Calasso, o filósofo Günther Anders — em Kafka: pró & contra — não se propõe a alcançar uma verdade definitiva sobre Kafka, pois sabe quão frágil seria o estabelecimento de um juízo dependente de provas nem sempre identificáveis e de um réu cujos depoimentos podem ser tanto ficção quanto realidade. Mas, numa decisão que o coloca em um patamar superior ao de Calasso, pretende “ver por dentro” o texto kafkiano. Seu ensaio também não almeja “ser uma introdução, mas um comentário”, pois Anders — que foi aluno de Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Edmund Husserl — tem consciência de que nenhuma análise pode substituir ou se antecipar à leitura da obra à qual ela se refere.
Empreendendo um estudo que busca as vísceras do texto, Anders tenta comprovar a tese de que “as verdades da fábula nascem da deformação” e, no caso de Kafka, trata-se de estudar um “fabulador realista”. Ele atinge seu propósito, revelando, passo a passo, as inversões, deformações ou deslocamentos por meio dos quais Kafka cria suas metáforas: o escritor trata a loucura de maneira trivial — como se todos os dias homens acordassem transformados em insetos —, torna comum o insano, potencializando, assim, a loucura do mundo; ou renomeia os objetos, “para separar, de antemão, os preconceitos automaticamente ligados aos nomes, com isso forçando o leitor — e a si mesmo — a olhar de frente, sem preconceito, aquilo que deseja dizer”. Ao inocular estranhamento no real, cria “a trivialidade do grotesco”: o espantoso é tratado “como algo despojado de espanto”; o além “não é de maneira alguma extramundano, mas o próprio mundo, o próprio Aquém”; “a punição (que se antecipa à culpa) torna-se testemunho da culpa”; e os personagens deixam de ser homens, transformando-se em funções, de maneira que a “incorporação progressiva no mundo”, interpretada no romance ocidental como “educação”, é “descrita como um malogro”.
Para Günther Anders, as bases dessa “estranheza especial de Kafka” podem ser encontradas, ao menos parcialmente, em sua biografia: a de um judeu ateu vivendo em um mundo tcheco e cristão, mas expressando-se em alemão. E esta é apenas uma parcela do que Anders chama de “condição de não-pertencer” ou “discrepância insanável entre sujeito e mundo”:
o “eu” que Kafka encontra, ele o descobre como um “estranho” — mas o “estranho” não “é”, pois a palavra “ser” […] em alemão quer dizer as duas coisas: “estar aí” (dasein, existir) e “pertencer a” (ihm gehören, ser de). Quem “pertence” (é de) pode dizer: ergo sum.
Na verdade, o filósofo só consegue realizar sua lúcida leitura de Kafka pelo fato de ser, antes, um leitor do mundo, um leitor sensível da realidade e, também, de uma ampla tradição literária e filosófica, na qual se incluem Kant, Marx, Lessing, Goethe, Gógol e Poe, entre outros. Na condição de incansável explicador, um verdadeiro criptógrafo, ele constrói seu texto claro, didático, no qual os raciocínios são expostos sem causar enfado, mas obrigando-nos a reconhecer sua perspicácia. Ao mesmo tempo, Anders não abre mão da profundidade, da pesquisa que esmiúça cada detalhe, que critica outros estudiosos de Kafka e penetra no jogo de inversões do seu objeto de estudo para, ao final, extrair uma síntese. Jogo de inversões, aliás, clarificado pelas notas do tradutor, Modesto Carone.
Não se trata de afirmar que Anders estabeleceu parâmetros incontestáveis, nem é esse o seu objetivo, mas de reconhecer que, por meio de sua leitura, nossa compreensão do universo kafkiano se ilumina. Assim, o que, em Calasso, serve a um repisar que se estende por páginas e páginas, em Günther Anders restringe-se a poucas linhas de uma interpretação que não soa forçada, mas elucidativa. Nele, nada é excessivo.
Poucos meandros escapam à sua análise. A abrangência de sua leitura alcança, inclusive, a função do subjuntivo, tempo verbal que ele chama de “filho da insegurança”, partindo daí para analisar as “frases condicionais” do escritor, tratadas como um “sintoma de falta de vontade própria e um elemento decisivo da sintaxe de não-liberdade”, até desembocar em uma preciosa definição, composta para resumir a qualidade do estilo kafkiano, mas adequada a todos os escritores que dominam sua arte:
o ducto lingüístico e a empostação de voz de quem, quando fala, sabe com precisão na qualidade de quem, a quem e para que fala, assumem aquela inequivocidade que nós acolhemos como estilo convincente.
E o trabalho de Anders não se esgota nesse ponto. Ao comentar Kafka, ele o ultrapassa, caminha para além da literatura e elabora uma cosmovisão útil não apenas ao homem que conheceu de perto os horrores da Segunda Guerra Mundial, mas também para os que vivem nos dias de hoje. Suas reflexões, portanto, abandonam a condição de uma crítica essencialmente literária e se transformam em um ensaio sobre a condição humana.
Günther Anders, no entanto, não elogia apenas. Ele indica aqueles que seriam os limites de Kafka, considerando-o, “em certo sentido, um moralista do nivelamento”, cuja “mensagem moral é o sacrificium intellectus”, cuja “mensagem política é a auto-humilhação”, o que teria desembocado “num arrazoado de defesa da desinvidualização e da dependência […], um documento literário pré-fascista — um discurso de defesa da obediência cadavérica”.
Mas ainda que exerça seu direito e seu poder de crítica, Anders sabe reconhecer os próprios limites, como nestes dois momentos:
[…] O entrelaçamento de metáforas não é a única dificuldade com que a interpretação se defronta. Pois há, também, histórias curtas, monolíticas, que não são decifráveis sem maiores problemas, porque muitas estão fechadas com várias chaves ao mesmo tempo. Mesmo quando temos todas as chaves na mão, pode acontecer que a porta não se abra — porque não somos capazes de usar todas as chaves ao mesmo tempo.
Muita coisa continua passível de muitas interpretações. Não só se ele [Kafka] está falando em tese ou se apenas testa teses em forma de fábula. Se supuséssemos que realmente “pretendeu” aquilo que disse, ainda assim ficaria incerto se o que foi dito em forma de tese descreve atitudes humanas que existem ou atitudes que deveriam existir. Mais que isso, porém, fica sujeito a múltiplas interpretações.
Re-significando os termos, os conceitos, a fim de redefinir as características de uma obra cuja principal qualidade é a de escapar a quaisquer definições, Günther Anders luta para não restringir, ciente de que seu objeto o ultrapassa em muito.
A beleza e a ciência encontram-se nesse livro que, por reconhecidas razões, tornou-se um clássico. Dele, ao final, emerge o homem cujo “único desejo” e “única vocação” era a literatura, que se aborrecia com tudo o que não era literatura, que odiava tudo o que não dissesse respeito à literatura.[6] E emerge também, revigorada, a obra diante da qual todas as interpretações — necessárias, às vezes geniais, nem sempre engrandecedoras — lembram balbucios que expressam a única conclusão possível: leiam Kafka.
Notas
[1] Carpeaux, Otto Maria. Literatura alemã. Editora Nova Alexandria, SP, 1994.
[2] Reich-Ranicki, Marcel. Siete precursores (escritores del siglo XX). Galáxia Gutenberg/Círculo de Lectores, Barcelona, Espanha, 2003.
[3] Fischer, Ernst. Literatura y crisis de la civilización europea – Kraus, Musil, Kafka. Icaria Editorial, Barcelona, Espanha, 1984.
[4] Blanchot, Maurice. A parte do fogo. Editora Rocco, RJ, 1997.
[5] Apud Blanchot, Maurice. Op. cit.
[6] Apud Blanchot, Maurice. Op. cit.