Lygia Fagundes Telles faz parte dos grandes nomes de escritores brasileiros e do seleto grupo de autores da língua portuguesa. É o que atestam os vários prêmios recebidos por ela: diversos Jabutis e outras premiações e a consagração máxima com o Prêmio Camões, em 2005. Com este último, ela se põe lado a lado com Miguel Torga, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Saramago, Autran Dourado, Rubem Fonseca, Mia Couto, Dalton Trevisan e mais alguns autores cujas criações literárias têm dado relevo à “última flor do Lácio inculta e bela”.
Lygia estreou na literatura em 1938, aos quinze anos, com Porão e sobrado, um livro de contos que foi custeado pelo pai. Outros livros se seguiram: Praia viva (1944) e Cacto vermelho (1949). Porém, estas três primeiras publicações não fazem parte de sua bibliografia, porque, para ela, “a pouca idade não justifica o nascimento de textos prematuros, que deveriam continuar no limbo”. A própria escritora considera que sua maturidade literária começa realmente com Ciranda de pedra (1954), seu primeiro romance. Sua afirmativa corrobora as palavras de Antonio Candido no ensaio A nova narrativa, do livro A educação pela noite. Neste texto, o famoso crítico de literatura observa que Lygia “sempre teve o alto mérito de obter, no romance e no conto, a limpidez adequada a uma visão que penetra e revela, sem recurso a qualquer truque ou traço carregado, na linguagem ou na caracterização”.
Ainda que seja reconhecida como romancista e contista, Lygia incursionou também por gêneros como ficção e memória e roteiro cinematográfico. Exemplos do primeiro são A disciplina do amor (1980) e Conspiração das nuvens (2007). Quanto ao segundo, a quatro mãos, ela e o marido Paulo Emílio Sales Gomes escreveram Capitu (1967), baseado no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Mas o forte mesmo de sua produção literária concentra-se nas histórias curtas. Nesse sentido, o encorpado volume Os contos serve como uma amostragem da qualidade literária desta primeira-dama de nossa literatura, embora a publicação não traga toda sua produção contística dos cerca de 80 anos de dedicação ao universo da escrita.
Os contos são compostos de sete seções. Seis delas correspondem a alguns livros da escritora lançados quando ela já estava em pleno domínio de sua técnica literária: Antes do baile verde (1970), Seminário dos ratos (1977), A estrutura da bolha de sabão (1991), A noite escura e mais eu (1995), Invenção e memória (2000), Um coração ardente (2012). A exceção fica para o último título, Contos esparsos. Neste, uma nota explicativa alerta que “Os contos reunidos nesta seção foram publicados originalmente em veículos de imprensa ou coletâneas — seja de autoria da própria Lygia Fagundes Telles, seja em livros de vários autores — que estão fora do catálogo há alguns anos”. Cabe também frisar que Invenção e memória não é uma obra contendo apenas contos como sucede aos demais títulos. Neste livro, alternam-se contos propriamente ditos e outros textos de feitio autobiográfico.
Lygia estreou na literatura em 1938, aos quinze anos, com Porão e sobrado, um livro de contos que foi custeado pelo pai.
Como mencionado anteriormente, fica evidente que a escolha dos livros pela Companhia das Letras para a publicação de Os contos está diretamente relacionada à fase mais madura da produção literária de Lygia. No entanto, muito de sua produção antes de 1970 e mesmo durante sua fase áurea iniciada com Antes do baile verde ficou de fora. Contos esparsos servem como uma pequena amostragem de contos menos conhecidos de Lygia. Por exemplo, a seção traz alguns escritos feitos entre 1949 a 1965, demonstrando que a escritora, em títulos menos conhecidos como, por exemplo, O cacto vermelho (1949, Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras) e O jardim selvagem (1965), já vinha produzindo uma prosa de reconhecida qualidade.
A ausência de contos pertencentes a obras não mais republicadas pela escritora deixa fãs e estudiosos frustrados. Mesmo que Lygia tenha alegado que os textos de seus primeiros livros sejam “ginasianos”, muitos leitores esperavam encontrar todos os contos no respeitável volume de Os contos. Talvez uma justificativa para a contística completa de Lygia não ter sido publicada esteja relacionada a uma particularidade sua que precisa ser levada em consideração. É que a escritora se singulariza por repetir alguns contos, às vezes com pequenas alterações textuais, em volumes diferentes. Por exemplo, O jardim selvagem, que dava título ao livro de 1965, está presente em Antes do baile verde. Outros como A caçada, Venha ver o pôr do sol, Natal na barca, O menino, As formigas, A confissão de Leontina e mais alguns podem ser encontrados em diferentes livros de Lygia.
Feito este panorama geral sobre a literatura de Lygia, salienta-se, como forma de abordagem, que este texto não tem pretensões de analisar toda a pluralidade de sua escrita. Baseando-se nesta antologia de Os contos, a leitura fica restrita a tecer considerações sobre algumas figuras femininas e — reforçando o lugar-comum de que as mulheres são extremamente hábeis no que diz respeito às minúcias — a mostrar a importância que os pormenores presentes em seus textos têm para a compreensão das narrativas da escritora.
Nesta escritora que se especializou em histórias curtas, nelas expressando o máximo com o mínimo de palavras, parece pouco oferecer um recorte que apenas aborde a relevância das minúcias ou o papel central que as personagens femininas têm em seus contos. Mas não o é. A despeito de tantas facetas interpretativas que os contos de Lygia suscitam — uma porção deles confirma a “elegância de uma escrita quase minimalista [que] desposa a elegância das soluções de enredo”, conforme observa Walnice Nogueira Galvão em prefácio ao volume.
Figuras femininas
Assim como Clarice Lispector, Lygia lida muito bem com a abordagem da psicologia feminina em suas narrativas a partir de um ponto de vista feminino. Ambas as escritoras estabeleceram na literatura brasileira uma linguagem e uma apreensão ligadas à mulher que quase não existiam, salvo raras exceções. Até o surgimento de Lygia e Clarice no cenário literário nacional, as nuances psicológicas das figuras femininas eram traduzidas pelos escritores homens com poucas exceções.
“Antes, a mulher era explicada pelo homem, disse a jovem personagem do meu romance As meninas. Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica”, escreve Lygia em Mulher, mulheres, texto que fecha História das mulheres no Brasil — coletânea de ensaios, organizada pela historiadora Mary Del Priore, que estuda a presença da mulher na sociedade brasileira desde os tempos coloniais até a primeira metade da década de 1980. Na prosa da escritora, existe um grande destaque dado à mulher que busca subverter a dominação masculina. Isto ocorre até mesmo na maneira de enfocar personagens masculinas. Estas são frequentemente menos delineadas, sendo destacadas mais pelo status que lhes granjeiam ou granjearam importância socioeconômica, ao passo que as femininas — sejam as que pertencem às camadas burguesas, sejam as das camadas menos privilegiadas da sociedade — apresentam-se ao leitor com uma percepção bastante minuciosa do mundo pela ótica feminina.
Exemplos de personagens masculinas que encarnam algum tipo de importância social podem ser vistos em As pérolas ou A chave. No primeiro conto, Tomás é imprescindível para Lavínia para o papel de marido que o meio social no qual vivem exige, isto é, ele não passa de um “mesquinho acessório” semelhante às pérolas falsas da mulher. Bastante adoentado, acompanha da poltrona a preparação, a maquilagem, as trocas de roupa de Lavínia para ir sozinha a uma festa onde provavelmente — como supõe Tomás — vai encontrar o amante. No outro conto, Tom é um homem bem mais velho casado com Magô, uma jovem “radiosa como se estivesse debaixo do sol”. O descontentamento de Tom ocorre pelo fato de ter que, mesmo cansado, acompanhar a esposa a várias festas, obrigando-se a “armar a expressão cordial e ficar sorrindo até às cinco da manhã, os olhos escancarados, aqueles olhos mortos de sono!…”. A incompatibilidade com a juventude da nova esposa leva-o a recordar da tranquilidade que vivera com a mulher anterior, de sua mesma faixa etária.
Contos como O espartilho, A confissão de Leontina e Uma branca sombra pálida — narrados por personagens femininas — exemplificam a argúcia do olhar feminino em protagonistas da burguesia, da pequena burguesia e das camadas mais pauperizadas da sociedade brasileira. O primeiro é um forte retrato feito por Ana Luísa, neta de uma rica senhora presa a alguns valores da ordem patriarcal. Ao longo da narrativa, a jovem vai descobrindo outros valores caros à avó: racismo, prepotência, simpatia ao nazismo. No segundo conto mencionado, a ótica é de uma moça pobre que acaba se prostituindo e envolvendo-se num crime. Como é salientado no posfácio, “A proeza da confissão de Leontina é sua oralidade, que muda o registro do discurso habitual de narradores e personagens de Lygia, todos burgueses, ao trocá-lo por uma fala popular e semiletrada”. No terceiro, as protagonistas pertencem à pequena burguesia. Trata-se de uma mãe que narra a descoberta da relação homoafetiva da filha. O enredo gira em torno das rosas brancas e vermelhas que, qual uma disputa, são levadas ao túmulo de Gina pela mãe e por Oriana, amante da moça.
Walnice Nogueira Galvão observa, no posfácio a Os contos, que uma mulher “escreve como mulher”. Historicamente, a sociedade moldou o ponto de vista das mulheres — escritoras ou não — ao cercear sua circulação à esfera da casa e da igreja, interditando-lhes o espaço público e “o grande mundo das realizações pessoais com seus encantos e perigos”. Acrescenta Walnice que, como consequência deste confinamento, “as mulheres voltaram-se para dentro, tanto em casa como em si mesmas. Desenvolveram a percepção do espaço, vendo com maior acuidade tudo ao seu redor, especialmente os laços humanos, bem como a clarividência sobre sua própria psique, tornando-se dadas à introspecção”. O resultado é a acuidade de escritoras como Lygia de efetuar sondagem psicológica com maestria quando focaliza figuras femininas em seus textos.
O fato de escrever como mulher permite a Lygia não só mostrar com mais propriedade os sentimentos e apreensões femininas, bem como lhe permite retratar o esboroamento de uma sociedade que ainda possui alguns traços patriarcalistas em seus alicerces. Nos seus contos, a escritora põe em xeque valores arraigados como “a afetividade no mundo doméstico e a racionalidade, a inteligência e a eficácia do exercício do poder no mundo público”, conforme salienta Maria Lúcia Rocha-Coutinho em Tecendo por trás dos panos, fazendo algumas considerações sobre as relações familiares e o papel da mulher nas esferas dos espaços privado e público.
Poética dos pormenores
São as minúcias que impactam na constituição dos contos de Lygia. Em grande número das curtas narrativas da escritora, pequenos detalhes têm papel ativo na trama. Coisas, objetos, pequenos animais, insetos, partes de uma lembrança ou sonho, certos gestos ou ações. frequentemente revelam uma necessidade de reavaliar os pormenores que aparecem ao longo do texto para que a compreensão da leitura seja de fato completa e satisfatória.
Em muitos contos deste volume é possível compreender a presença dos elementos destacados acima como uma poética dos pormenores, que consiste em efetuar uma representação metonímica e/ou metafórica do que sucede às personagens de Lygia. Noutras palavras, os mínimos detalhes que frequentam as histórias da escritora são múltiplos de significações. No posfácio de Walnice Nogueira Galvão, tais minúcias são chamadas de “imagem pregnante”. Tal imagem atua como “um concentrado ou condensado de sentido, uma síntese extremada de tudo o que o conto insinua. De tal modo que, quando aparece, traz consigo um senso de revelação, iluminando em rastilho toda a narrativa”.
É este mesmo sentido que Fábio Lucas salienta nos contos da escritora no texto A ficção giratória de Lygia Fagundes Telles, escrito para a revista Cult. O crítico observa que “chama a atenção o surgimento de pormenores como formigas, ratos, pássaros, gatos, segmentos oníricos, vulcões, unhas, dedos, mãos, gestos, enfim, sintagmas desgarrados querendo significar, mensagens e apelos em busca de serem decifrados”. Tais pormenores funcionam como uma espécie de oferta ao leitor de uma chave elucidativa da reflexão que este ou aquele conto visa provocar.
Não estar atento a elementos aparentemente insignificantes que se espalham ao longo de muitos dos contos de Lygia é perder uma parte da saborosa escrita que ela emprega. Há vários pormenores que — aliados à vida das personagens — produzem vibrações em enredos aparentemente banais. Relevantes e reveladores, portanto, entre tantos exemplos que se espalham em Os contos: as “xicrinhas japonesas” em Verde lagarto amarelo, as “lantejoulas formando uma constelação desordenada” em Antes do baile verde, “a tapeçaria que tinha o a cor esverdeada de um céu de tempestade” em A caçada, a oscilação entre realidade e imaginação presente em Noturno amarelo, a relação homoafetiva entre duas moças (Uma branca rosa pálida), o rito de passagem para a morte em O muro, entre outros exemplos. Todos eles atuam como chave interpretativa das personagens. Todos eles estabelecem determinada tensão, certo ar de mistério e suspense.
Interessantemente a narrativa que abre o volume Os contos chama-se Os objetos. O enredo gira em torno de bate-papo entre o casal Lorena e Miguel. Durante a conversa, Miguel observa detalhes num globo que serve de peso de papel enquanto Lorena trabalha costura. Como é frequente em Lygia, ações aparentemente corriqueiras ocultam alguma surpresa. Todavia, ainda na primeira página do conto, o narrador apresenta um fato que pode ser visto pela perspectiva de uma passagem humorística ou de estranhamento: “Como não viesse a resposta, [Lorena] levantou a cabeça. Ele abria a boca, tentando cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o som fragmentado de pequenas castanholas”. Páginas adiante, ainda encantado com o globo, Miguel observa: “— É uma bola de cristal, Lorena”. E o homem põe-se a brincar de ver o futuro. A descrição que faz de si mesmo à mulher é hilária e extravagante.
Ao juntar os pequenos atos em torno destes objetos, começa a sobressair o comportamento singular de Miguel que, a princípio, provoca o riso, mas evolui para certo estranhamento. Noutra passagem, tal estranhamento fica patente: enquanto manuseia outros objetos comprados em viagens pelo exterior, ouve um chiste de Lorena e de imediato adverte-a: “Chamar a adaga e o anjo de bugigangas, que é isso! O anjo vai correndo contar para Deus”. Quase no desfecho da narrativa, a adaga mencionada ganha grande relevância.
Em Verde lagarto amarelo, embora seja escritor (única marca que acredita que sirva para lhe conferir alguma distinção), Rodolfo é uma personagem socialmente desajustada. Na infância, sua relação com Eduardo, o irmão, sempre foi pautada pela disputa do amor materno. Por mais que tenha tentado agradar a mãe, foi Eduardo que sempre figurou como o filho querido e perfeito aos olhos da mãe. No leito de morte, a mãe é toda ternura para “o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, ‘Mamãezinha querida, eu que fiz para você!’”, preterindo Rodolfo, o filho “obeso, malvestido, malcheiroso”, que somente deseja “um pouco de amor” da mãe. Tal situação leva Rodolfo a nutrir um silencioso ódio contra o irmão, tolerando-o na medida do possível.
Assim como Clarice Lispector, Lygia lida muito bem com a abordagem da psicologia feminina em suas narrativas.
Este conto retoma a antiga história de Caim e Abel pela ótica deste último, isto é, pela de Rodolfo. Quando rememora a divisão dos pertences familiares entre os dois, Rodolfo salienta que preferiu que o irmão, ainda que a contragosto, ficasse com tudo. Para não deixar Eduardo totalmente descontente e tampouco lhe revelar seu forte rancor, Rodolfo, “condenado ao seu fraterno amor”, fica com “as xicrinhas japonesas”, que servem para simbolizar sua pequenez diante dos outros e do próprio irmão supervalorizado.
Em muitos outros contos, as minúcias são reveladoras. Em Anão de jardim, o próprio objeto inanimado do título — condenado à destruição — ganha foros de narrador e discorre sobre a hipocrisia, a traição, a pusilanimidade dos antigos habitantes da casa. Em Biruta, narrativa bastante amarga e triste sobre um menino adotado e seu cãozinho, é revelado o quanto pode a maldade humana que vê tudo e todos como coisas descartáveis. Em Felicidade, a metáfora do roupão encardido outrora branco serve para revelar uma personagem sem alegria, sem esperança de felicidade na sua vida mesquinha de datilógrafa de um hotel e moradora de um prédio onde as pessoas atiram sujeiras no pátio.
À guisa de um balanço geral, entre os quase oitenta contos (são poucos os que não se enquadram em histórias curtas) desta antologia de textos de Lygia organizada pela Companhia das Letras, cerca de um terço apresentam narrativas que se debruçam sobre figuras femininas. Correspondem a esta mesma fração as histórias que têm narradoras em primeira pessoa. É manifesto, portanto, a ênfase dada pela escritora às mulheres na sua produção ficcional. Também é alta a frequência de narrativas que oferecem detalhes reveladores nas entrelinhas do texto, no título, na menção a algum objeto ou sentimento. Tais pormenores — característicos da prosa de Lygia — acabam tendo função significante, uma vez que servem como elemento metonímico ou metafórico que iluminam aquela parcela de suspense, surpresa e insólito de seus contos.