Apesar de todas as incursões literárias à Índia, persiste no Ocidente o olhar dualista de um país onde o símbolo mítico tenta afogar o incompreensível cotidiano. A ideologia da imutabilidade das castas, por exemplo, além de insuportável, é ininteligível e incompreensível para os que estão fora da visão hindu do mundo.
Afinal, como os ocidentais poderiam entender a Índia onde a unidade não é a família, mas sim a casta? Onde quem ascende não é sujeito, mas o grupo?
Mais: como racionalizar um país de território um terço menor que o brasileiro, tomado por uma população de 900 milhões de habitantes — a maioria analfabetos — com uma democracia cambiante de apenas 53 anos oriunda da não-violência do tostóico Mahatma Gandhi, do encerramento da dominação britânica, e guiado por uma multidão de famintos em um país que, ao menor sinal de disputa, transforma-se numa Babel semântica entre 179 línguas e 544 dialetos?
Ou o panteão de deuses hindus de muitas cabeças, argumento para disfarçar a cobiça com muitas facetas; ou a estética da pobreza e da fraqueza abusando da realidade quando produz imagens líricas, ainda que atormentadas, do homem indiano: espectro entre o intervalo das estações e o chamado à prece interminável.
Isso tudo produz em todo não-indiano uma visão míope sobre a Índia que, ou é de beatitude, quando persegue a inexaurível mulher indiana na fortaleza de seus saris vermelhos e a arquitetura do Taj Mahal e da britânica Nova Delhi, ou a face miserável de um pandemônio urbano, onde as abúlicas torrentes de esquálidos mendicantes fazem da penitência a recusa da vergonha humana e do jejuar o peso da vida inativa. “O gênero humano não suporta tanta realidade”, apregoou, sobre a Índia, o escritor T.S Eliot.
Isso porque, para os ocidentais, a civilização indiana que preserva o fragmentário através da indolência e do fascínio ainda é imprevisível, ainda é surpreendente, ainda desafia a definição. Como reiterou garbosamente o escritor W.H Auden em seus conceitos de civilização, a Índia é “o grau em que atinge a diversidade e se preserva a unidade”. Ou como o mexicano Octavio Paz observou em Vislumbres da Índia, Um diálogo com a condição humana (Mandarim,1997) “A Índia evoca a realidade menos tangível: a ausência”.
Um dos caminhos para quem pretende minimizar essa disfunção focal é a literatura.
Muitos dizem que uma parte da literatura indiana conseguiu sua independência em 1981, quando Salman Rushdie publica, na Inglaterra, Midnight’s Children, pois o autor tinha condições de falar de igual para igual com seus ex-colonizadores. Outros poderão atribuir essa conquista a Rabindranath Tagore, prêmio Nobel de Literatura em 1913, autor de obras singulares como Memórias e Pássaros Errantes. Há ainda os que atribuíram aos textos védicos como o Rig-Vega, o Ramayama e Upanishad, o Bhagavad-Gita e o Mahabbarata a gênese de tudo.
Não importa. Até porque à parcial unificação que a língua inglesa produziu na lingüística indiana poderia também receber o crédito desse título. O relevante são os nomes que podem ajudar a ampliar a consciência ocidental sobre a Índia, e entre eles V.S Naipaul, originário de Trinidad & Tobago, mas nascido de pais indianos, o poeta Kalidasa, o contista Lokenath Bhattacharya, o romancista Raja Rao, Vikran Seth, Arundhati Roy e Gita Mehta.
Também conhecida pelo seu trabalho como roteirista, produtora e diretora de vídeos, Gita Metha tem três livros publicados no Brasil que compõem um mosaico surpreendente sobre a Índia.
Em seu livro Carma-Cola: o Marketing do Oriente Místico (Companhia da Letras,195 págs.), lançado aqui em dezembro de 99, Metha faz revelações instigastes sobre o comércio espiritual de gurus patrocinado pelo governo indiano e tão refastelante para a turba assanhada da Europa desestruturada e sem rumo da década de 80.
Já no início do livro, a escritora mostra o engodo em relação à religiosidade indiana ao descrever um brasileiro, instalado em um quarto infestado de insetos na cidade murada de Velha Delhi, voltado para o horizonte que, sem saber o que diz, entoa: “A lua está cheia. O carma está perfeita para olhar jóias”.
O livro segue debochando de forma original, elegante e sem pudor de cenas patéticas e engraçadas, por isso essencialmente tristes, da civilização indiana no desenfreado tempo do haxixe, onde fajutos e abusados gurus posam como líderes espirituais para ocidentais dotados de ignorância injustificável ou comovente ingenuidade. Sejam eles astros de rock ou homens ricos repletos de horas disponíveis e ridículas pretensões.
Como os Beatles e sua adulação desenfreada ao “mestre” Mararishi, pregando na Europa da guerra fria que o preço para um “paraíso” individual era a devoção sem questionamentos. “E os Grandes Otimistas, os americanos […] bem, eles têm o dinheiro e nós temos o tempo, e poucos se sentem enganados no troco. Você fica com o carma, nós levamos a Coca-cola, um refrigerente metafísico por um físico” (pág. 81)
Ou o guru que apregoa em palestras internacionais que Deus existe porque se você olhar no Dicionário de Oxfort, na letra G, acabará encontrara a palavra God. “Está no dicionário. Aqueles que duvidam da existência do divino, que procurem a prova no dicionário. Como poderia o que não existe estar no dicionário?” (pág.108)
Ou a história do guru que é levado ao necrotério para ressuscitar um sujeito a quem havia prometido uma vida longa, e cujo maior milagre não foi devolver a vida ao infeliz, mas encontrar seu corpo perdido na burocracia da repartição. “Felizmente, o elaborado panteão hinduísta é de fato uma rotina de dança voltada apenas para assegurar seu interesse até que você supere a loucura pelo teatro” (pág. 104).
Já Escadas e Serpentes, Um olhar sobre a Índia Moderna (Companhia das Letras, 203 págs., 1998) é um guia para a Índia contemporânea, onde Mehta fala com paixão e lucidez do “caos indiano” em 1997, cinqüenta anos depois da independência do Raj Britânico. O livro traz uma importante luz sobre esse continente de contradições, onde a maior democracia mundial convive simultaneamente com a maior indústria cinematográfica do mundo, a tecnologia nuclear, o lançamento de satélites e a agricultura puxada por búfalos, a ausência de água encanada e esgoto na maioria das residência, o sistema de castas que, embora ilegal, continua sendo praticado.
Outro tema curioso Em Escadas e Serpente é a saga da família Gandhi que oscila da grandeza do Mahatma na Guerra do Sal à corrupção política desenfreada da primeira-ministra Indira Gandhi. No texto Dinheiro Vivo, Mehta compõe importantes imagens da Índia moderna e subdesenvolvida onde a modernização começa pela crítica do passado: “Antigamente, quando se tinha, escondia-se. Éramos um país pobre, e a modéstia significa solidariedade […] mas adiante admitiríamos que a austeridade a que fomos obrigados — equívoco do planejamento central — acabou saindo ainda mais cara do que a pobreza de Mahatma Gandhi […] pela primeira vez na Índia independente, era politicamente correto ser rico”.
Ou seja: o livro é uma biografia da Índia moderna, “tigre enjaulado”, que é uma ficção em busca de administração, invejosa do desenvolvimento dos “Tigres do Sudeste Asiático”, e como disse o escritor V.S Naipaul, “a terra de um milhão de motins agora”.
Já em O Monge Endinheirado, a Mulher do bandido e outras histórias de um rio indiano (Companhia da Letras, 327 págs., 1994) a escritora recupera de modo atual e atraente o autêntico universo cultural indiano. Embasada na tradição oral do país, Metha vai urdindo uma trama de histórias que se enlaçam umas às outras numa original sondagem do espírito humano.
São ficções como a do milionário que se torna asceta, do asceta que abandona as penitências para se tornar milionário, da criança cega que, devido à excelência do canto, perde a voz, da prostituta que se salva através da música.
Além da imagens de uma Índia que alargou-se para seduzir os exércitos da Dinastia Mongol e do Império Britânico, do ceticismo e o niilismo que permeiam o homem indiano que, não sendo livre, desemprenha o papel que outros lhe impõem. Da silhueta dos peregrinos contra a luz noturna, com o coração pulsando na caminhada de dois dias e 800 quilômetros em devoção ao rio Narmada, onde o homem incapaz de sofrer não está vivo, pois é o sofrimento que o torna humano.
Com esses três trabalhos, Gita Mehta forma o panorama onde consegue não só elucidar o golpe de mágica que torna aceitável até mesmo a pobreza indiana, mas também a composição de uma civilização que é sempre um processo; não um ser, mas um torna-se, onde o tempo ou desejo é a força que move as mudanças.