A mais correta tradução do título árabe Kitáb alf layla wa layla é certamente Livro das mil e uma noites — obra que penetrou no imaginário ocidental depois da famosa edição francesa de Antoine Galland, no início do século 18. É a mais correta, mas não a melhor. Mais adiante irei dizer por quê.
Na verdade, esse título designa uma série de livros que, embora diferentes, mantêm certa estrutura e um certo enredo básico em torno de uma exímia contadora de histórias chamada Xerazade.
As Mil e uma noites sempre provocaram especulações a respeito de suas “fontes” ou de seus “originais”. O mais antigo manuscrito árabe — que pertenceu a Galland — foi copiado na Síria, em 1455, e se interrompe abruptamente na noite 282 sem concluir a última história.
Só que as Noites de Galland (misto de tradutor, adaptador e compilador) não eram exatamente as do manuscrito que lhe serviu de base — e basta referir que nem Simbá, nem Ali Babá, nem Aladim estavam naquele texto do século 15. A afirmação provoca impacto — é verdade — porque grande parte dos admiradores das Noites reconhecem nesses três heróis as suas personagens mais marcantes. Resta, então, compreender de que livro, ou livros, exatamente se trata.
Foi há pouco mais de 50 anos que Nabia Abbot, uma arabista norte-americana de origem iraquiana, descobriu a mais antiga referência a Xerazade que hoje se conhece. Trata-se de um manuscrito com duas páginas, quase todo ele ilegível, intitulado Livro que contém a história das mil noites, datado de Antioquia, antiga cidade síria situada hoje em território turco, em 879.
A única narrativa que se consegue ler é um fragmento do início de uma das noites. Nele, uma personagem chamada Dinazade pede a alguém denominado “minha delícia” ou “meu prazer” que lhe conte –— se não estivesse dormindo — uma história prometida na noite anterior. Não sabemos o nome desse contador ou contadora de histórias, mas é razoável assumir que fosse Xerazade.
Dinazade não apenas pede uma história; define também seu teor: um exemplo sobre o vício e a virtude, ou sobre a coragem e a covardia, ou sobre a generosidade e a avareza — que sejam inatas ou adquiridas, que tenham ocorrido entre sírios ou beduínos.
O enredo não é precisamente o mesmo do manuscrito de Galland: Xerazade conta histórias para Dinazade, para o prazer de Dinazade — que vem lhe surpreender à noite, quando todos já estão dormindo. Não há nenhum rei na iminência de matar a narradora, nem parece que ela conte histórias para impedir qualquer espécie de violência.
Essa trama — a da Xerazade que adia a própria morte contando histórias — só vai ser referida no século seguinte. Uma primeira alusão, ocorrida antes de 956, foi feita pelo historiador al-Massúdi, que — ao discorrer sobre o risco de se tomar ficção por história (no sentido estrito) — menciona um livro escrito em persa, chamado Mil fábulas, que os árabes denominavam Mil noites ou Mil e uma noites — sendo que essa importante oscilação de títulos não ocorre no texto, mas entre textos de diferentes manuscritos da obra, sendo assim impossível saber como realmente os árabes denominavam o livro a que al-Massúdi se refere.
Al-Massúdi fala de Xerazade, de Dinazade, de um rei e de um vizir, sem no entanto se alongar sobre as relações entre essas personagens. Só ficamos sabendo que o rei tinha o hábito de matar suas esposas depois da noite de núpcias (e que Xerazade evita a própria execução contando histórias) pelo testemunho do livreiro ibn al-Nadim, que, antes de 990, descreve com mais detalhe o conteúdo do livro persa das Mil fábulas, mas sem associá-lo nem às Mil noites nem às Mil e uma noites.
Só a partir de 1127 é que o título Livro das mil e uma noites se estabiliza. É esse título que encontramos em 1455, quando — finalmente — além da história de Xerazade, ficamos conhecendo algumas das histórias que ela contava para o rei.
Em torno de 1700 começam a aparecer copistas egípcios que, tomando a base síria de 282 noites, acrescentam histórias, na tentativa de alcançar as mil e uma, como o título promete.
Podemos, assim, resumir esquematicamente a história das Mil e uma noites:
(1) em 879, aparecem Dinazade e, presumivelmente, Xerazade (que poderia ter outro nome mas mantém sua característica de narradora excepcional); é um livro de histórias exemplares, ambientadas na Síria ou entre os beduínos, e o nome em árabe é Mil noites;
(2) pouco antes de 956, entram o rei e o vizir, cujos papéis se desconhecem; nada se sabe sobre o teor das histórias; o nome em persa é Mil fábulas, correspondendo em árabe a Mil ou Mil e uma noites;
(3) pouco antes de 990, o tema da morte adiada pela arte de narrar histórias é mencionado pela primeira vez, ligado tão-somente a um livro escrito em persa, cujo nome é Mil fábulas;
(4) em 1127, o nome em árabe passa a ser Mil e uma noites, sem oscilações;
(5) em 1455, passamos a conhecer as primeiras histórias contadas por Xerazade, que se interrompem na 282.ª noite;
(6) a partir de cerca de 1700, as versões passam a conter mil e uma noites, incorporando histórias de outros livros árabes.
O primeiro fato digno de nota é que há uma grande coerência em relação ao título do livro, ou mais propriamente livros, ditos “das noites” em árabe e “das fábulas” em persa. Isso remete a uma distinção muito interessante: porque, entre os diversos gêneros narrativos árabes, há a khurafa (que se traduz por “fábula”) e o samar, história para ser contada à noite.
Enquanto a khurafa é um conto de natureza fantástica ou sobrenatural, tendo origem na fantasia (o termo deriva do verbo kharifa, “delirar”), o samar é uma narrativa extraordinária, mas (supostamente pelo menos) real, baseada numa experiência concreta — daí seu valor de exemplo. O samar era contado durante as vigílias masculinas, nos acampamentos dos beduínos ou no pouso das caravanas; e sua origem como gênero remonta ao período pré-islâmico. E só se distingue do khabar — relato histórico propriamente dito — por lhe faltar o isnad, uma cadeia de testemunhas e transmissores de tradições.
No texto de 879, o que Dinazade quer ouvir são asmar (plural de samar). Por isso, o título Mil noites. É sintomático que não seja Mil fábulas também em árabe, porque os árabes conheciam seu teor e sabiam tratar-se de asmar e não de khurafat (plural de khurafa).
Mas o curioso é que, pelo que se infere tanto em al-Massúdi quanto em ibn al-Nadim, o livro persa continha khurafat, porque havia nele histórias protagonizadas por animais, senão todas, pelo menos parte. Somando-se isso à diferença na circunstância que motiva Xerazade a narrar, num e noutro caso, fica claro que estamos diante de livros distintos — ainda que houvesse histórias iguais ou semelhantes.
No livro persa do século 10, Xerazade evita a morte contando fábulas, khurafat, protagonizadas em geral por animais. No texto árabe do século 9, a narradora entretém Dinazade, aparentemente livres de qualquer ameaça, contando asmar, histórias noturnas, decorrentes das aventuras exemplares de sírios e beduínos.
Entre os séculos 11 e 12, o título do livro árabe começa a oscilar entre Mil noites e Mil e uma noites para se fixar neste último. Seu manuscrito mais antigo hoje existente é aquele a que já me referi — o de 1455, que pertenceu a Antoine Galland. Seu conteúdo mescla samar e khurafa, e Xerazade narra para se livrar da morte.
Sustento a tese de que o livro que leva o título inovador de Mil e uma noites foi concebido por um único compilador, ou recriador, que lhe deu o nome e fundiu elementos de seus dois predecessores. Isso fica claro em função da extrema coerência entre os manuscritos sírios posteriores ao de 1455 que também terminam na 282.ª noite, sem concluir a última história.
Mas, por que mil e uma noites? O que essa noite a mais poderia acrescentar de tão interessante a um livro composto já por centenas de histórias?
Com certeza, não foi uma mudança de natureza estética, embora seja inegável a superioridade do título atual em relação ao primitivo. Essa alteração tem a ver com uma noção literária específica que o compilador ou recriador do livro concebeu.
Com efeito, desde os tempos pré-islâmicos, o número 10 e seus múltiplos como 100 ou 1000 tinham um lugar simbólico particular na mitologia dos beduínos. Num dos mais importantes rituais pré-islâmicos, o maysir — duramente combatido pelo Profeta — uma camela era sacrificada e esquartejada em dez pedaços, que eram posteriormente apostados por meio de dez flechas numeradas, sendo sete “boas” e três “más”.
O número 100 é, no entanto, o principal protagonista em lendas pré-islâmicas. Quando o poeta Shânfara descobriu a humilhação de que fora vítima desde a infância, jurou matar cem membros da própria tribo. Imru al-Qays também jurou matar cem inimigos da tribo que matou seu pai. Numa outra passagem, a feiticeira Halima unge cem dos guerreiros do clã antes de partirem numa expedição de vingança.
Para os muçulmanos, Allah tem cem nomes, embora só se possa conhecer 99 — pois o conhecimento do centésimo levaria ao fim do mundo. O número 10, o 100 ou o 1000 trazem em si uma idéia de completude, de equilíbrio, de algo que encerra um ciclo, um movimento. Por isso, a camela é dividida em dez pedaços, porque o animal completo é composto por aquelas dez partes. As vinganças — ato fundamental da cultura beduína, que permite restabelecer uma ordem natural perturbada pela morte ou pela ofensa — só se consumam quando envolvem um somatório que complete 100. E o ciclo universal poderia terminar, caso se pronunciasse o centésimo e último nome de Allah.
Há uma passagem de um poema de Nábigha al-Dhubyani que refere uma lenda pré-islâmica sobre Zarqa al-Yamama, mulher que tinha um extraordinário alcance visual. A idéia de que 100 é o número perfeito, completo e acabado está explícita:
31 Julga com a sabedoria da donzela do clã, quando observou um bando de pombos mergulhando para beber num charco,
32 contra os flancos do cume de uma montanha, e os acompanhou, seus olhos como um pedaço de vidro, não afligidos por conjuntivite.
33 E disse: se esses pombos fossem meus, mais o meu e a metade deles, estaria perfeito.
34 Pondo comida para atraí-los, calcularam, como ela afirmara, noventa e nove, nem menos nem mais,
35 completando cem com o pombo dela: como tinha sido rápida no cálculo daquele número!
(excerto de Os poemas suspensos, tradução minha, a ser publicada ainda em 2005)
Ou seja, ela num relance contou 66 pombos que, mais a metade e mais o dela, chegam à perfeição de cem. Mas essa noção não se percebe apenas nesse caso.
Shânfara, por exemplo, tendo jurado matar cem, morre tendo conseguido somar apenas 99. Antes de expirar, todavia, pede que o deixem insepulto, sob o pretexto de que seu enterro era interdito aos parentes que se tornam inimigos. Depois, um de seus primos, ao passar ao lado do esqueleto de Shânfara, resolve insultá-lo com um pontapé. E da infecção que lhe acomete vem morrer, para completar os prometidos cem.
Outro caso interessante é o de Imru al-Qays: tendo jurado matar cem para vingar o pai, extrapola insanamente esse limite e não consegue mais deter sua ânsia de sangue, tornando-se eternamente insatisfeito e comprometendo a legitimidade da vingança, pois acaba vítima de uma aviltante traição.
O sentido que se entrevê na lenda de Imru al-Qays — o de que ultrapassar cem provoca infinitude e imperfeição — é idêntico ao que subjaz ao título Mil e uma noites. Mais que um simples compilador de narrativas da tradição oral, o autor do texto copiado no manuscrito de 1455 teve o propósito consciente de transmitir a idéia de que o ato de narrar torna a vida infinita.
Daí minha afirmação inicial: se a tradução gramaticalmente mais correta para Kitáb alf layla wa layla é Livro das mil e uma noites, a mais literária seria certamente Livro das mil noites mais uma — que assinala melhor em português essa ruína da perfeição e da completude.
A utilização do argumento de Xerazade e do rei, que adia a execução da moça para ouvir histórias não é certamente casual. E o arranjo das outras narrativas que se encaixam nele, também. Com efeito, é fácil perceber uma constante: alguém que, prestes a cometer uma violência ou executar um legítimo direito de vingança capital, abstém-se de fazê-lo em troca de uma história maravilhosa.
No primeiro conto que Xerazade narra ao rei — para dar só um exemplo — um mercador mata por acaso o filho de um gênio do deserto e este se vê no dever imperioso de vingá-lo, matando também o mercador. O mercador, então obtém o prazo de um ano para arranjar seus negócios e se despedir da família, quando teria de voltar para se submeter à execução. E o mercador retorna. Nesse ponto, aparecem três viajantes que — admirados com aquela absurda lealdade à palavra dada — conseguem do gênio respectivamente um terço da vida do mercador narrando cada um deles uma história mais espantosa que aquela.
Há uma sutileza que precisa ser compreendida: não é apenas a vida que se resgata com uma história espantosa, mas uma vida que se resgata em detrimento de um dever imperioso de vingança — absoluto no código ético dos árabes pré-islâmicos.
Caberia perguntar se essa idéia estaria apenas presente nas Mil fábulas e ausente das Mil noites. Não saberia responder. O que posso afirmar é que o autor das Mil e uma noites (aquelas que se interrompem na 282.ª) foi beber em fontes da Idade da Ignorância — como são chamados os tempos pré-islâmicas — para compor seu texto.
Com efeito, algo que impressiona no conto do mercador e do gênio acima referido é ser ele uma fusão perfeita de duas narrativas muito antigas. Uma deles, um samar, foi contada pelo próprio Profeta: um homem se torna prisioneiro de três gênios, que discutem entre si o destino do prisioneiro. Um dos destinos possíveis é a morte. Surgem então três viajantes, que conseguem resgatar respectivamente um terço da vida do homem, contando cada um deles uma história espantosa (aliás, esta história é um samar porque poderia ter sido real, uma vez que os gênios são mencionados no Alcorão, não sendo de forma alguma seres fictícios).
A outra narrativa se trata mais propriamente de um khabar, e foi mencionada por Abu al-Farraj al-Isbahani: o rei Mundhir tinha o costume de sacrificar a primeira pessoa que entrasse em sua cidade, num dado dia do ano. Um certo Hanzala foi, certa vez, a vítima. Desesperado, pede um ano de prazo para arranjar seus negócios e despedir-se da família. Mundhir concede, mas retém Charik, o amigo de Hanzala, como refém. Um ano depois, Charik está a ponto de ser executado, quando surge Hanzala. Mundhir — admirado com aquela absurda lealdade à palavra dada — decide suspender para sempre o sacrifício.
Fica claro, portanto, que o texto das Mil e uma noites é produto da elaboração sofisticada de um leitor voraz. É possível até que muitas das histórias sejam criações pessoais dele. E certamente o arranjo delas na estrutura do texto — vinculadas à história dominante de Xerazade, em que se repete o conceito de narração como perpetuação da vida — não foi obra de mero acaso.
Quando os copistas egípcios começaram a reunir histórias que circulavam em manuscritos autônomos, para chegarem à soma declarada no título, enfraqueceram o efeito literário pretendido pelo seu idealizador, pois muitas das narrativas fogem completamente à tal concepção.
Agora, não resisto à tentação de fazer uma pergunta: será que a versão que contém 282 noites foi interrompida involuntariamente por esse idealizador? Ou terá sido uma atitude estética, consciente — a de deixar o livro sem fim, para não trair o título, para não trair a própria obra, para não lhe dar uma perfeição canhestra, pequena, aviltada, necessariamente inferior?
[Algumas informações históricas, fundamentais para a consolidação das idéias expressas neste artigo, constam do prefácio de Mamede Mustafa Jarouche ao Livro das Mil e Uma Noites, por ele mesmo traduzido diretamente dos mais antigos manuscritos árabes, que a Editora Globo começa a publicar.]