Metros fora, poesia dentro

Resenha do livro "Metro nenhum", de Francisco Alvim
Francisco Alvim. Foto: Matheus Dias
01/10/2011

Parece-me inegável haver certo desgaste da presença (ainda caudalosa) da herança das vanguardas entre as artes visuais e a literatura contemporâneas. Não se trata, em absoluto, de apregoar a invalidade da permanência das conquistas estéticas típicas do século 20, mas a ida a qualquer bienal (de qualquer setor artístico) ilustra que há entre nós certo excesso da falta. Por isso avolumam-se as reivindicações ou apenas constatações acerca do retorno, ainda tímido, de certos valores estéticos depreciados atualmente. Mas se tal retorno ocorre (e se ocorre) como resposta ao que triunfa hoje ou como sintoma de uma arte que é de todos os tempos e de nenhum, isso deve ser assunto para outra ocasião.

Dentro disso, é saboroso notar que a crítica não parece dispor de recursos para explicar tudo, não por incompetência, e sim pela força inovadora e inapreensível que a arte costuma ter, quando enfurecida ou disposta à traquinagem. Daí ser um caso curioso o da poesia de Francisco Alvim, que volta à cena com O metro nenhum. O livro mostra um antigo — por manter uma dicção muito familiar à do início de sua carreira — e novo poeta, dado que esta mesma dicção dá à sua escrita uma aparência chamativa, formulada pela dúvida do leitor que se coloca na imediata e inevitável encruzilhada em que estranheza e simpatia se tocam ou se cortam — Encontro: “Faz muito tempo que eu não ria/ assim/ de verdade”.

Também inevitável é a associação entre Alvim e Oswald de Andrade, pois as linhas mestras (ou linhas alunas) da poesia do paulista têm forte eco nas páginas do mineiro. Seja pela extrema sucção do discurso, nos vários poemas de um só verso (Bochecha: “ofereça a outra”), pela filiação ao humor recorrente (“Meu carneiro/ é bíblico/ Branco/ de olho azul/ Cego”) e, acima de tudo, pelo exercício de depuração da poesia de qualquer eventual postura solene, Alvim parece continuar Andrade sem repeti-lo, como o corredor que recebe o bastão do companheiro de equipe e parte para a jornada, que passa a ser só sua. E o bastão passado por Oswald é a poesia catada no cotidiano, cujo nonsense verbal parece postular a tradução da essência antilógica da vida, conforme se vê em Acontecimento: “Quando estou distraído no semáforo/ e me pedem esmola/ me acontece agradecer”.

Convém assinalar outra linha da família literária do autor de Elefante: tendo começado a publicar efetivamente na década de 1960, o autor foi contemporâneo de época e de estética da geração marginal (geração esta que tinha em Oswald uma espécie de padrinho pagão). Essa familiaridade reforça a rejeição de Alvim por qualquer item de solenidade, que, naquele contexto, era associada à postura erudita e pouco tolerante do Concretismo. Veja-se nisso um belíssimo paradoxo: a vanguarda era rechaçada pela própria vanguarda, uma vez que o extremo racionalismo teórico e a pré-disposição conflitiva dos concretistas terminaram por levá-los a um patamar de austeridade, tão estreita quanto a da tradição. Daquele período podem-se lembrar poemas francamente ventados na direção da fumaça dos prédios (“POESIA –/ espinha dorsal/ Não te quero/ fezes/ nem flores/ Quero-te aberta/ para o que der/ e vier”), os quais se ligam a alguns de hoje que, se não estampam um alvo direto, mantêm os pés descalços e a camisa aberta contra a truculência — “NÃO GOSTO/ Acorda xingando/ Dorme xingando”, propondo em seu lugar a fala em tom menor, própria de um comportamento que se sabe e se quer comum, como se indica em Avaliar: “Quem sou eu/ para”.

Entretanto, nem tudo em Francisco Alvim é concisão absoluta ou irreverência. Dos sessenta poemas de O metro nenhum, vários possuem forma alongada, mas sem perder de vista o excluir da pontuação e de outros fatores que poderiam denotar uma antivoz dentro do volume. Apesar disso, surge vez por outra um espaço dado a certo tipo de texto que não se furta de contemplar a rua com olhos algo líricos: “Uma vez quase desceu de sua sala/ para falar com o mendigo da praça/ dono de um cachorro/ mais estropiado do que o/ admissível/ cujo sofrimento era o dele/ cachorro/ e o dela”. Ao lado do teor contemplativo, o tom sério se efetiva para expor a nu as hipocrisias que se camuflam no discurso convencional, falsamente inofensivo. Foi o caso, em Elefante (seu último livro), de Mas: “é limpinha”, e é o caso, na obra de agora, de Um churrasco: “Não foi desmarcado/ Ela já estava muito velhinha/ e muito doentinha”.

Voltando ao início, a presença vanguardista, se tomada por tendência exclusivista e imperativa, poderá ocasionar ou aumentar a necessidade da recuperação de fatores tidos como ultrapassados. E é justamente pelo risco de haver no hipotético retorno igual propensão ao exclusivismo, que presenças como a de Francisco Alvim se fazem fundamentais, para que a arte nunca se esqueça de que, se por um lado nem todo barulho é revolução, por outro nem tudo o que brilha é ouro, “Pois a poesia/ quando ocorre/ tem mesmo a perfeição/ do metro —/ nem o mais/ nem o menos/ — só que de metro nenhum/ um metro ninguém/ um metro de nadas”.

Metro nenhum
Francisco Alvim
Companhia das Letras
96 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho