Com a autoridade de quem tinha viajado muito por seu estado, Guimarães Rosa dizia que Minas é plural. São muitas, é bem verdade, mas que podem ser sintetizadas em três — a Minas barroca, a Minas colonial e a Minas moderna. Esta última é representada por Belo Horizonte, a capital projetada, numa tradição mineira (Mariana tem a mesma origem) que JK estenderia a Brasília. Há uma Minas das rezas e outra dos desatinos, uma dos sertões e outra das invenções, sendo possível passar por todas elas em viagens no tempo e no espaço.
Muitas são as Minas, mas o mineiro é único: hospitaleiro, generoso, homem de sentimentos vastos — não sem razão, nosso poeta-maior (Carlos Drummond de Andrade) vem de Minas, terra de tantos talentos literários, alguns escondidos sob a natureza tímida, pois lá os Ziraldos são exceções.
Por isso mesmo, passou despercebido um livro de crônicas que merece leitura atenta, pois traz as qualidades literárias e humanas daquele estado. Num período em que a poesia mineira se converteu em religião vanguardista, a coletânea Belo (Mazza edições), de Rogério Miranda, nos devolve ao território poético que conhecemos e aprendemos a respeitar. São crônicas essencialmente líricas, algumas em forma de verso, que tratam de um assunto que é mineiro por excelência — a memória.
Jornalista com aptidão para desenho, Rogério Miranda (1961) optou desde cedo pela escrita, mas foi deixando o lançamento de um livro para depois, estreando somente agora com material inédito e textos publicados em jornal. Suas crônicas não querem monopolizar as imagens da cidade a que prestam homenagem, mas é visível seu amor às pessoas comuns. Enquanto a História tem espessura em cidades como Ouro Preto e Mariana, ele lembra que a grande riqueza de Belo Horizonte, cidade com pouco mais de 100 anos, é a própria população, pois a cidade já nasceu neste período de democratização. Rogério, no entanto, não deixa de valorizar prédios, monumentos e ruas, não como espaços frios, e sim como memoriais das gerações que passaram por ali.
Seu livro pode ser lido como um canto de amor à cidade dos homens, cidade que ele conheceu na condição de menino em contato com a periferia, de jovem que começou a trabalhar cedo, de adolescente tímido e navegante nas muitas formas de relacionamento propiciadas pelas artes e pela política nos anos 70. Rogério escreve sobre lugares da memória – pessoal e coletiva –, mostrando uma cidade que, mesmo jovem, sofre com este espanto que é a passagem do tempo.
Com uma visão temporal da história, vê o eixo do mundo em Belo Horizonte. Falando da outrora rua suburbana em que morava, diz: “Na rua Java o Brasil foi tricampeão mundial” (p. 115), numa valorização não do lugar em que aconteceu a Copa do Mundo, mas do lugar em que ele a assistiu. Esta mudança de perspectiva aponta para o sentimento de bem-estar que Rogério Miranda encontra em sua cidade, apesar das mudanças. Amar a cidade sem amar a sua gente é quase impossível, por isso o cronista/poeta se fixa em amizades reais ou imaginárias, elegendo-as como matéria de poesia.
Belo Horizonte assume, em seus textos, a dupla condição, de metrópole e roça grande, o que faz com que ela seja vista de corpo inteiro, e não a partir de uma de suas partes: “A mesma cidade que nos integra ao mundo globalizado é pródiga em nos oferecer simples vivências” (p. 14). Olhar atento a estas simples vivências, ele coleciona alguns instantâneos captados na rua, como a divertida história do ganso Poppye. O homem que o trouxe do interior tenta soltá-lo na represa Santa Lúcia, mas ele se recusa a permanecer entre os seus. E volta voando. Como o dono não pode mantê-lo em sua casa e ele não aceita a vida na represa, cria-se um impasse, até que uma família o adota: “Poppye, marinheiro avesso à água, mostrou-se dócil e feliz” (p. 50). Na maioria das crônicas, encontramos histórias como esta.
O incrível é que a cidade tão humanizada nas suas relações venha produzindo uma poesia contemporânea erudita, racional, afastada da rua dos homens. Daí a importância adicional deste livro, por sua qualidade literária e pela mudança de rumo, num ato de compreensão de que cultura não é aquilo sobre o qual lemos, não são idéias abstratas, mas experiências aprofundadas neste difícil exercício de ser matéria perecível.
Todas as crônicas e os poucos poemas de Belo têm esta consciência dolorosa do tempo, percebido no elemento externo (principalmente na cidade), mas verticalizado no eu:
Meu tempo é sempre o mesmo,
e ao mesmo tempo inusitado.
Como as águas do riacho
que passam por aqui.
Ora fica só um canto,
ora pula pro outro lado;
ora vai feliz em frente,
ora dorme no passado.
Ora é solto e cantante,
ora é preso e calado.
Como as águas do riacho
que passam por aqui.
Meu tempo, eu o faço:
breve ou permanente,
duro ou doce abraço.
Meu tempo é imensurável.
Eis o último poema do livro, sugerindo que a cidade é a medida espacial de um tempo infinito na memória. Rogério Miranda, nestas crônicas, volta a aproximar a poesia mineira, tal como fez Adélia Prado nos anos 70, do legado poético de Carlos Drummond de Andrade. E isso não é pouca coisa.