O que não falta nos textos que compõem o livro DesEstórias (artigos & crônicas), de Márcia Denser, é um ar de permanente polêmica. No prefácio, Italo Moriconi observa que a ficcionista atua no “terreno jornalístico de ideias”, não devendo ser confundida com uma cronista. Pelo contrário, ele a considera uma colunista cujo foco de atenção se concentra “em dois eixos básicos: a geopolítica e a literatura”. Nessas duas grandes linhas de abordagem, predominam contundência e argúcia nas observações da escritora. De modo geral, seus textos fogem à leveza contumaz da crônica. Aproximam-se de discussões mais acaloradas sobre os variados assuntos que estão na alça de mira da escritora. Mesmo assim, existem algumas crônicas com aquele espírito leve que é peculiar a esse gênero.
Na contracapa, Márcia Denser esclarece que esse volume é “de Não-Ficção & Quase Ficção”, um “livro miscelânico” em que ela exerce o “prazer pelo ensaio, pelo artigo, pela reflexão crítica sobre praticamente qualquer coisa”. De fato, é isso que o leitor vai encontrar nos subtítulos (chamados por ela de “vinhetas”) que buscam congregar os variados assuntos sobre os quais escreve. Com textos escritos entre 2005 a 2010, são dez seções que compõem a obra: Gente, Siglas, Slogans, Grupos, Movimentos & Etc., Pensamentos, Ideias & Demais Extinções, Literatices, Latitudes Geopolíticas, Pós-Feminismos, Eufemismos & Outros Desaforos, Mídia Perversa & Burra, Crítica da Cultura ou Trícaca da Trucula ou Rítrica da Ralcuta ou Cátrica da Catulca, Neolib, Neocon & Co. e Quase Ficção.
Percebe-se na provocação existente nesses subtítulos que a escritora vai apontar sua “metralhadora giratória” contra atos, fatos e pessoas consagrados. Ela não teme assinalar a burrice onde esta está evidente ou mostrar aqueles que se distinguem e possuem sagacidade, não tem papas na língua quando tece considerações sobre monstros e totens sagrados, tampouco hesita em pôr o dedo na ferida ao nomear as “elites cleptomaníacas” que afundam o Brasil e querem ver longe a “mão de obra brasileira que é informal, sem CPF, RG ou CEP”.
Muito a propósito nos tempos atuais em que todos parecem temer (foi inevitável o trocadilho) a guinada à direita no Brasil, existe uma porção de textos que faz parte de Latitudes Geopolíticas, que se ocupa justamente da “cadeia neoliberal em escala mundial” cujo ponto de partida, no caso da América Latina, nasceu no governo Pinochet. Empregando as discussões de Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Naomi Klein, Emir Sader, Mike Davis e outros, Márcia Denser observa a total exclusão a qualquer forma de direito do “trabalhador urbano favelado” tanto na seara tupiniquim, quanto no mundo todo.
Sobram tiros certeiros da polemista contra as ideologias neoliberais que promoveram isso. Os alvos passam pelos nomes dos ex-presidentes Reagan e George W. Bush; por instituições como Banco Mundial, FMI, CIA, Estados Unidos — principais instituições promotoras da pauperização mundial — e os chefetes-açus latino-americanos que abraçaram sorridentes o neoliberalismo: Carlos Andrés Pérez na Venezuela, Lúcio Gutiérrez no Equador, Alberto Fujimori no Peru, Carlos Menem na Argentina, Sánchez de Lozada na Bolívia, Fernando Henrique Cardoso no Brasil, entre outros.
Ácida observação
De Márcia Denser não escapa a ácida observação sobre a guinada à direita de Vargas Llosa (com direito a compará-lo ao eterno tucano Fernando Henrique Cardoso), ainda que mostre admiração pela obra do escritor peruano. Imerecidamente, Chico Buarque também não passa despercebido pelo poder de fogo de sua Uzi: ela demonstra clara aversão à produção ficcional que o compositor tem produzido, rotulando-a como “romances para se ler e esquecer imediatamente”. Sobram farpas para outras unanimidades literárias como José Saramago, Luis Fernando Verissimo e Jorge Amado.
Quando é para detonar a estupidez que tem hora e vez no cenário da cultura nacional, Márcia Denser dá nome e sobrenome a seus representantes. A lista é enorme e certamente conhecida de muitos: Paulo Coelho, Edir Macedo, Hebe Camargo, Padre Marcelo Rossi, Ivete Sangalo, Datena, Ratinho, Ana Maria Braga, Zezé Di Camargo e Luciano, entre outros. Sua metralhadora de palavras não fica apenas nas personalidades. Ela também não vê com bons olhos a Rede Globo, o Estadão, a Veja, a IstoÉ, a Caras, a Flip, o Jabuti, a revista Piauí e alguns artistas que só conseguem fazer cultura desde que subvencionados por alguma bolsa do Estado.
De modo geral, seus textos fogem à leveza contumaz da crônica. Aproximam-se de discussões mais acaloradas sobre os variados assuntos que estão na alça de mira da escritora.
Embora Márcia Denser mostre seu espírito belicista contra aquilo que Italo Moriconi chama de “bem pensar”, ou seja, “provocação ao poder e indignação contra quem se deixa enredar em suas fábulas”, não só de polêmicas ocupa-se a escritora. Admirações estão expressas nalguns textos. Algumas figuras importantes da intelectualidade e da literatura são frequentemente incensadas por ela: Antonio Candido, Cortázar, Paulo Francis, Affonso Romano de Sant’Anna, Oswald de Andrade, Marcelo Mirisola, Truman Capote, Hanna Arendt, Sérgio Miceli, Silviano Santiago, Octávio Paz, Naomi Klein, Borges, Jameson, Marilena Chauí.
Para quem conhece Márcia Denser da literatura, certamente vai ler prazerosamente os textos que compõem Literatices e Quase ficção — as duas “vinhetas” onde os textos mais se aproximam da crônica. E ambas as seções dialogam com as do tópico Crítica da Cultura… que, por sua vez, permite uma melhor apreensão da fuzilaria em forma de textos que a polêmica colunista assesta contra o neoliberalismo em Latitudes Geopolíticas. No saldo final da leitura do livro, fica a impressão de que Literatices poderia ser inserido em Gente, já que nesta “vinheta” os textos tratam quase que praticamente de escritores.
É principalmente em Literatices que o leitor vai encontrar textos que soam como crônica, no sentido “de composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade”, “amiga da verdade e da poesia”, conforme a definiu um dia Antonio Candido. Exemplo disso são as reminiscências de Márcia em Cânone Literário I: o Saci de Apartamento, Cânone II – Lendo Tudo e Cânone III — Afinidades Eletivas.
Saci de apartamento
A primeira crônica brinca com trecho de uma entrevista de Tom Jobim criticando o progresso que promove o desconhecimento e a destruição da natureza. Ao mencionar a palavra “Matitaperê” — nome de passarinho e de uma canção sua e de Paulo César Pinheiro —, Tom indignava-se por que muitos tinham que recorrer ao dicionário atrás da acepção do vocábulo. Para a escritora, a lição do compositor serviu para ela se autodenominar “saci de apartamento”. Na segunda crônica, Denser elenca suas primeiras leituras: a obra infantil de Monteiro Lobato que ganhou de presente do pai, as variadas leituras na casa da avó, onde conheceu Alencar, Eça, Balzac, Dumas, Victor Hugo, Stendhal, até chegar às “leituras definitivas” de Dostoiévski, Oscar Wilde, Hesse e Nietzsche. Verdadeiro testemunho de sua formação de leitora e de escritora é a terceira crônica, onde enumera os escritores e obras de sua preferência: Machado, Rubem Fonseca, Faulkner, Llosa, Borges, Cortázar, Marcelo Mirisola.
Em Quase Ficção também é possível esbarrar em textos com cara de crônica no sentido mais tradicional do termo. Entre aquelas em que o espírito literário de Márcia Denser se evidencia, vale conferir a pungente carta a Caio Fernando Abreu, a bela crônica sobre os vinis que considera inesquecíveis, o texto sobre a “antiga” prática do trote nas instituições universitárias e outros escritos que passam pela reflexão existencial acerca da velhice e pela vontade de resgatar uma São Paulo da década de 1960.
Tem razão Italo Moriconi ao observar que Márcia Denser apresenta duas temáticas centrais em seus textos — literatura e geografia política. Na sua inquietude com os rumos neoliberais das últimas décadas cujo impacto se faz sentir nas esferas culturais (“a ideologia liberal levou a arte a cultura à irrelevância”), ela necessita disparar seus projéteis de palavras contra uma lógica que transforma tudo em mercadoria, incluindo-se aí a própria literatura. Isso, segundo ela, ocorreu depois da queda do socialismo, com um processo ideológico de trocas: “a ideologia pelo marketing, a palavra pela imagem, a escrita pela mídia visual, o livro pelo vídeo” e por aí vai.
De fato, como escritora, ela não pode fugir àquilo que é sua vida, isto é, o mundo literário. É óbvio que nem sempre é preciso concordar com suas tiradas controversas e belicistas contra algumas figuras importantes da literatura. É necessário compreender, porém, que La Denser ama a provocação, não no sentido de ser apenas petulante, mas sim para suscitar algum tipo de reflexão no leitor.