Embora tenha lançado em março deste ano seu centésimo livro, integrante de uma trajetória que se iniciou em 1975 com a publicação do romance Moreira, ainda quando era um jovem que havia se mudado há pouco tempo para Buenos Aires, para o bairro de Flores, o argentino César Aira permanece relativamente desconhecido por aqui. Ao longo dessas décadas, o escritor, com obras traduzidas e editadas em outros países, inclusive no Brasil, se enveredou pelo romance, pelo conto, pela dramaturgia, pelo ensaio e pela crítica literária. Ganhou prêmios mundo afora, atuou como professor de literatura em universidades de Buenos Aires e Rosário e hoje, com 69 anos, ainda publica em várias editoras e participa de eventos.
Apesar do reconhecimento, é notável que o autor ainda está à margem em muitos quesitos. Novamente, retomo o fato que, mesmo com cem livros, inclusive alguns com versão em português, ele não é muito conhecido mesmo no Brasil, entre nós, vizinhos dos argentinos. A literatura de Aira, no centro da discussão cultural em sua nação, também está muito atenta à margem, talvez um dos motivos para se manter ainda próximo dela, ainda que também dialogue com o cânone, enfim, com o centro. Entre Copi e Rimbaud, entre Pizarnik e Mallarmé, mesmo o escritor em seus estudos críticos e ensaios parece oscilar de maneira muito produtiva entre referências daqui e de acolá. No campo social, vemos, por exemplo, em Os fantasmas como centro e periferia também são contemplados ao mesmo tempo em sua escrita, mas ainda resta um espaço para o delírio, onde justamente as coisas podem entrar em acordo de algum modo.
No mesmo bairro onde o jovem Aira foi viver, Flores, são ambientados os acontecimentos de uma série de romances seus, inclusive de Os fantasmas — mais precisamente à rua José Bonifacio, 2161, num edifício em construção, como se anuncia logo na primeira página, além de referências à avenida Alberdi, por exemplo. Num dia 31 de dezembro, quando, a princípio, os apartamentos desse edifício de alto padrão seriam finalmente entregues, os compradores fazem uma visita com suas famílias e decoradores, acompanhados do arquiteto Félix Tello, para apenas constatar que ainda não estão prontos.
Nesse momento, um pequeno retrato das desigualdades sociais é esboçado: as ricas famílias desfilam com suas mil demandas pelos andares em conversa constante com o arquiteto, que joga toda a culpa nos pedreiros, com os quais, em outras horas, também fala mal dos clientes. Durante esse tempo, na cobertura, em um apartamento improvisado, está uma família de imigrantes chilenos que é responsável por cuidar do edifício quando ninguém mais está lá. Depois que todos se vão, inclusive os pedreiros, são eles que ficam, e com eles ficamos no resto do romance até a festa de ano-novo.
Os chilenos são principalmente a esposa Elisa, o marido Raúl, a filha maior Patri e os filhos menores, mas também outros familiares que aparecerem para a festa e outros trabalhadores da construção, presentes no enredo mais no início. Sua presença maciça faz com que nos atentemos em especial ao seu ponto de vista sobre aquele dia, ao edifício como sua residência temporária e precária, e não como uma construção em processo. O número de argentinos, representados principalmente por personagens esporádicas, como o arquiteto, os compradores e outros passantes sem nome, é pequeno, mas notável, ao menos como contraponto. As personagens da família se veem a todo tempo com grandes diferenças em relação à população de seu novo país, de uma forma que, pela escrita de Aira, nos envolvemos em sua visão dos acontecimentos, nos diálogos em que não há marca de fala e nos adequamos ao seu desconforto com aquele espaço, isolados no topo do edifício. E lá no topo também estão os fantasmas.
Os fantasmas, que no romance são homens nus (e mortos, é claro) cobertos de cal que flutuam, habitam diversos ambientes do edifício e são vistos somente pelos chilenos, com os quais interagem de maneira amistosa, mas ainda distante. Na maior parte do tempo, parecem seres divertidos, cujas ações despretensiosas se resumem a ficar dependurados na antena do prédio ou observar a família e os trabalhadores em seus afazeres. Apesar da cobertura de cal, o fato de estarem pelados suscita por vezes certo desconforto da parte de Elisa e Patri, que começam a associá-los com homens vivos, em especial a última, que desenvolve uma relação mais próxima deles. Entre uma telenovela que assiste com sua mãe na televisão e uma tarefa doméstica, passeia pelo prédio em devaneios e também à procura dos fantasmas. Ela é também a personagem à qual nós, leitores, acessamos mais por seu imaginário, por suas reflexões densas sobre a arquitetura, a cultura e a sociedade, apesar de sua mãe pensar que é apenas uma adolescente fútil.
Nem terror, nem gótico
Logo se percebe que Os fantasmas, a despeito do título, não se trata de uma história de terror nem de um romance gótico. Sem dúvida, Aira é devedor da tradição da literatura fantástica, forte no território argentino ao longo de todo o século 20, e não somente por figuras como Borges e Bioy Casares, mas não podemos limitá-lo a esse gênero. Além dessa linhagem, outra relação possível, em especial no início de sua obra, é com o neobarroco, sob nomes como o próprio Osvaldo Lamborghini, o escritor e amigo de Aira ao qual críticos sempre se referem. Desse modo, observa-se como a crítica social se estabelece em sua narrativa, porém sob um realismo longe daquele almejado por Zola, para citar um autor que também é mencionado de passagem no próprio romance, como leitura de Félix Tello. A realidade nessa obra pressupõe o sobrenatural, que deixa de ser sobrenatural para ser, na verdade, uma metamorfose do real ou talvez sua idealização sob os olhos de Patri.
Ao longo do livro, cresce também a sexualização dos fantasmas. De maneira cômica, sabemos desde o início pelo narrador que fluidos podem passar pelos fantasmas, como o vinho, sempre posto dentro deles para congelar, pois os chilenos não tinham geladeira em casa. Aos poucos, percebemos que se constrói uma ideia de organicidade que torna aceitável a visão dos fantasmas como “homens de verdade” da parte de Elisa e Patri, enfatizada pela descrição dos corpos com um vocabulário erótico, ainda que não considerem qualquer atividade sexual possível. Todos esses elementos entram em confluência em uma narrativa que pode parecer desorganizada sob, de novo, uma perspectiva tradicional, de quem espera um romance burguês do século 19, como o Zola que o arquiteto Félix lia.
Assim, Os fantasmas é certamente uma narrativa curta e muito bem acabada em sua complexidade, que não pode ser ignorada de modo algum, merecendo ser destacada dentre a obra do autor. É importante ressaltar, entretanto, que, na edição brasileira, lançada no ano passado, há alguns possíveis problemas de ordem editorial ou tradutória que comprometem em parte o entendimento na leitura, como Wilson Alves-Bezerra, em sua resenha para O Globo, em 2 de outubro de 2017, também verificou. De todo modo, como disse, infelizmente ainda não são muitas as traduções da obra de César Aira para o português, logo se vê que há um esforço recente para sua divulgação. No caso, fora esse romance, um dos últimos títulos traduzidos é um ensaio: Sobre a arte contemporânea, publicado pela Zazie Edições neste ano. A esperança que resta é que, por esses diversos Airas, o leitor brasileiro consiga acessar esse mundo tão instigante e tão próximo com o qual ainda pode dialogar muito.