Minas Imensurável

"Belo" de Rogério Miranda, traz crônicas essencialmente líricas que tratam da memória
Rogério Miranda: visível amor ás pessoas comuns
01/08/2004

Com a autoridade de quem tinha viajado muito por seu estado, Guimarães Rosa dizia que Minas é plural. São muitas, é bem verdade, mas que podem ser sintetizadas em três — a Minas barroca, a Minas colonial e a Minas moderna. Esta última é representada por Belo Horizonte, a capital projetada, numa tradição mineira (Mariana tem a mesma origem) que JK estenderia a Brasília. Há uma Minas das rezas e outra dos desatinos, uma dos sertões e outra das invenções, sendo possível passar por todas elas em viagens no tempo e no espaço.

Muitas são as Minas, mas o mineiro é único: hospitaleiro, generoso, homem de sentimentos vastos — não sem razão, nosso poeta-maior (Carlos Drummond de Andrade) vem de Minas, terra de tantos talentos literários, alguns escondidos sob a natureza tímida, pois lá os Ziraldos são exceções.

Por isso mesmo, passou despercebido um livro de crônicas que merece leitura atenta, pois traz as qualidades literárias e humanas daquele estado. Num período em que a poesia mineira se converteu em religião vanguardista, a coletânea Belo (Mazza edições), de Rogério Miranda, nos devolve ao território poético que conhecemos e aprendemos a respeitar. São crônicas essencialmente líricas, algumas em forma de verso, que tratam de um assunto que é mineiro por excelência — a memória.

Jornalista com aptidão para desenho, Rogério Miranda (1961) optou desde cedo pela escrita, mas foi deixando o lançamento de um livro para depois, estreando somente agora com material inédito e textos publicados em jornal. Suas crônicas não querem monopolizar as imagens da cidade a que prestam homenagem, mas é visível seu amor às pessoas comuns. Enquanto a História tem espessura em cidades como Ouro Preto e Mariana, ele lembra que a grande riqueza de Belo Horizonte, cidade com pouco mais de 100 anos, é a própria população, pois a cidade já nasceu neste período de democratização. Rogério, no entanto, não deixa de valorizar prédios, monumentos e ruas, não como espaços frios, e sim como memoriais das gerações que passaram por ali.

Seu livro pode ser lido como um canto de amor à cidade dos homens, cidade que ele conheceu na condição de menino em contato com a periferia, de jovem que começou a trabalhar cedo, de adolescente tímido e navegante nas muitas formas de relacionamento propiciadas pelas artes e pela política nos anos 70. Rogério escreve sobre lugares da memória – pessoal e coletiva –, mostrando uma cidade que, mesmo jovem, sofre com este espanto que é a passagem do tempo.

Com uma visão temporal da história, vê o eixo do mundo em Belo Horizonte. Falando da outrora rua suburbana em que morava, diz: “Na rua Java o Brasil foi tricampeão mundial” (p. 115), numa valorização não do lugar em que aconteceu a Copa do Mundo, mas do lugar em que ele a assistiu. Esta mudança de perspectiva aponta para o sentimento de bem-estar que Rogério Miranda encontra em sua cidade, apesar das mudanças. Amar a cidade sem amar a sua gente é quase impossível, por isso o cronista/poeta se fixa em amizades reais ou imaginárias, elegendo-as como matéria de poesia.

Belo Horizonte assume, em seus textos, a dupla condição, de metrópole e roça grande, o que faz com que ela seja vista de corpo inteiro, e não a partir de uma de suas partes: “A mesma cidade que nos integra ao mundo globalizado é pródiga em nos oferecer simples vivências” (p. 14). Olhar atento a estas simples vivências, ele coleciona alguns instantâneos captados na rua, como a divertida história do ganso Poppye. O homem que o trouxe do interior tenta soltá-lo na represa Santa Lúcia, mas ele se recusa a permanecer entre os seus. E volta voando. Como o dono não pode mantê-lo em sua casa e ele não aceita a vida na represa, cria-se um impasse, até que uma família o adota: “Poppye, marinheiro avesso à água, mostrou-se dócil e feliz” (p. 50). Na maioria das crônicas, encontramos histórias como esta.

O incrível é que a cidade tão humanizada nas suas relações venha produzindo uma poesia contemporânea erudita, racional, afastada da rua dos homens. Daí a importância adicional deste livro, por sua qualidade literária e pela mudança de rumo, num ato de compreensão de que cultura não é aquilo sobre o qual lemos, não são idéias abstratas, mas experiências aprofundadas neste difícil exercício de ser matéria perecível.

Todas as crônicas e os poucos poemas de Belo têm esta consciência dolorosa do tempo, percebido no elemento externo (principalmente na cidade), mas verticalizado no eu:

Meu tempo é sempre o mesmo,
e ao mesmo tempo inusitado.
Como as águas do riacho
que passam por aqui.

Ora fica só um canto,
ora pula pro outro lado;
ora vai feliz em frente,
ora dorme no passado.

Ora é solto e cantante,
ora é preso e calado.
Como as águas do riacho
que passam por aqui.

Meu tempo, eu o faço:
breve ou permanente,
duro ou doce abraço.
Meu tempo é imensurável.

Eis o último poema do livro, sugerindo que a cidade é a medida espacial de um tempo infinito na memória. Rogério Miranda, nestas crônicas, volta a aproximar a poesia mineira, tal como fez Adélia Prado nos anos 70, do legado poético de Carlos Drummond de Andrade. E isso não é pouca coisa.

Belo
Rogério Miranda
Mezza edições
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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